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Ceciliano Abel de Almeida na entrevista lírica de um sonho

Fonte: Carlos Lindenberg um Estadista e Seu Tempo, ano 2010, de Amylton de Almeida - Nota: Carlos Lindenberg é quem está com o chapéu na mão

Hoje sei que foi um sonho aquele encontro lírico com uma das figuras mais expressivas e mais notáveis deste país. Mas desconfio, todas as vezes em que o acordo, no coração, que tudo o que dele ouvi tinha o sabor maduro de uma nova realidade, transcendental e atualíssima como a sua vida de oitenta e seis anos de dedicação e amor à sua terra e à sua gente, num exemplo incomparável de quem ama tanto o trabalho que, inclusive no dia de sua morte, acordou com o sol, como diariamente o fazia, compareceu à repartição, trabalhou um pouco e foi morrer em casa, feliz.

Nesse sonho, eu era um "foca" da "Gazeta do Infinito" caçando uma personalidade histórica para entrevistar, quando encontrei a sombra iluminada de um pastor de sonhos, apascentando as nuvens do amanhecer. Aproximei-me devagar, para não perturbar aquele olhar de mansidão beirando um lago e logo descobri que estava diante do velho desbravador das selvas do rio Doce, o professor de dezenas de gerações e exemplo incomparável de cidadão e homem público: CECILIANO ABEL DE ALMEIDA.

O coração batia forte, porque sempre sonhara entrevistá-lo, para saber como ele via, agora, aqueles sonhos que ele ajudou a tornar realidade. Aproximei-me dele como quem pede licença, mas fui surpreendido com aquela voz mansa de solidão querendo ajudar um pássaro a voar:

— Soube de sua vinda pela voz dos ventos e estou com muito receio de decepcioná-lo, pois nada tenho a acrescentar ao que foi feito, com muita bravura, amor, humildade e o sentimento vivo de quem sabe, olhando agora estas mãos onde só vinga a fumaça, que eu repetiria tudo outra vez, para sentir, novamente, a alegria de rasgar o chão e ali plantar uma estrada que hoje carrega ouro para nosso Estado e engorda muito mais os cofres do meu país.

— Mas sua voz é de quem sofre, Professor Ceciliano – ousei interferir.

— O sofrimento, do outro lado da vida, filho, é a alegria de quem vê, do alto, o exemplo frutificar, no corpo e no coração de filhos, netos, bisnetos, e não poder estar perto, senão como sombra, para beber, no olhar de cada um, o sol da saudade alegre que eles plantam, quando pegam o trem da história de minha vida, na tentativa de seguir o exemplo de um pobre velho que hoje já não sonha, mas que consegue ver, no eco da Eternidade, que valeu a pena ter espalhado, no mesmo chão, as sementes do meu amor e do meu sangue, com a ajuda carinhosa das duas companheiras que iluminaram, com muita ternura, todos os sonhos de minha existência terrestre.

Pulando um rio de sombras que o olhar de Deus fez plataforma de ancorar silêncio, para seus eleitos, notei que o desbravador do rio Doce desviara o rosto para que eu não descobrisse, naquela face que lembrava pórfiro e alabastro, as duas minúsculas estrelas de cristal que a lírica recordação lhe trouxera naquele instante, como se revivesse a paz, a tranqüilidade e o amor vividos no velho casarão da rua Marcos de Azevedo.

Aproveitei o momento de nostalgia e perguntei:

— Ainda é possível recordar a Vitória do seu tempo, quando foi prefeito duas vezes, com a Vitória de agora?

— Não gosto de falar sobre o que fui e muito menos sobre o que sonhei naquele tempo e naquele mundo. Filho de São Mateus, Vitória foi o quintal onde espalhei meus sonhos. Dividi, com ela, o grande amor que dediquei às sementes que vingaram do meu corpo com as minhas companheiras de alegrias. Viajar de bonde, em suas ruas, é uma lembrança que guardo, neste buraco do ar que outrora teve um coração, como um caminho de Deus para se chegar à Eternidade, sobretudo quando o pôr-do-sol mesmo visto de um bonde, na Praia do Barracão, incendiava o mar de toda a Praia do Canto, invadia a ilha do Lemote — depois ilha do Frade — e acabava chorando as sobras de cada crepúsculo para dormir o silêncio de uma fonte naquele final onírico da Praia de Camburi.

Antes que eu tentasse alguma interferência, alçou um gesto de quem suspira e acrescentou:

— Não me pergunte, por Deus, o que hoje penso daquelas praias, nem da ferrugem que os seus céus carregam, soprada pelos ventos, poluindo os sonhos dos que já viveram, sem jamais esquecer o aroma daquele mar que tinha o sabor do sol nas asas da maresia.

Não conseguindo evitar minha curiosidade, ousei uma pergunta indiscreta:

— O senhor foi precursor do nosso progresso, legou-nos a grande rota onde o futuro desembocaria; escreveu a mais bela epopéia do desbravamento, unindo Minas e Espírito Santo por uma clareira por onde passa hoje o ouro e o sonho de nossa gente; abriu as portas do nosso futuro, enfim. Teria mudado de pensar o nosso grande Ceciliano? — concluí.

— Nunca se muda o rumo do destino, filho. Como as paixões humanas nunca conseguem mudar as cores do arco-íris, os ventos também não param de soprar para esperar que o tempo faça voltas e passe ou pare onde a gente quer, pelo deleite de ouvir um rio de nossa infância onde esquecemos o anzol e a vara de pescar, as esperanças e até as luzes dos nossos sonhos.

E como se eu fosse um menino a merecer compreensão por ter errado o dever de casa, pegou-me suavemente as mãos e completou:

— Quem ousou rasgar o coração das matas, enfrentando diariamente feras e até botocudos traiçoeiros, para que uma imensa clareira fosse o caminho lírico mas real do nosso futuro, não haveria de ser, nunca, mesmo na Eternidade, contra os avanços do mundo e particularmente do nosso Estado, especialmente de Vitória, onde plantaram os meus ossos como sementes do silêncio que hoje você me faz quebrar, numa atenção que eu nunca negaria àquela gente.

Parou um segundo só, como se refletisse e continuou:

— Eu também fui visionário. Edifiquei os meus castelos na fantasia de menino das margens do Cricaré. Mas o sonho de minha vida foi ligar o mundo — o meu pequeno mundo, é claro —num imenso abraço que unisse os homens, para sempre, ainda que fosse preciso construir pontes de ferro por um caminho de esperanças novas. Plantei escolas, quando pude, mas a escola maior que eu construí, pelo que dizem os poetas-historiadores, foi a escola do exemplo, edificada com muito amor, perseverança, muito trabalho e algumas lágrimas que eu escondia, para me fingir de durão, quando eu me sentia no dever de reprovar um aluno para não ser injusto com os mais estudiosos. Fui severo demais como professor, para não ser bonzinho com a negligência. Aproveitando aquele instante em que o professor parecia querer lembrar alguma coisa do seu passado, instiguei-o:

— O senhor deve ter belas histórias e muitos sonhos para contar. Poderia nos revelar alguma?

— A história de minha vida vocês todos conhecem graças ao coração generoso de tantos amigos. Mas há um sonhe que eu vivi, nos mares de Fortaleza, que só agora vou lhe revelar: um velho jangadeiro daqueles mares, me vendo triste numa praia deserta que tinha o nome curioso de Praia do Futuro, me covidou para um passeio de jangada, que eu aceitei, pelo prazer inusitado da aventura. Na volta, já nas areias que a maré beijava, ele me perguntou se eu era poeta. Como lhe respondi negativamente, ele soltou um sorriso e não se conteve: "Com esse jeitão de olhar o mar, como quem sonha ligar, por uma ponte, a brisa da maresia com as culminâncias de Deus, meu caro, eu sou capaz de jurar, de pés juntos, que você é um poeta." A partir daquele dia - continuou o velho Ceciliano — confesso que carreguei, até o último suspiro, o sonho que aquele jangadeiro plantou em minha cabeça e no coração: construir uma ponte imensa que pudesse "ligar a brisa da maresia com as culminâncias de Deus". Extasiado com aquela revelação, não tive dúvida em insistir:

— Pelo que estou sentindo, professor, o jangadeiro descobriu, realmente, esse lado ainda não revelado de sua vida. Seja sincero: o senhor foi também poeta?

— Devolvo-lhe a pergunta: quem, no seu mundo — que foi o meu, também — cercado de tanto mar, de tanto verde, de tanto sol e de tantas sombras, onde o silêncio agasalha os nossos sonhos, pode deixar, um dia, de ser poeta?

Como não tinha nem sabia o que lhe responder, ele me olhou com piedade e acrescentou:

— Filho, todos nós somos poetas a cada instante do dia. Até o novo prefeito de Vitória, quando revela o seu sonho de "Vitória do Futuro", está fazendo, de fato, uma poesia nova, com o tempero do amor pela cidade e por nossa gente. Agora mesmo ele inventou, com o secretário Jorge Alencar e sua equipe, um novo projeto cultural — Memória Viva — e fez publicar, com pesquisas do meu amigo Renato Pacheco e do Luiz Guilherme Santos Neves, um trabalho belíssimo que é poesia pura: Desfiadeiras de Siri da Ilha das Caieiras. Até as fotos do Alexandre Krusemark são exuberantes evocações poéticas, registradas na lente de uma máquina que revela a sensibilidade acurada de um poeta da fotografia. E eu só não exalto o texto, de beleza incomparável, no gênero, para não dizerem que estou exaltando a mim mesmo, pois o Luiz Guilherme, que é meu neto, deve estar carregando, com o poeta Renato Pacheco, um sonho igual ou maior que o jangadeiro da Praia do Futuro me fez carregar até aqui, onde já estou mais perto das culminâncias de Deus.

Resolvi mudar o rumo de nossa entrevista, descobrir novas revelações:

— Alguma mágoa da Terra, professor?

O seu olhar tomou a cor diferente de quem sofre quando revela uma dor guardada a sete chaves:

— Não gostaria de falar sobre isso, para não reabrir velhas feridas. Mas não posso esconder, como se fosse um sino no coração, a tristeza que me causaram os representantes de Minas Gerais, quando, participando do levantamento topográfico da região em litígio com o nosso Estado, eles quiseram se apropriar de uma parte do nosso pequeno Espírito Santo. Essa tristeza e esse desgosto marcaram minha vida. Mas o tempo é o melhor remédio para o esquecimento e eu gostaria de não lembrar, nunca, esse desgosto.

Tentei fazer voltar o seu olhar de alegria, com uma nova pergunta.

— E os velhos amigos, onde andam eles, professor?

— Deus dá a cada um de nós uma missão diferente, talvez para saber quem volta ou para dizer quem fica para as missões mais difíceis. Fiquei feliz, há pouco tempo, quando soube que ele havia escolhido o nosso Carlos Lindenberg para planejar e executar o desenvolvimento de uma nova galáxia, exatamente por ter sido ele um dos dirigentes que melhor planejaram um destino grandioso para o seu Estado e o que mais investiu na esperança de uma economia mais forte para o nosso futuro, através de simpósios memoráveis.

E acrescentou, num sorriso largo:

— Visitei-o outro dia, no comando dessa operação grandiosa, e o conheci, de longe, com o mesmo chapéu que usou a vida toda lá na Terra. Parecia feliz, o velho Carlos. Ao perceber que o professor estava preocupado com o tempo, como se fosse cumprir horário numa nova escola, ousei a última pergunta:

— E ao nosso grande Ceciliano, qual a missão que Deus lhe confiou?

— A mais humilde e a mais nobre, filho: além de pastor de sonhos e professor de amansar nuvens, na rebeldia do amanhecer, estou me desincumbindo, com alegria de silêncio nas fímbrias do pôr-do-sol, da difícil missão de escrever um poema épico sobre a solidão de Deus no desbravamento surdo do Universo, que Homero, meu vizinho de galáxia, já faz questão de prefaciar, com a concordância benévola do nosso Câmara Cascudo que, já havendo prefaciado o meu Desbravamento das Selvas do Rio Doce, não quis ser indelicado com o autor genial da Ilíada, agora seu confrade na Academia de Críticos Universais, presidida pelo NOSSO implacável Agripino Griecco. Vou lhe mandar um exemplar.

Recordo-me, depois disso, que dos seus olhos surgiram duas nuvens enluaradas, e ele, agora com pés e asas de anjo, saiu voando, lentamente, até diluir-se, lírico e feliz, na solidão macia da Eternidade.

 

Fonte: ESCRITOS DE VITÓRIA — Personalidades de Vitória – Volume 15 – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES, 1996.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo - Jorge Alencar
Sub-secretário Municipal de Cultura e Turismo - Sidnei Louback Rohr
Diretor do Departamento de Cultura - Rogério Borges de Oliveira
Diretora do Departamento de Turismo - Rosemay Bebber Grigatto
Coordenadora do Projeto - Silvia Helena Selvátici
Chefe da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim - Lígia Maria Mello Nagato
Bibliotecárias - Elizete Terezinha Caser Rocha e Lourdes Badke Ferreira
Conselho Editorial - Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Revisão - Reinaldo Santos Neves e Miguel Marvilla
Capa - Vitória Propaganda
Editoração Eletrônica - Edson Maltez Heringer
Impressão - Gráfica e Encadernadora Sodré
Autor do texto: Berrero de Menezes
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2018

Personalidades Capixabas

Rogério Américo Nonato Souza

Rogério Américo Nonato Souza

Nascido em Vitória, no dia 13 de maio de 1940, filho de Américo de Araújo Souza e Clara Nonato de Araújo Souza, formou em Medicina e, depois, em Direito

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