Morro do Moreno: Desde 1535
Site: Divulgando desde 2000 a Cultura e História Capixaba

Documentos para a nossa história

Capa da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Nº 35, Ano 1984

Que Francisco Manoel da Cunha deu sobre a Província, então Capitania do Espírito Santo, ao Ministro de Estado Antonio de Araujo e Azevedo.

(Oferecida ao Instituto pelo Sócio Correspondente Sr. Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva)

 

Ilmo. e Exmo. Sr. – Pesar as forças respectivas dos Estados, discutir os interesses dos Soberanos, estudar suas pretensões, observar suas rivalidades, penetrando através do véu que encobre a política dos gabinetes, possuir a fundo os costumes, o caráter, o gênio das Nações, os talentos e a capacidade dos particulares distinguidos em cada Estado, e decidir sabiamente num golpe de vista infalível, das finanças, da guerra, da marinha, da História, justiça, religião, prerrogativas e direitos do Soberano; eis aqui, Ilmo. e Exmo. Sr., os sinais característicos que distinguem a V. Exa., e o justo elogio, que lhe consagram todos aqueles que amam o Estado e a Nação.

Certificado pois pela experiência nestes princípios, tenho a honra de apresentar a V. Exa. uma verdadeira pintura da Capitania do Espírito Santo, cujo quadro mostra a origem do Rio Doce, onde V. Exa. observará os principais obstáculos que dificultam a intentada navegação daquele rio, que seria de grande utilidade para as Províncias da Bahia e Minas Gerais, se a mesma navegação tivesse o desejado êxito.

O rio Piranga e São José do Sipotó, o Ribeirão do Carmo, que passa pela cidade de Mariana, e que ambos fazem barra no lugar denominado Mathias Barboza, são os progenitores do Rio Doce: alguns pequenos córregos e regatos assoberbam o curso deste rio até o de Antonio Dias, de onde descem as canoas. Não me esquece dizer, Exmo. Sr., que existem várias cachoeiras impraticáveis, antes de chegar à este arraial. A cinco léguas distantes do porto de Antonio Dias vê-se a primeira cachoeira, denominada Alegre; oito léguas mais abaixo descobre-se a chamada Escura; aqui, o Rio de S. Antonio dos Ferros (inavegável) vem depositar em suas águas. D’ali a dez léguas aparecem as duas cachoeiras de Bagarí: nesta posição os Rios dos Bugres e da Corrente baralham-se com o Rio Doce. Na distância de oito léguas acham-se os rochedos de Bituruna, e defronte destes penedos vem desaguar o Rio Sussuy grande, tendo pouco mais acima desembocado igualmente o Rio Sussuy pequeno. Três léguas depois, o havido Mineiro encontra a cachoeira da Figueira, avançando mais oito léguas se observa a do Sapê, e dali a sete a do Cuité; aqui entra o rio do mesmo nome. Viajando-se mais quatro léguas acha-se a cachoeira do M, e três léguas avante está a conhecida pelo nome de Inferno.

O Rio Manassú alonga-se outras tantas léguas desta última cachoeira; ali está o Quartel de Lorena, e navegando-se quase uma légua encontra-se a Ilha da Natividade, de onde principiam os pedregulhos conhecidos pelo nome de Escadinhas, que se dilatam até o Rio Guandú, nas circunvizinhanças do Porto de Souza, extremas das Capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo Tais são, Exmo. Sr., os grandes obstáculos, confessados pelos mesmos Mineiros desde a vez que se comunicaram com os Capitanenses por aquele rio, que dificultam, como já disse, a sua frequente navegação; mas obstáculos que foram tão facilmente removidos pelo atual Governador da Capitania do Espírito Santo, Manoel Vieira de Albuquerque e Tovar, na ligeira e curta viagem que fez por aquele rio, cuja execução ainda não se viu. Nem tampouco a chegada das canoas de Minas, que ali se esperavam dentro de oito dias, com gêneros permutáveis, como dizia o mesmo Governador, em um ofício, que nesta Corte, logo que chegou da sua viagem, dirigiu ao Ilmo. e Exmo. Sr. Conde de Linhares.

A navegação do Porto de Souza até a barra é mais cômoda, por se não encontrar tantos penedos, mas o fundo do canal é sempre desigual. Cento e quarenta ilhas, desde o lugar do Cascalho até o Quartel de Begencia Augusta, dividem este rio como em dois, cuja corrente é assas extraordinária. A sua largura desde a foz até o já dito lugar do Cascalho é quase sempre de um quarto de légua, e cheia de grandes bancos de areia, tanto da parte do Norte, como do Sul. A barra não é estável: umas vezes tem dez a treze palmos, outras vezes sete, cinco? Não há ali um surgidouro capaz de ancorar qualquer embarcação, e para escapar à rapidez da corrente é necessário segurar-se com cabos em terra. A entrada da barra é dificultosa, e de grande perigo: esta entrada só com vento feito pode ser feliz, pois nada mais é capaz de vencer a aluvião de tantos rios combinados em um só ponto. Os baixos de um e outro lado impossibilitam as embarcações poderem bordejar; e se quisessem prosseguir a viagem pelo rio acima, não poderiam surmontar pelas diferentes direções do canal, que ora demanda ao Norte e Nordeste, ora a Oeste e Sudoeste, e seriam necessários muitos ventos favoráveis a um mesmo tempo, para que as embarcações evitasses seu naufrágio.

Da barra do Rio Doce, onde está o Quartel da Regência Augusta, marchando-se pela praia na longitude de três léguas, está o Quartel chamado dos Comboios, retirado da mesma praia um quarto de léguas: aqui passa o rio, ou para melhor dizer a Lagoa do Campo, e, se formos combinar o tempo que se gasta dali ao lugar do Riacho, seja embarcado por este pântano, ou vindo pela praia, a viajem sempre é igual. Ainda me recordo que toda essa praia desde o Rio Doce até o dito Sítio do Riacho (onde está um quartel já desamparado) é insuportável; a sua extensão é de sete léguas. A Lagoa do Campo vista deste lugar para o este poucas horas de jornada, tanto por terra, como pelo mesmo rio, que lá vai ter.

Saindo do Riacho, e andando-se três léguas, está a Aldeia-Velha: o rio neste lugar admite em si bergantins, que muitas vezes tem ido carregar madeiras, de que ricamente abundam as suas matas. Cinco ou seis horas de viagem pelo rio acima, a Oeste Noroeste, está o destacamento de Piraqui-Assú, composto unicamente de Índios; e mais abaixo, por um braço do mesmo rio, que demanda ao Sul, vê-se o lugar denominado Piraqui-Merim, onde há pouco sucedeu a catástrofe horrível, da qual falei na continuação desta memória. A Aldeia-Velha em se não Inenerece atenção; algumas pequenas casas, e, pela maior parte, cobertas de palhas e alongadas umas das outras, formam a totalidade desta chamada povoação, de um e outro lado do rio.

Vila Nova da Almeida vista da Aldeia-Velha tantas léguas quantas achamos do Riacho à mesma Aldeia: esta vila nutria algum comércio antes da proibição do corte, venda e exportação das madeiras, cujo interdito foi posto pelo atual Governador: os habitantes dela são todos índios, excetuando alguns europeus ali estabelecidos. Todas as casas são cobertas de palha, as paredes de barro; e só o colégio que foi dos proscritos Jesuítas e seis ou sete prédios dos portugueses já domiciliados, só vê cobertos de telhas. O rico que dá ou tira seu nome da dita Vila, e que corre ao Norte dela, é de nenhuma consequência, pois que só admite canoas e pequenas lanchas. O Senado da Câmara desta Vila e o Capitão-mor são índios de nação; em uma palavra, Exmo. Sr. Eu vejo ali a miséria, como no seu foco paternal.

Agora temos de chegar à vila capital, que mora oito léguas ao Sudoeste da de Almeida. Esta vila denominada da Vitória está situada em uma espécie de ilha: o barco do mar, que forma o seu ancoradouro segue a Oeste por mais de légua e meia, e dirigindo-se para o Norte e o Leste, torna a engolfar-se no mesmo mar: a largura desta ilha de Norte a Sul será pouco menos de duas léguas, a de Leste a Oeste a sua extensão não é regular. Nove igrejas e dois conventos de religiosos aparecem no meio desta vila que se estende sobre uma colina, a maneira de um anfiteatro: as casas não são delas, ali não há divertimentos, porque a pobreza da terra assim o permite. O comércio, que consiste em pequenas quantidades de açúcar, aguardente, café, milho, feijão, arroz e algodão, não é bastante para animar os seus habitantes, e as suas pequenas embarcações só navegam ao longo das costas limítrofes do Rio de Janeiro e Bahia, e raras vezes se atrevem a viajar para Pernambuco ou Rio Grande do Sul. A maior parte das mulheres, só seu exercício diário é o algodão. Percebendo este trabalho unicamente três ou quatro vinténs: a agricultura está como esquecida; não há um só negociante capaz de animar ali os diversos gêneros do comércio, ou seja, em artigos europeus, asiáticos ou africanos, de onde nasce a desgraça e comiseração daquele país, de tal sorte a que mesmo arruinando-se qualquer prédio jamais o redificam.

A barra desta vila está na distância de pouco mais de légua, a nesta extensão apenas dois pequenos fortes; o de S. Francisco Xavier ou Piratininga na dita barra, e o de S. João Dongado pelo rio acima mais de três quartos de léguas: sobre o cimo do monte, em cuja fralda está este monte ainda hoje, existe uma pequena muralha, que antigamente serviu de defesa aos holandeses.

O Rio de Santa Maria, que deságua no braço do mar que forma o ancoradouro da vila da Vitória, é assas belo; as suas margens são cobertas de fazendas, e as matas vizinhas compõem-se de preciosas madeiras. A sua navegação é feita por canoas, pois o canal não admite embarcações de maior porte. Se a nova estrada que de Minas Gerais se dirige pela serra dos Arripiados, e que segundo dizem, vai ter à Capitania do Espírito Santo, por este rio se efetuasse, seria esta comunicação de maior vantagem que a navegação do Rio Doce, porque desembocando o dito rio quase légua e meia distante da vila, no lugar chamado Lamarão, seriam facilmente exportados os gêneros de Minas, importados diretamente na vila da Vitória.

Pouco acima do forte dito de S. Francisco Xavier da Barra está a vila do Espírito Santo, a primeira que houve na Capitania; quarenta casas pouco mais ou menos, e por maior parte coberta de palhas, compõe-se essa povoação. Ainda ali se vê os alicerces de uma pequena alfândega, estabelecida logo depois d descoberta da mesma Capitania, e que desapareceu, bem como a antiga navegação, que ela nutria diretamente com a Europa e a África, de que hoje não há a mais ligeira sombra.

Desta vila segue a estrada, que vai até a vila de Guarapari, ao sul desta outra; Guarapari tem um porto capaz de ancorar embarcações sem o menor perigo; esta vila não é grande, e entretanto, tem todas as comodidades possíveis para o comércio, e os mesmos gêneros, que se exportam da vila de Vitória, ali mesmo se acham; além disto as madeiras são mais abundantes. Duas igrejas há nesta vila: e a inércia dos seus habitantes equilibra com os de toda a Capitania. As águas potáveis não são boas; mas o terreno é fértil. Esquecia-me dizer a V. Exa., que vindo da vila do Espírito Santo para esta, não se encontram rios memoráveis; porque uma légua distante da primeira vê-se o Rio Jecú, cuja barra é só capaz de receber canoas duas léguas antes de chegar a esta última vila encontra-se o rio da Uma; é um quarto o de Perocão, todos semelhantes ao de Jecú.

De Guarapari a vila de Benevente há seis léguas: esta vila demora ao Sul; o seu porto fica no fundo de uma larga enseada que o mar ali forma, semelhante a uma grande bacia, e que tem bastante água para nadarem bergantins de maior porte, como por vezes já tem ancorado ali mesmo, tanto embarcações nacionais como estrangeiras. Aqui fabricam-se sumacas, etc. As madeiras são muitas: Os gêneros comerciais são os mesmos que os de Guarapari, e uma só igreja (o colégio dos Jesuítas) existe nesta pequena vila. Todavia a pobreza aqui grandemente em sua extensão também aparece. O rio conhecido pelo nome de Aldeia, e que vem banhar o lado meridional da dita vila, é navegável pelo sertão até a última das fazendas situadas pelas suas margens. Duas léguas, seguindo sempre a direção do Sul e distantes de Benevente está o rio Piúma, em tudo igual ao de Jecú. Marchando-se pouco mais de légua, chega-se ao grande monte de Agá, uma das balizas dos navegantes para aquela capitania; nas fraldas deste monte está a melhor água de toda a costa meridional. Daí a pouco mais de cinco léguas acha-se o rio Itapemirim, que dá o seu nome à povoação, que dista na barra meia légua; este rio algumas vezes admite grandes lanchas. É muito digno de notar-se que ficando a vila do Guarapari ao norte da de Benevente, seja esta povoação sujeita às justiças da primeira vila. O terreno de Itapemirim não deixa de ser fértil: a povoação deste nome é assaz pequena, e sua púnica igreja, por muito velha, é digna de ser mencionada.

Seguindo pela praia, e passando através das barreiras do Ciri, toca-se em Itabapoana, último lugar da Capitania do Espírito Santo. O rio de Itabapoana é só navegável algumas vezes para pequenas lanchas, e sempre para canoas, aqui nada vejo que mereça atenção. Neste ponto, cuja população é composta de oito casas cobertas de palhas, existe um quartel, onde estão destacados um cabo e quatro soldados da companhia de linha, a única que há na vila capital da Vitória; e tanto em Itapemirim e Benevente, como em Guarapari, acham-se outros semelhantes destacamentos. Recordo-me que desde o Rio Doce até Itabapoana a estrada é sempre pela costa do mar, e raras vezes dali se aparta.

Tendo dado esta pequena exposição sobre a capitania do Espírito Santo, permita-me Vossa Excelência tratar ainda da guerra que se mandou fazer contra o gentio Botocudo, estacionado pelos sertões daquele país. Esta guerra não teve o êxito que se esperava. Algumas divisões, que entravam após do Botocudo, voltavam em dois ou três dias sem nada fazerem: as estradas novamente abertas em alguns lugares do sertão daquela capitania, e chamadas intermédias pelo Governador atual, tão somente servem de conduzir o gentio como pela mão aos lugares já povoados. Uma destas estradas, que vai sair no Piraqui-Merim, lugar onde os índios domesticados laboram a terra, foi a causa de serem atassalhados alguns dos mesmos indígenas ali domiciliados. O chefe de uma das ditas divisões, de nome Miguel da Silva, índio de nação, marchando por uma das estradas intermédias, que, do Piraqui-Assú, correndo pelas cabeceiras da lagoa do Campo, vai ter ao rio Doce, defronte do quartel de Contins, hoje Linhares, este comandante foi sempre atacado na sua retaguarda pelos bárbaros; e certamente lhe fariam alguma emboscada se ele não recebesse algum socorro de Linhares.

A maior parte da freguesia da Serra tem sido infestada por tais selvagens, que tem chegado até Carapina, lugar que dista duas léguas da vila capital, e cujos habitantes se acham refugiados nela. O rio de Santa Maria igualmente foi vítima da sua ferocidade: eles aí postejaram uma mulher ainda viva, devorando-a, depois de haverem cometido outros atentados; e as providências que deram foram quase nenhumas. Certamente a horda botocuda estaria submetida, Exmo. Sr., se as tribos Tatavó e Manaxó fossem atraídas pela doçura e amizade. É assim que Lomlard e Ramette se fizeram amados dos índios Galibis: é assim que Champelain, remontando o Rio de S. Lourenço, adotou os costumes dos Algonquins, dos Iluronnes, e dos Iroqueses; mas infelizmente esta tática é desconhecida do Governador atual da Capitania do Espírito Santo. Tal é o estado presente daquela Capitania.

Eu me contemplaria importuno se avançasse mais na minha narração; e, confundido no meu próprio nada, espero que Vossa Excelência desculpará os erros da presente Memória. Conheço que tenho a honra de falar diante de uma pessoa que pertence à ordem das inteligências destinadas a manejar as molas do Estado. Entretanto, queira Vossa Excelência receber o pequeno serviço da minha gratidão, e a certeza de que sou com o mais profundo respeito. De Vossa Excelência, o mais reverente servo, obrigado e criado, Francisco Manoel da Cunha. Rio de Janeiro, em 23 de junho de 1811. — Ilmo. e Exmo. Senhor Antônio de Araújo e Azevedo, Conselheiro do Estado de Sua Majestade.

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. N 35, ano 1984
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2013 

História do ES

Exército de papel - Por José Teixeira de Oliveira

Exército de papel - Por José Teixeira de Oliveira

“Tendo-me devido um particular cuidado o reanimar a quase extinta Capitania do Espírito Santo, confiada até agora a ignorantes e pouco zelosos capitães-mores”

Pesquisa

Facebook

Leia Mais

O Espírito Santo na 1ª História do Brasil

Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576

Ver Artigo
O Espírito Santo no Romance Brasileiro

A obra de Graça Aranha, escrita no Espírito Santo, foi o primeiro impulso do atual movimento literário brasileiro

Ver Artigo
Primeiros sacrifícios do donatário: a venda das propriedades – Vasco Coutinho

Para prover às despesas Vasco Coutinho vendeu a quinta de Alenquer à Real Fazenda

Ver Artigo
Vitória recebe a República sem manifestação e Cachoeiro comemora

No final do século XIX, principalmente por causa da produção cafeeira, o Brasil, e o Espírito Santo, em particular, passaram por profundas transformações

Ver Artigo
A Vila de Alenquer e a História do ES - Por João Eurípedes Franklin Leal

O nome, Espírito Santo, para a capitania, está estabelecido devido a chegada de Vasco Coutinho num domingo de Pentecoste, 23 de maio de 1535, dia da festa cristã do Divino Espírito Santo, entretanto... 

Ver Artigo