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A Pedra da Onça – Por Adelpho Monjardim

Pedra da Onça em Itarana

Cidadão morigerado, pacato e bom cristão, o boticário de Itarana cultivava um “hobby”, a caça. Aos domingos, após a missa, ao cumprimento dos deveres de católico praticante, paramentava-se com os petrechos cinegéticos — espingarda de dois canos, cartuchos e chumbo grosso, capaz de abater leões, lá ia para as matas levar o pânico à fauna alada e rasteira. Para tanto sentia-se absolvido, como os “empreiteiros de Cristo”.

Como o Tartarin de Tarascon, sonhava com safaris no Kenia ou no Borunda, a fim de acrescentar ao seu cartel alguns leões e talvez um rinoceronte branco. Sonhos que lhe faziam bem como as pílulas de Rossi, do seu receituário.

Naquela manhã estival o sol parecia mais límpido e mais quente. Itarana modorrava sob a canícula. No límpido azul o astro rei dardejava raios de fogo sobre campos, montanhas e matas. — Belo dia para uma caçada! Exclamou o boticário, antevendo farto butim. Com o calor a caça grossa abandonaria os refúgios e os alados estariam acessíveis no refrigério das verdes ramadas.

Espingarda a tiracolo, trauteando uma área de caça, alegre partiu para a razia venatória. Sabia de gordo tatu lá para as bandas da Pedra da Onça, tenebroso rochedo de alucinante altura e pouco convidativo para uma aventura solitária. A lembrança do tatu, que diziam bem sevado, fê-lo esquecer a prudência, já aspirando o cálido perfume do saboroso prato sobre a alva toalha da mesa caseira. Como todos os pecados, a gula é má conselheira. Mergulhado em pantagruélicos pensamentos, quando deu fé estava no sopé do rochedo, cujo cimo perdia-se nas nuvens. Árvores, arbustos, gramíneas e gravatás cobriam o dorso do colosso, embarafustando-se por todas as suas anfractuosidades. Face a face com o prodígio, o boticário raciocinou como o garoto que desejava possuir um passarinho: se não tenho gaiola para que eu quero passarinho? Tudo porque a imponência selvagem do solitário rochedo o impressionou. Durante a indecisão, ditada pelo medo, debaixo das árvores próximas, como desafio à temeridade, lá estava o gigantesco tatu. O caçador despertou no tímido boticário. O perigo alertou o instinto de conservação do tatu, que buscou o alto da pedra. Sem pestanejar o boticário foi-lhe no encalço. Escorregando aqui, levantando-se acolá, grimpou a pedra até amplo socavão que se abria em seu seio, ali onde medrava o mato rasteiro. Para o fundo da lapa correu o tatu, buscando o buraco. Um tanto estreito para o seu corpo volumoso, obrigou-o a alargá-lo com incrível perícia e desespero. Quase sumida a presa na toca, para espanto do caçador as poderosas patas do bicho começaram a expelir pedrinhas que faiscavam ao sol. Curioso, já esquecido da caça, o moderno Nemrod largou a espingarda e catou as pedras. Pequenas, miúdas, algumas grandes, com elas lotou o alforje que deveria abrigar o abençoado tatu, que resgatara a vida com um tesouro.

Marcando a mina, retirou-se o feliz caçador. Voltaria para detida exploração, certo de ter descoberto valiosa mina. Estava rico. O tatu se transformara em iguaria de ouro.

Eufórico, o boticário não soube guardar segredo do precioso achado, mesmo porque necessitava saber se as pedras eram realmente valiosas. Um amigo, entendido no assunto, constatou serem legítimas águas-marinhas e da melhor qualidade. Foi o bastante para a notícia correr mundo. De imediato copiosa multidão acorreu ao local e garimpeiros surgiram de todas as partes. Da noite para o dia a Pedra da Onça se transformou numa Babel com milhares de faiscadores. Crimes, roubos, violência se sucediam. O proprietário das terras pediu garantias à polícia e o caso foi parar na Justiça Federal. Um bloco de puríssima água-marinha, pesando cinqüenta quilos, foi apreendido pela Justiça e até pouco tempo se encontrava em custódia, nos cofres da Alfândega, em Vitória.

A caça ao tatu gerou tremenda confusão, que até hoje perdura.

 

Fonte: O Espírito Santo na História, na Lenda e no Folclore, 1983
Autor: Adelpho Poli Monjardim
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2016

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