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Assim vivia o velho Braga

Pé de Fruta Pão da Casa dos Braga. Fonte: A GAZETA

Ele passava, duas vezes por semana, no começo da noite, mão direita no bolso da calça curta, geralmente assobiando, não cumprimentava, propriamente, mas resmungava um quase imperceptível “olá!”. Percorria, desde sua casa, no fim da rua, o quilométrico trajeto que alcançava a Praça Jerônimo Monteiro, depois a Rua Cap. Deslandes até o Guandu e, como descobriríamos, casualmente, quando, um dia, nos encontrávamos naquele ponto da cidade, era concluído no interior da oficina da Estrada de Ferro Leopoldina; ali ele participava das reuniões dos ferroviários e ouvia, pacientemente, tudo quanto se discutia, após a revolução russa, a respeito de marxismo e comunismo. Em retribuição pelo assentimento deles a essa indiscreta presença, ministrava aulas de curso primário a vários deles. Muitos anos mais tarde, distantes um do outro, pudéramos compreender aquela precoce inclinação para o socialismo, e então justificáramos o jeito soturno com que ele, introvertido, um autista a seu modo, se desligava de todos e encarava a vida, os fatos, as coisas. No entanto, confraternizava com os outros de nossa idade quando, com eles, jogava “Foot-ball”.

Seu pai, o tabelião Francisco de Carvalho Braga, desfrutava de singular conceito pelos conselhos que emitia, solucionando pequenos problemas de domínio e posse aos que não se arriscavam a consultar advogados: a mãe, d. Nenê, devotada aos afazeres domésticos, costurava-lhe, sem preocupação de primor as roupas que ele vestira, da infância à adolescência, numa cálida homenagem a quem sabia reunir à sua volta todos os filhos – o Braguinha, que invariavelmente, passava, todos os dias, pela nossa casa, o Armando, o Newton, que fora uma de nossas preciosas amizades, e as duas irmãs, Carmosina e, se a memória não nos trai, a caçula Yeda.

Frequentava, ele, a fronteira escola primária de d. Palmyra e, mais tarde, nos encontraríamos sob o mesmo teto do Colégio Pedro Palácios, o ginásio pelo qual a mocidade local tanto ansiava, que, para sua particular comodidade, iria instalar-se numa velha chácara, ao lado de sua casa, à margem do córrego Amarelo. Da última vez em que visitamos a querida cidade onde passáramos doze dos primeiros anos, quiséramos rever a rua em que ambos residíamos – a “25 de março”, assim denominada em homenagem à Constituição de 1824 – e, lá, revimos o perene pé de fruta-pão em cujos galhos ele e seu irmão Newton procuravam decorar “Os Lusíadas”; num gesto carinhoso, o vizinho da chácara, de onde desertara o Colégio, ao reconstruir o muro divisório, tivera a delicadeza de respeitar a árvore, situada, justamente, na linha limítrofe e, por isso, a alvenaria interrompida de um lado recomeçava no outro. O solar é hoje, a sede da Biblioteca Pública da cidade, num preito da população aos dois irmãos – ele e Newton – que dignificaram e elevaram o nome de Cachoeiro de Itapemirim, abastecendo o Espírito, precocemente, das luzes da antiga biblioteca, a da Loja Maçônica, e para a qual fôramos guiados por eles, situada a meio caminho entre as nossas residências. Lá, eles se nutriram de Machado de Assis e Eça de Queiroz, Alencar e Camilo.

A trôpega memória, depois de um longo distanciamento, revela-nos, porém que, de nossos raros reencontros, um deles fora no flamengo, na volta escaldante do meio dia; ele nos solicitara, apenas vestido de calção, o concurso de uma merenda-almoço e, logo, se recolheria ao boeiro do rio Carioca, onde permanecia a maior parte do tempo, entre a praia e a rua Barão do Flamengo, negando “audiência” à polícia, no ano que mais se intensificara a procura dos adeptos do credo político, que ele abraçara e para o qual, desde cedo, fora paulatinamente adestrado, desde o aprendizado na oficina da Leopoldina quando ainda pré-adolescente.

Tentáramos, este ano, um novo contacto, à ocasião de seu aniversário, mas, na própria mensagem, adiantávamos-lhe a nossa esmaecida esperança de sua resposta. Ele, que jamais sorriu e não teria revelado seu misterioso íntimo, há quinze dias, perecendo a fatal visita, consentira em extravasar na sua espirituosa mensagem de fim de ano, talvez a única que terá redigido no gênero, desejando a todos que o conheciam, ou não, “no Ano Novo, muitas virtudes e boas ações e alguns pecados agradáveis, excitantes, discretos e, principalmente, bem-sucedidos...”

Acompanhando a sua trajetória, jamais deixaríamos de ler o que costumava publicar, repelindo a intromissão da ideologia, desde que ele deixara a sua amada cidade para peregrinar por aí além, na sua caminhada para a glória de nato cronista, iniciada nestas colunas, admirado pelo Brasil inteiro e que, até o momento final, soubera traçar a sua íntima crônica ao disciplinar, pormenorizada e pessoalmente, o próprio funeral, incluída a cremação e a remessa das cinzas, para Cachoeiro, de quem fora, em certa época, o embaixador do Brasil em Marrocos.

Joana, a ficção que tanto lhe frequentava as crônicas, nome buscado, provavelmente, na designação de um logradouro cachoeirense, era a partenaire com a qual mais se abria e, não fosse ela uma fantasia, poderia testemunhar, melhor que quantos lhe admiravam a verve, o desapontamento causado aos demais correspondentes de guerra, na Itália, quando num dia de folga dos duelos de artilharia e dos bombardeios, auto-apresentando-se, falando, um após outro, sobre as respectivas cidades de origem – Atenas, Paris Roma, Londres, Nova York, Buenos Aires – ele se desculpava, entre zombeteiro e tímido – “Não é por me gabar, mas sou de Cachoeiro de Itapemirim...”.

Assim vivia o velho Braga, como se identificava. Assim viveu Rubem Braga.

(Transcrito do Estado de Minas – 28/12/90)

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. 1991/1992
Autor: Luis Carlos de Portilho
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2012 

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