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A chegada da família – Por Jair Corrêa

Cais do Imperador, 1925, em frente ao Palácio Anchieta

Papai emigrou de Portugal. Na época era muito comum a emigração. Quando ele veio de Portugal para Vitória, ele já era viúvo, mas era novo ainda. Minha mãe e a família dela vieram da Espanha. Eles o meu pai e minha mãe só se conheceram em Vitória. Eles chegaram aqui em mil oitocentos e tantos, com certeza antes de 1900, pois a Tatina, que é a filha mais velha deles, está fazendo 90 anos. E ela nasceu aqui.

Papai teve aqui em Vitória uma fase muito boa. Ali atrás da Catedral ele foi proprietário do primeiro prédio que teve terraço em Vitória. Era uma residência e foi onde morou Florentino Avidos. E, ao lado, ele tinha outra casa, onde nós morávamos. Eram os números 42 e 44. Ele construiu essas duas casas, uma para nossa residência e outra para alugar.

Ele era alfaiate. E teve um período muito bom. A loja dele, nesta época, vendia peças de fazenda de ótima qualidade. Lá funcionava também a alfaiataria e ele era um alfaiate de primeira linha. E construiu aqueles dois prédios com o resultado do seu trabalho. Eles custaram 46 contos de réis e ficavam na Rua Domingos Martins.

Éramos seis irmãos: Tatina, Chiquinha, Anita, Venina, Nino e eu. Mas houve também a Mariquita, que morreu quando ainda era pequena. Então papai e mamãe tiveram, ao todo, 7 filhos.

* * *

Esse bom período do papai começou a acabar quando apareceu um conterrâneo dele, um português, que queria abrir um armazém de secos e molhados ali mesmo na Ladeira Siqueira Lima, na esquina com a Rua Domingos Martins. Eu me lembro perfeitamente do armazém. E papai resolveu fazer uma sociedade com o sujeito, mais para ajudá-lo. Eu me lembro das bacalhoadas de natal dessa época, servidas naquelas grandes mesas onde se reuniam os portugueses todos de Vitória para comer e beber à vontade. E esse sujeito roubou o papai.

Para pagar as dívidas, papai teve que vender as casas. Só sei que ele perdeu as duas casas. Quando fomos para Campos, nós desocupamos a casa, pois até aí chegamos a passar um período morando de favor.

Mamãe, quando veio para o Brasil, chegou com a família. Veio com a vovó, com o vovô e com quatro irmãos. Todos eram espanhóis, vovó morreu ali na rua São Francisco. Eu a conheci e convivi muito com ela. O vovô era sapateiro. Dos irmãos da mamãe, três eram mulheres: a Beatriz, a Joana (a quem chamávamos de Joanita) e uma terceira cujo nome não me lembro, que morreu logo que chegou a Vitória. Dizem que ela morreu com medo de sair à rua e encontrar negros. Ela tinha tanto medo que não saiu de casa desde que chegou da Espanha. O irmão da mamãe era o Nicolau.

Joana era a mãe da Dina e da Neném. Ela era casada com o chefe do telégrafo, um telegrafista chamado Pena. E morreu de paixão porque se o senhor Pena fizesse uma amizade qualquer com uma mulher, ela se fechava no seu quarto por sete dias porque era muito ciumenta. O Nicolau trabalhou algum tempo em Vitória e em Santa Leopoldina, que na época era um centro comercial muito forte. Foi lá em Santa Leopoldina que ele se casou.

Aqui em Vitória havia muitos portugueses. Entre esses, por exemplo, o "seu" Teixeira, da Praia Comprida, que tinha uma casa de negócios. E havia muitos espanhóis também, porque a imigração toda vinha, principalmente, para Vitória e Rio por causa dos portos. Já os imigrantes alemães iam principalmente, para Santa Leopoldina.

As famílias do meu pai e da minha mãe — eles se chamavam Joaquim Corrêa e Vicenta Gimenez — ficaram somente em Vitória. Também o Pena, que era pai da Dina, do Augusto, do Zezé (eles eram ao todo 8 irmãos, todos nascidos aqui) veio da Espanha. Aliás o Augusto e outro irmão acabaram trabalhando para os correios e telégrafos porque o pai deles era o chefe e eles acabaram ramificados ali. A primeira agência dos correios e telégrafos de Vitória ficava no Cais do Imperador, que ficava em frente ao Palácio do Governo.

Depois que papai e mamãe vieram de Portugal e Espanha, nunca mais voltaram lá. Quando algum português dizia "isso aqui não presta, isso aqui não vale nada", papai chegava perto e dizia: "Vem cá: ninguém mandou você vir pra cá. Se não está satisfeito, volta pra lá". E ele falava isso, com seu sotaque português carregado que ele nunca perdeu, porque gostava muito daqui.

Papai era um Jeronimista fanático. Jerônimo Monteiro foi compadre de papai. Isso, mais ou menos, em 1912, quando surgiu Bernardino Monteiro que fazia oposição a Jerônimo Monteiro. E a política era brava sendo freqüentes os tiroteios. Eu me lembro que, de vez em quando, papai saía de casa e recomendava: "Fechem a casa que vai haver tiroteio". Quando chegava às 8 horas, baixava fogo de todo jeito. Era tiro de todo lado.

Em 13 de fevereiro de 1930 houve o célebre tiroteio do Colégio do Carmo. Eu trabalhava na "Flor de Maio"e me lembro bem. Naquele dia veio a Vitória um deputado de outro Estado, Pio não sei de que, lá do Piauí, para participar de um comício da oposição ao Governo. Mirabeau Pimentel era o secretário do Interior. A época já era inflamada pois foi um pouco antes da revolução. O governo era de Washington Luiz e o comício era contra ele. O comício foi na frente do Colégio do Carmo, próximo da Prefeitura. A polícia, então, fechou todas as entradas, pois a concentração era muito grande. Então o deputado do Piauí, da oposição, disse que o governo era ladrão, que estava roubando. Foi o bastante para as tropas baixarem o pau. A cavalaria fechou, houve tiro à vontade. O pai de Gabeira, aquele de Aimorés, morreu do coração nesse episódio.

Eu estava lá no comício e papai saiu antes da confusão e me alertou: "Rapaz, vá embora pra casa que isso aqui não está me cheirando bem". Mas eu fiquei. Nessa época eu dormia em cima da loja onde eu trabalhava, a "Flor de Maio". E quando começaram os tiros e a cavalaria avançou, o pessoal jogou rolhas na rua para que os cavalos escorregassem e caíssem. E os soldados baixavam o pau e nós baixávamos o pau também. Até que eu resolvi cair fora, entrei numa casa e saí em outra, do outro lado. Pulei o muro, subi pela Cidade Alta e fui sair lá longe. Ainda escapei de um tiro do guarda do Palácio porque saí correndo por aquela ladeira dali. Foi um rififi danado.

Quando chegou a Revolução de 30, a 3 outubro, nós corremos com o Mirabeau. Ele se homiziou num navio francês que estava aqui no porto. Se não fosse isso, nós acabávamos matando ele. E, no navio, ele foi embora.

* * *

Eu ajudei a Revolução de 30. Eu, por exemplo, era o mensageiro do Pio Canedo e do Wolmar Carneiro da Cunha, que ficaram escondidos na Chácara do Conde, em Argolas, por serem da oposição ao go-verno de Washington Luiz. Eles eram tenentes do Exército, mas eram da oposição.

Quando o Bley assumiu após a Revolução e eu ainda trabalhava na "Flor de Maio", o Wolmar foi ser o Secretário do Interior e mandou  que eu escolhesse um cargo no governo. E eu não quis. Ele dizia: "Pode falar, rapaz. Você quer ir para a Alfândega?" Um parente dele, da família Carneiro da Cunha, era chefe da Alfândega. "Você quer vir para o Estado?" perguntava. E eu não quis. Aliás, arranjei para o meu primo Anselmo Dangremon um emprego no Estado nesta época (ele, antes, trabalhava numa farmácia). Botei também o Álvaro Dangremon no Estado.

E eu arranjei uma grande camaradagem com Dona Alzira Bley. Era porque eu era empregado da “Flor de Maio”, que era uma das melhores casas comerciais daqui de Vitória. Vendia fazendas, armarinhos, chapéus, calçados, coisas importadas. E Dona Alzira se afreguesava lá. E eu ia no Palácio levar as compras dela. Eu cheguei a ir ao Rio comprar perfume pra ela. Ela gostava muito de “Crépe da China” e ela dizia ao “seu” Paulo: “Deixe o rapaz ir ao Rio comprar isso para mim?”

Ela gostava muito de mim. Eu chegava lá no Palácio e ela dizia: “Seu Jair, o que o senhor quer? Diga que eu falo com o Bleyzinho”. O Bley era o interventor. A filha deles, a Alzirinha, tinha assim uns 10 anos. Eu conheci o filho do Bley meninote também.

E o Wolmar Carneiro da Cunha foi depois para a Companhia Vale do Rio Doce. E lá também cansou de me chamar para entrar na Vale. Quando ele passava por Aimorés, mandava me avisar com antecedência para que eu fosse vê-lo na estação. Ele foi presidente da Vale.

 

Apresentação do Livro “Os Caminhos por onde andei” – Por José Carlos Correa

Foi durante as conversas que sempre tenho com meu pai que nasceu a idéia desta entrevista. Sempre gostei de fazê-lo recordar as passagens da sua infância e da sua juventude. É que percebi que essas recordações são por ele guardadas com muito carinho. Com admirável riqueza de detalhes ele descrevia os fatos, as datas, os cenários, os diálogos. E quando repetia alguma história meses depois, o fazia com notável precisão, com depoimentos rigorosamente iguais. Esse detalhe mostrava, com clareza, que suas recordações eram verdadeiras, rigorosas, fiéis, sem exageros ou omissões tão comuns nas conversas coloquiais.

Inicialmente planejei apenas gravar suas histórias. Queria guardar uma fita com aqueles casos mais conhecidos da vida de meu pai, que eu já tinha ouvido algumas vezes mas tinha sempre receio de esquecer algum dia. Ali estaria a sua voz, o seu jeito característico de falar, as suas memórias mais importantes, suas lutas, seus ideais. Seria, para mim, uma lembrança preciosa a guardar junto com os meus álbuns de fotografias.

Tudo combinado, passamos uma tarde inteira de um domingo de junho de 1988 a conversar diante do gravador ligado. E a medida em que ele falava, mais me convencia que estava diante de um documento importante. Porque enquanto a fita rodava, papai narrava com desenvoltura toda a sua vida, fluentemente, sem pausas, sem vacilações, sem o menor cansaço. E o que seria uma conversa despretensiosa, passou a ser uma entrevista comovente. Papai abriu seu coração, mostrou-se de corpo inteiro como realmente ele é: um homem de coragem, que viveu intensamente a sua época, que construiu uma vida de trabalho que é um exemplo e um orgulho para todos os que puderam compartilhar dos seus dias.

Quando ele colocou um ponto final na gravação, a noite já descia sobre Vila Velha. E ao acender a luz do seu quarto, onde conversamos, eu já sabia que tinha feito a entrevista mais importante da minha vida.

Foi então que decidi passar tudo o que havia sido gravado para o papel. Quem sabe, reescrever as histórias, rearrumá-las dentro de uma seqüência de mais fácil leitura e passar um exemplar para cada filho. E por que não também para os netos? Para as pessoas mais chegadas?

E comecei a transcrever o material. E quanto mais transcrevia mais percebia que a seqüência estava correta. Papai se mostrava um perfeito e competente contador de histórias. Até algumas idas e vindas, a citação de um fato mais recente antes de um mais antigo, um comentário perdido adiante referindo-se a caso já contado, até todas essas coisas tomavam a leitura mais agradável. E resolvi transcrever a sua fala até o fim.

O resultado é o que aqui está. Não foi preciso reescrever coisa alguma. Não foi preciso rearrumar nada. Bastou ouvir e passar para o papel.

A comemoração dos 80 anos de papai me dá a ocasião perfeita para fazer essa homenagem. Uma homenagem que, certamente é dirigida mais a nós, filhos e netos, do que a ele. Porque, em verdade, é ele quem nos dá esse presente no dia do seu aniversário. O presente de deixar, para cada um de nós, um pouco de sua vida, das suas lembranças, da sua emoção. O presente de podermos sentí-lo bem pertinho. Para sempre.

José Carlos Corrêa 

 

Fonte: Os caminhos por onde andei, Capítulo V A chegada da família - 1989
Autor: Jair Corrêa
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2018



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