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Cara Grande e seus Irmãos - Por Mário Gurgel

Palácio Domingos Martins, antiga Assembleia Legislativa, Foto de Octavio Paes - 1936

Chegaram aos portões da Assembleia, num dia de agitação e de debates, os dezenove meninos que vieram solicitar uma providência e um abrigo. Querem uma casa, com um guardião, com liberdade de entrar e sair, trabalhar e brincar, um leito para o sono intranquilo e crivado de pesadelos, pois não desejam mais dormir nas areias ameaçadoras da Esplanada nem nos antros perigosos que os agasalhavam.

Tínhamos feito um apelo a esses meninos e rapazes, através do Sr. Silvio Simões, funcionário da Assembleia e colaborador eficiente da Casa do Menino. Simões procurou durante dias e dias o líder do grupo, apelidado de Cara Grande, pedindo-lhe que viesse conversar conosco. Oferecemos a casa e os direitos, sem quaisquer obrigações da parte dos beneficiados.

Eles terão inicialmente a casa, a cama, a sopa, a roupa de dormir. Entrarão à hora que desejarem, sairão cedo para as suas atividades. Ninguém interferirá, a não ser um vigia ou assistente, responsável pelo aspecto moral da coletividade. Não se rezará, não haverá filas, não haverá punições. Tudo será feito inicialmente de acordo com o desejo deles.

A cidade ganhará muito com isso. A partir da Semana da Criança, não haverá um só menor dormindo nas ruas e no desamparo. Constituirá alívio para a sociedade, que teme essas crianças, constituirá justiça para todos nós que nos envergonhamos delas e que nos acusamos a nós próprios pela sua desdita ameaçadora.

Os meninos chegaram. Meninos não, rapazes. Existem alguns de 18, 17 e 16 anos. Mas todos têm espírito de meninos. Haverá depois um futebol, um torneio de damas, televisão e cinema, excursões e passeios, banhos de mar e competições. Sabemos que o tempo resolverá.

Cara Grande veio com o grupo, discutir pormenores, e concordou com tudo. O professor Amaro Salvatore Simoni ofereceu a chave da casa. Parece que a semana próxima o trabalho estará feito, e os moços já terão lar.

Estão rotos e imundos, alguns feridentos e mal cheirosos. Rebotalho humano que se levanta como um desafio cruel e profundo à face da sociedade e da Lei para inquirir os que ironizam e para gargalhar dos que os temem.

Está lançada a sorte. Os rapazes aceitaram a proposta. Resta agora saber se teremos capacidade para cumpri-Ia.

Uma malta de meninos vadios é tão perigosa quanto uma epidemia de tifo. Aniquila uma sociedade, destrói inocentes, intranquiliza as famílias.

Vejam as filas imensas de gente medrosa ou cautelosa que marcha pelas ruas ignoradas do Centro de Saúde em busca do medicamento para livrar-se da morte e da moléstia. Veja-se como está assustada e sombria a caudal que espera sem ter tempo, que está meditativa diante do imprevisível, muita gente achando que vai contrair a doença através da vacina ou comentando que morreram algumas pessoas mesmo depois de vacinadas. Senhores leem jornal distraídos, os ouvidos atentos aos comentários; madames retocam o bonito risco de lápis no canto dos olhos, no espelhinho delicado e colorido, mas reviram a pálpebra empalidecida, descobrindo um traço de sangue ou um amarelo ignorado, esquecidas algumas delas da noite de alegria e sociabilidade que passaram em seu clube, alheias às notícias alarmantes sobre as vitimas do tifo. Debutantes e futuros modelos suspiram e batem o pezinho delicado agastadas com a lentidão da marcha da vacinação.

As pessoas pálidas, muitas de fome e sacrifícios, são olhadas de soslaio, e sua presença causa tanta angústia e tanto incômodo que os ritus nervosos são percebidos e compreendidos. Mães prudentes seguram os filhos pequenos com pertinaz determinação. Penteados ornamentais estão agora desfeitos em parte. Os sorrisos são mais uma careta que um belo enfeite para as fisionomias encantadoras. Senhores circunspectos, comerciantes arrogantes que detestam a Coap — Companhia de Abastecimentos e Preços, udenistas que têm horror ao estado de sítio, lacerdistas que odeiam Jango, comunistas que têm pavor à estrutura arcaica, todos estão ali, unidos pelo medo, vigiando o tifo e achando o serviço sanitário do Governo uma coisa organizada e eficiente.

Os dezenove meninos que vão morar numa casa do subúrbio são vítimas da epidemia de miséria e abandono que todos permitimos que os atingissem. A miséria, a revolta, o ódio social, a vindita, são males tão perigosos para a sociedade como o tifo que vem ceifando por aí vidas úteis e saudáveis, abrindo túmulos e semeando lágrimas. Cuidemos deles antes que o seu mal nos atinja e corramos todos à fila, medrosos e revestidos de prudência, pois pode ser que o vírus maligno esteja nos vigiando, numa esquina ou num aperto inocente de mão.

 

Fonte: Crônicas de Vitória - 1991
Autor: Mário Gurgel
Fonte da Foto: José Luiz Pizzol, Fotos antigas do Espírito Santo, 22/06/2016 - Palácio Domingos Martins
, antiga Assembléia Legislativa, sedia a partir de hoje o Palácio da Cultura Sônia Cabral. Inaugurado em 1912 substituiu a antiga Igreja da Misericórdia, de 1604. Foto de Octavio Paes (recorte) de 1936.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2019

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