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A trajetória do migrante libanês no Espírito Santo - Por Mintaha Alcuri Campos

Imigrantes Libaneses

O Líbano esteve subjugado ao Império Otomano até meados do século XX. Algumas das principais razões que impeliram os libaneses ao primeiro grande surto imigratório encontram-se na condição desse domínio e nas diversas formas de espoliação a que estiveram sujeitos: um regime fundiário de herdeiros privilegiados, o fracionamento extremo de terras, a exploração fiscal e a deficiência administrativa eram fatores que conduziam à pobreza. O cultivo em pequenos lotes, em toda a região, não bastava para sustentar as famílias, em sua maioria muito numerosas. A Coroa turca determinava seus próprios cobradores de impostos, extorquia a população e a obrigava ao serviço militar, quando convocada.

Em 1914, a representação turca contra os árabes conheceu extremos. Ocorreram centenas de enforcamentos. Ao lado dos alemães, na guerra, a Turquia convocava os dominados para o exército. Não foi por outra razão que, nesse ano, a imigração árabe tenha assumido as maiores proporções. Servir o exército do inimigo, do opressor, era condição insuportável para a maioria dos libaneses.

Durante a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, grande número de libaneses emigrou para diversos países da América, África e Europa. Foi uma verdadeira diáspora, que abalou toda a vida social e econômica do Líbano. A maioria era composta de cristãos, os mais perseguidos do domínio turco. Paralelamente os fatores relativos à dominação turca, outras razões que ocorreram constituíram aspectos condicionantes do movimento imigratório nesse período.

A decadência das indústrias tradicionais, por exemplo, prejudicadas com a abertura do Canal de Suez, desembocou na entrada de produtos mais baratos e revelou a imigração como uma saída, uma fuga da concorrência. Libaneses imigrados, por seu lado, forneciam meios e incentivos aos parentes e amigos para que fizessem o mesmo e escapassem aos problemas que enfrentavam. A crença num "Eldorado", revelada nas cartas e relatos de amigos e parentes que acreditavam na fortuna fácil que era possível fazer na América, operava como fundamento idílico para a partida.

A força dessa visão é notável se consideramos a condição de uma região castigada por constantes vissitudes políticas, onde a guerra é um espectro sempre presente e onde o regime, de propriedade, até há pouco vigente dificultava a posse da terra à maior parcela da população.

Após a guerra de 1914, as migrações foram determinadas basicamente por razões de ordem econômica.

Como se não bastasse o quadro de obstáculos e dificuldades esboçado, é necessário lembrar ainda que em 1914, uma epidemia de tifo matava uma média de 40 pessoas por dia e uma onda de gafanhotos assolou o país. Fatores que, sem dúvida, apressavam a saída daqueles que imigravam por motivos de ordem política e ideológica, vinculados à luta nacionalista.

Na realidade, a grande massa de imigrantes buscava no exterior pleno aproveitamento de sua capacidade e iniciativa.

A fixação dos libaneses no Espírito Santo, no início do século XX, não está definida com exatidão, especialmente no que se refere à quantidade de libaneses que se estabeleceram nesse período. Provavelmente, em todos os livros cartoriais do Estado, será possível encontrar registros relativos à presença de libanês. A própria confusão entre turco, sírio e libanês, manifesta inclusive nos documentos da época dificulta sua identificação.

Encontramos, em registro cartorial, um processo de hipoteca no nome de Felício Alcure, no ano de 1902, e o de José Felix Tannure, em 1903, num processo de arrendamento de terra. Esses imigrantes encontravam-se em Alegre. No entanto através de entrevistas, tivemos conhecimento de que o imigrante Miguel Simão teria chegado de Minas Gerais para essa região, por volta de 1880. Em Cachoeiro de Itapemirim, por seu turno, foram registrados, em 1902, os filhos gêmeos de Antônio Mussi.

De qualquer modo, foi a expansão do comércio interno e a subsequente construção de ferrovias, ligando Cachoeiro de ltapemirirn a Vitória e a Niterói, e Vitória a Minas Gerais, que vieram impulsionar o movimento imigratório libanês.

Por outro lado, a fundação de vilas e cidades no sul do Espírito Santo e seu crescimento posterior seguem de perto a prosperidade decorrente da lavoura cafeeira. Acompanhando esse movimento esteve o imigrante libanês, não vinculado diretamente ao sistema, mas executando atividades paralelas ao setor cafeeiro, de maneira mais discreta, ligando-se a compradores de café, torrefadores, beneficiadores e mesmo alguns agricultores.

As vilas e cidades formavam um mercado consumidor natural e o crescimento da população urbana permitiu a proliferação do pequeno comércio, com os armazéns de secos e molhados, a farmácia, as vendas de tecidos, os armarinhos e bares.

Ampliou-se a massa de trabalhadores não qualificados, biscateiros e ambulantes. Nessas atividades envolveram-se os primeiros imigrantes libaneses, no interior do Espírito Santo. Eram moços solteiros, vindos de zonas rurais e vilas.

Vim para o Espírito Santo para trabalhar na fazenda de um primo em São José do Calçado. Fui pedreiro no distrito de Café (Alegre) e depois instalei-me no Alegre, onde estou até hoje na minha “Casa Centenário". (Jamil Amin)

Os imigrantes libaneses que chegaram em seguida, antes de tudo, estavam, dispostos a agrupar-se junto a familiares, até que pudessem superar as dificuldades iniciais de adaptação, através de um melhor ajuste às condições de vida e trabalho. Ademais, o parentesco sempre representou forte vínculo entre os libaneses.

Solteiros e jovens em sua maioria, os primeiros imigrantes libaneses que chegaram ao Espírito Santo não possuíam dinheiro. Por isso, tornaram-se mascates, já que tal ocupação não requeria capital, pois a mercadoria podia ser obtida a crédito e seu escoamento era rápido e lucrativo. Juntando o capital suficiente, esses primeiros mascates, apelidados "turcos", começavam a trabalhar por conta própria. No interior, abriam lojas e armazéns em pontos estratégicos e, na capital, lojinhas e armarinhos.

Ainda hoje, a origem árabe do termo mascate permanece desconhecida. Em 1507, quando os portugueses auxiliados pelos libaneses cristãos, tomaram a cidade de Mascate, na Arábia, porto da costa sul do golfo de Omam, conservaram-na sob seu controle até 1659. Os portugueses que para lá seguiram levaram mercadorias para fazer troca ou barganha. Regressando a Portugal, eram chamados "mascates", não com o intuito de menosprezo, mas devido ao seu comércio de mascate.

Com seu baú, que era verdadeira feira ambulante, o mascate percorria vilas, cidades e fazendas. Na prática de suas atividades comerciais, propagou os acontecimentos nacionais e estabeleceu elos de natureza vária. Facilitou a circulação de riquezas, aproximando o produtor industrial do consumidor, o produtor do consumidor de baixa renda. A falta de transporte e as enormes distâncias entre os grandes centros e as pequenas vilas facilitou a proliferação desse mascate e a sua permanência no interior do Estado.

Os comerciantes estabelecidos em Vitória sempre reagiram à mascateação. Nos períodos de maior crise, aumentava o índice de ambulantes. Então, os filiados da Associação Comercial pediam maior atenção para a mascateação que se espalhava por toda a cidade, exigindo da entidade um apelo à prefeitura para coibir aquela atividade.

O mascate libanês esteve presente em todo o território capixaba. A maioria dos comerciantes mais antigos de Vitória iniciou a vida profissional com o comércio ambulante. Muitos deles chegaram a tornar-se grandes comerciantes, industriais e empresários.

O termo mascate era o de "matracar", vocábulo ainda de origem árabe, dados aos libaneses que mascateavam no Brasil durante os séculos XVII e XVIII. Muitos deles chegaram a tornar-se grandes comerciantes, industriais e empresários.

A maioria deles orgulha-se desse fato. Um próspero negociante de Vitória, negou o início de sua vida no Brasil através do comércio ambulante e, no entanto, seu nome apareceu durante anos nos talonários da Prefeitura Municipal de Vitória.

Mohamed Cade, depois de mascatear ao longo do Rio Amazonas, veio se estabelecer em Caparaó, depois se transferindo para GuaçuÍ, onde vive até hoje, já com quase 100 anos de idade. (Salomão Cade)

A década de 1920 foi o período de consolidação do comércio libanês no município de Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Estado. No ano de 1920, a população libanesa de Cachoeiro era de 2.981, contra 42.840 brasileiros natos. Nessa época, os libaneses chegaram a monopolizar o comércio varejista e atacadista, especialmente o de secos e molhados.

A mobilidade dos libaneses para Cachoeiro foi favorecida, em certo momento exatamente por sua condição de cruzamento de vias férreas e como escoadouro de produtos da região.

Como centro de convergência, foi também cidade-dormitório. Os viajantes de origem libanesa, e mesmo as outras nacionalidades, faziam o comércio na periferia e pernoitavam em Cachoeiro de Itapemirim, que oferecia melhores hotéis e maior conforto.

As mesmas atividades comerciais relacionadas nos talonários de Vitória, foram encontradas nos de Cachoeiro.

Os libaneses não se fixaram na sede do município. Estabeleceram-se nos distritos: no distrito de Castelo, no ano de 1928, vamos encontrar treze comerciantes e, em Virgínia, ao mesmo ano, sete. Em Vargem Alta, no ano de 1927, há registro de nove comerciantes libaneses.

Relações de casas comerciais que faziam propaganda de seus estabelecimentos e produtos podem ser encontrados em revistas e em livros sobre o município de Cachoeiro.

Os prédios adquiridos pelos libaneses estiveram sempre localizados no centro da cidade e em zona comercial, já que serviam ao mesmo tempo de comércio e residência. A medida que se desenvolviam no comércio ou na pequena indústria, aplicavam o seu capital na compra de imóvel. Examinando os talonários de impostos, vamos encontrar libaneses que, nessa época, possuíam mais de 12 casas.

Como resultado imediato, o desejo de enriquecer permeou todos os movimentos de adaptação e todos os passos de construção da sua vida nesse país.

De outro lado, durante muito tempo, esse imigrante despendeu os esforços possíveis para libertar-se da situação de "turco", apelido que, antes de tudo, lembrava sua condição de oprimido.

O discurso do imigrante libanês estabelecido no Espírito Santo revela três momentos distintos de sua vida no Brasil, a saber: a chegada com o passaporte turco, o momento da adaptação econômica e o estabelecimento de um negócio próprio ou afirmação em torno de uma atividade econômica específica.

O imigrante refere-se aos primeiros momentos vividos no Brasil e confronta suas experiências com as informações recebidas por parentes e amigos, sobre as dificuldades do enriquecimento fácil.

Ao chegar com um passaporte turco, o passaporte do opressor, enfrentou o desprezo que o apelido "turco" provocava. No ocidente, turco era sinônimo de bárbaro. Ser chamado assim, especialmente para o dominado, era "suprema humilhação".

O imigrante libanês julgou ter resolvido sua situação de inferioridade após a guerra de 1914, quando pôde desfazer-se de sua identidade de "turco". Mesmo com o Líbano submetido à França, essa nova identidade não lhe pesava demasiado, já que este país constituía modelo para todo o Ocidente. Nesse momento, todos foram chamados "sírios".

Prova disso é que em todos os documentos cartoriais que tivermos acesso, encontramos o designativo "sírio" para todos os libaneses registrados. Numa certidão de idade, chegamos a encontrar "Rachid de nacionalidade síria, nascido em Beyrouth".

O fato é que ser chamado "sírio" já não incomodava tanto, embora o libanês almejasse recuperar definitivamente sua identidade. Muitos julgavam tê-lo conseguido especialmente após a sua ascensão social quando então propagavam a todos: "sou libanês, vocês não conhecem geografia"? E os nacionais respondiam: "prá mim todos são turcos".

Meu pai se estabeleceu em Vitória com um tio, desligando-se, tempos depois, para abrir seu próprio negócio com a Firma A. Buaiz & Cia., no ramo de secos e molhados. Implantou as primeiras indústrias em São Torquato, quando alí ainda era um mangue. (Luiz Buaiz)

A dificuldade dos primeiros momentos foram desaparecendo à medida em que se adaptaram e se firmaram economicamente. Essa fase concretizou-se quando o imigrante fixou seu negócio próprio.

Para a maioria dos libaneses, a sua estada no Brasil era transitória. Procuravam poupar o máximo para voltar para a sua "terra". No entanto, apesar desse propósito de retorno poucos puderam fazê-lo.

A idéia de retorno ficou comprometida, de imediato, com as dificuldades encontradas em sua chegada e no período de adaptação enfrentado e, especialmente, com a crise no Oriente Médio em 1949. A partir de então, os propósitos de regresso à comunidade de origem tornaram-se menos viáveis ou até menos vitais.

Sinais de incorporação definitiva à sociedade brasileira podem ser observados nos casamentos mistos, que a partir da 3ª geração de libaneses passam a registrar diminuição expressiva dos traços de endogamia. Isto, mesmo em cidades pequenas, passou a ocorrer com muita frequência.

O mais importante, porém, foi observar que o processo de adaptação e de inserção do imigrante libanês à sociedade brasileira, com base no estudo do Espírito Santo, significou antes de tudo um processo de libertação.

Sua acomodação e adaptação gradativas correspondiam à sua liberação da condição de dominado, vivida por tanto tempo. O estereótipo "turco pobre, sírio remediado, libanês rico" criado pelo brasileiro, foi assumido e incorporado por esse imigrante. Aqui no Brasil, cumprir essa trajetória, além de enfrentar as dificuldades de adaptação e de obter a afirmação social, significava conquistar a integridade perdida com a dominação turca e com as crises posteriores.

A recuperação de sua identidade, comprometida enquanto povo oprimido, expulso de sua terra. O que se podia conquistar, mais do que a riqueza, era a liberdade.

 

Fonte: Revista IJSN Instituto Jones dos Santos Neves – Ano IV Nº 2 -1985
Autora: Mintaha Alcuri Campos - Prof. Assistente do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2021



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