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Anos dourados – Por Hesio Pessali

Contra-capa do Livro: O Diário da Rua Sete – 40 versões de uma paixão, 1998 - Capa: Anderson Marques

Em 1970 eu troquei a sucursal da Veja, em Salvador (meu primeiro emprego) pelo trabalho de correspondente do Jornal do Brasil em Vitória. A capital emitia sinais de agitação, como o País todo. Eram os ecos ainda fortes da revolução cultural que passou como um furacão pelos anos 60, e foi vivida com certo atraso no Terceiro Mundo.

Valores antigos cediam lugar para novas oportunidades, e elas logo se mostraram. Recebi oferta de trabalho na Rádio Espírito Santo e nO DIÁRIO. O rádio era uma paixão, e o coração pendeu. Mas a razão venceu, porque eu precisava ter um pé de apoio numa redação mais ampla para fazer o trabalho de correspondente.

Peguei O DIÁRIO na maré subindo. Nos dois anos em que fiquei lá, fiz pauta, orientei repórteres, reescrevi textos, editei, fiz a primeira página. E à tarde saía à rua pra fazer matérias pro JB, no qual continuei mesmo depois que deixei O DIÁRIO. Tudo o que se disser dos anos dourados desse jornal vai ficar aquém do que ele representou, porque não há como reacender o calor que temperava o que se fazia lá.

Mesmo com AI-5, general Médici, tortura, luta armada e censura, a virada da década teve seu lado de rebeldia festiva, no significado alegre da palavra. Na Rádio Espírito Santo, Afonso Abreu abria o microfone convocando: "On the roads, amizade..." Seu sonho era encher a margem da rodovia de outdoors da emissora, com um cabeludo dando as costas para a cidade levando uma guitarra a tiracolo. E provocava o ouvinte colocando samba-canção no ar, com o recado: "Isto já era, mas já que você insiste..."

Em Três Praias (Guarapari), Antonio Alaerte e Rubinho Gomes, dois ex-jornalistas dO DIÁRIO, faziam um festival de música imodestamente apelidado de Woodstock brasileiro. É bem verdade que com tanto agente federal, hippie nenhum ousou tirar a roupa. Em freqüência, ficou longe de Woodstock, porque nas vésperas a Polícia recolheu em caminhões os cabeludos que encontrou em Guarapari, despejando-os além da divisa com o Estado do Rio. Mas o Caderno B do Jornal do Brasil, que sempre foi o termômetro na percepção de tendências culturais, mandou pra cá o Sílio Boccanera chefiando uma equipe de dois repórteres e um fotógrafo, e mais o correspondente. E ainda queria alugar um helicóptero porque não havia telex na cidade.

Era uma rebeldia contra o fazer igual bem ao gosto do regime, que sonhava com uma sociedade marchando unida para manter melhor os controles. Mas a gente queria se dar ares de cidadão do mundo, numa época em que o general presidente ameaçava com o "Brasil, ame-o ou deixe-o". Muitos deixaram, e encheram Londres, Roma e Paris de colorido latino-americano. Se aqui não está bom, vou-me embora pra Pasárgada... Algumas frases da época soavam quase como palavras de ordem: "O mutante é mais feliz", "Pedra que rola não pega limo", "Prefiro ser uma metamorfose ambulante"...

O DIÁRIO não foi um fato isolado, foi a expressão escrita disso tudo. Talvez nós, na época, não percebêssemos toda a extensão dessa relação, onde os nossos interesses viravam assunto de jornal. Quem passasse em frente à redação podia ouvir, no silêncio da Rua Sete, o rock pesado, ancestral do heavy metal (Alice Cooper, Black Sabbat, King Crimson...), o melódico (Credence, James Taylor...), o divino Pink Floyd, o Led Zeppelin, que o Paulo Torre levava a casa dele, ali perto, era um santuário do rock. Ou podia optar por ler a crítica no dia seguinte. Eu mesmo traduzia letras de Joan Baez, trechos de Marcuse, artigos sobre o novo cinema americano (Easy Rider, Alice's Restaurant...) para o segundo caderno, que Tinoco dos Anjos editava.

Qualquer cabeludo podia baixar lá que encontrava clima. No fim do festival de Guarapari não foram poucos. Mas uma sobrinha do governador do Ceará resolveu ficar. Um lhe pagava um sanduíche, outro lhe dava cigarro, e no fim de alguns dias ela cheirava a tudo, porque não tomava banho nem trocava a roupa. João Luis Caser, repórter, amigo do então chefe do Serviço de Obras da Prefeitura de Vitória, sugeriu que ele a levasse pra casa até passar por aqui o vôo semanal do Buffalo da FAB. O Sr. Magnago, filhos já criados, concordou com a adoção.

Já na casa dele, como ela não quis entrar no banheiro, ele, um italianão esquentado, agarrou a menina e a levou pra debaixo da ducha. Nisso, chega em casa a mulher... Não devem ter sido momentos fáceis para o Sr. Magnago. Consta que à noite ele foi visto na Rua Sete esperando Caser pra ajudar a convencer a mulher de que não era nada daquilo... A versão inclui, evidentemente, a pimenta adicionada pelo pessoal da redação.

A censura, que tinha olhos e ouvidos atentos para a contestação política, não percebia toda a sutileza da subversão cultural. Nem entendia que aquele jornalismo, misto de realidade e ficção, era uma linguagem inteligente, e que personagens que o jornal criou (seu Justino, a vidente Erotildes e outros) estavam sempre expondo a nudez do rei.

Havia também aqueles que cutucavam o regime com vara curta, que achavam que o futebol era o ópio do povo, que Caetano era um fresco, e procuravam o sentido político oculto nas letras do Chico, mesmo quando não havia. Enfim, cada um encontrou o seu nicho.

O DIÁRIO absorveu a nova cultura que, de um jeito ou de outro, ia buscar um canal pra se expressar, não ia ficar abafada. O DIARIO, digamos, estava no lugar certo, na hora certa, na medida certa. Não que ele fosse um jornal alternativo. Ele era uma peça do sistema, e nem podia ser diferente. Tinha que pagar o seu custo e dar lucro. E o dinheiro estava com o sistema. Nossa empolgação freqüentemente nos fazia esquecer isto.

Certo dia, numa daquelas avaliações que jornalista vive fazendo, um grupo se perguntava o que representavam os nossos parlamentares estaduais. E concluía pelo nada, porque o regime militar havia esvaziado os parlamentos, e os deputados tinham tempo para numerosas viagens de visita, de estudos, de não sei o que, às custas do contribuinte. E eles bem que tinham como pagar a própria mordomia.

Entre o deboche e a indignação, alguém sugeriu: por que a gente não dá uma ferrada nesses parasitas? A geração dos idos de 68 perdera muito do apreço pelos ocupantes dos altos cargos públicos. Decidiu-se fazer então uma matéria descritiva mostrando o patrimônio dos deputados: fulano é dono disso e daquilo, beltrano possui isso e mais aquilo... sem comentários. Pedro Campos, que depois foi para Brasília, apurou, e eu editei. Mexemos com interesses que tinham ramificação dentro do jornal. Apontado como mentor ideológico, dancei. Pude, então, ir para a Rádio Espírito Santo, a convite da professora Euzi Moraes. Puxei para lá bons repórteres dO DIÁRIO, como o Caser, o Chico Bagre e o Jovino Araújo. Lá montamos a maior equipe de radio-jornalismo da história da emissora, o que me conduziu, mais tarde, a uma rica experiência na BBC de Londres.

O DIÁRIO, logo em seguida, assim que saiu do controle de Edgard dos Anjos e Fernando Jakes, começou a perder o brilho, até sua estrela se apagar. Foi melhor assim: melhor do que rastejar na planície depois de ter subido o Olimpo.

 

Fonte: O Diário da Rua Sete – 40 versões de uma paixão, 1ª edição, Vitória – 1998.
Projeto, coordenação e edição: Antonio de Padua Gurgel
Autor: Hesio Pessali
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2018

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