Morro do Moreno: Desde 1535
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Entrevista com Ubaldo Sena: Memória Vilavelhense

Vista da Prainha e do Hotel João Nava, anos 20

Confira a transcrição completa de um descontraído bate-papo entre o historiador e geógrafo Willis de Faria – membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo – com o canela-verde da gema Ubaldo Senna, uma das personalidades mais conhecidas e pitorescas da cidade.

Do alto de seus 79 anos de vida e amor por Vila Velha, o Sr. Ubaldo traçou uma verdadeira radiografia de assuntos pitorescos da História recente do município – da década de 20 até o final da de 50, quando mudou-se para o Rio de Janeiro.

Passava-se roupa ainda com os “maxambombas” – truculentos ferros a brasa da época colonial, os romeiros chegavam de bonde e barco a remo para louvar N. Senhora da Penha em sua festa e vivia-se num verdadeiro paraíso ecológico, na bucólica “Cidade do Espírito Santo”, antigo nome de Vila Velha.

JVV: Sr. Ubaldo, onde e quando o sr. Nasceu?
Ubaldo Senna: Nasci em 1912 na Prainha, mudando-me a seguir para a Maxambomba, onde me criei. Vila Velha, na época, chamava-se oficialmente “Cidade do Espírito Santo”.

JVV: Por que o nome Maxambomba?
Ubaldo Senna: Maxambomba é porque lá passava o córrego Inserica, freqüentado por muitas lavadeiras, que usavam ferro de passar roupa de brasa, cujo nome é “maxambomba”. Eu me criei na casa que hoje é a venda de Seu Querubino, onde meu pai era comerciante.

JVV: E os estudos?
Ubaldo Senna: Fiz o curso primário na Prainha, com o Professor Enane Souza. A famosa Professora Dª Neném, também lecionava lá. A escola chamava “Escola Masculina da Cidade do Espírito Santo”. A das meninas ficava na Rua do Sacramento, hoje Beco do Ataíde, e chamava-se “Escola Feminina da Cidade do Espírito Santo.”

JVV: Como era na época a Festa da Penha?
Ubaldo Senna: A Festa da Penha era realizada em frente ao chamado “Cais das Timbebas”. Os romeiros chegavam de bonde, de barcos de pesca a vela e a remo, vindos da Praia do Suá, Praia Comprida, e outros lugares. Alguns vinham de trem da Leopoldina e desembarcavam primeiro em Argolas. Na festa tocavam as bandas do antigo 3º BC, da Polícia, da Serra e outras orquestras (bandinhas) que existiam.

JVV: Como era Vila Velha antigamente?
Ubaldo Senna: Desde que me entendo por gente, Vila Velha tinha a Praia de Inhoá, a Prainha, Maxambomba, Matadouro, o Sítio Batalha (da família Batalha) e a Toca, que era quase toda um manguezal do filho do desembargador Ferreira Coelho. A Praia da Costa era um matagal danado, com muitas cobras e vegetação na orla de salsa de praia. A Colônia dos pescadores de Itapoã já existia e lá morava um tal de “Carlinhos Argentino”, que veio criança da Argentina e não gostava de confirmar que era argentino de nascença.

JVV: E o crescimento da Praia da Costa, como se deu?
Ubaldo Senna: Na época Vila Velha era cercada por manguezais, daí o cheiro de iodo que havia no ar. Separando a Praia da Costa, havia o canal natural, que chamava Rio Santa Cruz. Havia uma ponte de madeira, nos fundos da casa do Sr. Mascarenhas, na Rua Quinze de Novembro. Quando foi Prefeito de Vila Velha, o General Brandão fez o aterro, que é hoje Avenida Champagnat, com uma ponte em frente à garagem atual da Prefeitura, que foi destruída em 1960, na enchente.

O General Brandão achava que a expansão natural da cidade seria em direção da Praia da Costa. Na praia da Sereia o pintor, “Seu Gastão Roubach, com outros construiu o clube dos 40, recentemente demolido”.
No farol de Santa Luzia ficava o faroleiro Sr. Novais, avô de “Seu Reis”. No Morro do Moreno ficava o Sr. Clementino, cuja função era avisar hasteando bandeiras codificadas, qual o navio e a que companhia de navegação pertencia a embarcação que se aproximava do porto. De Vila Velha, em dias de boa visibilidade, dava para ver as bandeiras.

Do Morro do Atalaia, lá em Paul, ficava outro vigia de luneta interpretando as bandeiras do Sr. Clementino, e então avisava ao Porto de Vitória.

JVV: O Sr. Acabou indo para o Exército?
Ubaldo Senna: É, servi em Vila Velha, chegando a 1º sargento e pela Lei de Praia cheguei a Sb. Tenente. Quando eu era garoto ia muito passear em Piratininga. Lá só havia o forte de São Francisco Xavier, Peguei todas as fases de construção dos pavilhões do quartel, cujos empreiteiros foram os Srs. Barros e Verediano. Na garganta entre o Morro do Convento e a Uchuaria, onde ficava a guarita, morava um tal de Sr. Luiz Bucha. A banda do batalhão tocava no coreto da Praça da Bandeira.

Era a retreta, toda 4ª e domingo. Havia a missa na Igreja do Rosário e a seguir a retreta. Em volta da praça o pessoal ficava passeando, e era ali que muita gente arrumou namorada.

JVV: Na época da II Guerra o que acontecia em Vila Velha?
Ubaldo Senna: No batalhão ficou estacionado o 8º RAM – Regimento de Artilharia Montada. Instalaram canhões na velaria. Os cavalos pastavam lá para os lados do que é hoje o bairro Boa Vista. Para evitar o que foi feito com o Empório Capixaba em Vitória, com os bens de súditos do Eixo; o exército em Vila Velha vigiou os bens de uns alemães, dos Arens Lagens e de uma casa que morou o Sr. Alfredo, onde hoje é o BRADESCO.

As notícias da guerra vinham pelo rádio. De Vila Velha, do Batalhão, dos que foram na guerra, morreram o Cabo Ailson Simões, o Expedicionário Aquino e o Soldado Manuel Furtado. Na guerra, todo dia passava um dirigível de vigilância, um “Blimp” americano. Na época os alemães nazistas e os italianos fascistas eram vistos como poderosos que queriam dominar o Mundo.

JVV: E os comunistas?
Ubaldo Senna: Eram considerados quando apareciam uns “Bichos Papões”, e o partido uma “Seita do Demônio”.

JVV: E os espíritas?
Ubaldo Senna: A sede da União Espírita Cristã veio depois. Na época como quase todo mundo era católico, o espírita que aparecia era visto com reservas, como o “Seu João Ramirez” que morava perto do bar Piratininga.

JVV: Parece que Vila Velha já teve um Jornal...
Ubaldo Senna: Teve. Era do Sr. Miguelzinho Aguiar. Era impresso pelo Sr. Emiliano, no Beco do Ataíde. Era o “Partido Obreirista”, isto tudo na década de trinta.

JVV: E o cinema, como apareceu?
Ubaldo Senna: O cinema começou onde é a 1ª Igreja Batista e depois passou para o Continental, hoje Centro Cultural D. João Batista. Antes do cine Careta, então o dono era “Seu” Tininho. Passavam filme de Carlitos, do Chicabóia, de Tom Micks, tudo do cinema mudo. Na época tinha filme no domingo e no meio de semana. A entrada valia 500 réis. Eles anunciavam o filme com dois garotos carregando pelas ruas o cartaz num quadro de madeira.
Gritavam: “Hoje no CECI, belíssimo drama em cinco atos por Tom Micks”. E os garotos riscavam com uma tinta o braço de quem se aproximavam do cartaz e se guardasse a mancha não lavando entrava gratuitamente na sessão.

JVV: Voltando à questão ideológica, e os crentes em Vila Velha?
Ubaldo Senna: O 1º reduto, bastante conhecido era a “Escola Dominical”, de Dª Beatriz. Ficava perto da minha casa. Ela chamava para cantar hinos lá, para ver se conseguia adeptos. Minha mãe já dizia que o fanatismo religioso é o ópio do povo.

JVV: Como surgiu a Fábrica de Bombons Garoto?
Ubaldo Senna: Na praça Capitão Octávio Araújo, perto do radagázio, havia uma fábrica de balas “pelada” (bala sem papel de enrolar). O dono, Sr. Inácio Higino, morreu e “Seu” Henrique comprou as máquinas da viúva, e deu emprego na fábrica que abriu lá na Glória, que chamava “Esconderijo de Bode”, porque tinha muito cabrito por lá.

O Sr. Henrique tinha uma torrefação lá em Caratoíra, chamava Café Gato Preto, e começou a fábrica na Glória, onde havia uma fábrica de ladrilhos.

JVV: E a fábrica que havia na Prainha?
Ubaldo Senna: Onde é o Colégio Godofredo Schneider, era a foz do córrego Inserica, tinha um taboal e de tal forma que o mar adentrava por ali possibilitando um pequeno cais onde atracavam embarcações, os “pontões”. A fábrica era de um alemão, Dr. Fritz, que morava em frente ao dispensário da Praça da Bandeira. A fábrica era de beneficiar areia monazítica, que vinha de Guarapari. Dos pontões a areia ia em vagonetas para a fábrica. De lá, pelo porto de Vitória, ia para a exportação.

JVV: E o hotel do Sr. João Nava?
Ubaldo Senna: A história do hotel do Sr. João Nava, na rua Vasco Coutinho, se confunde com a do Batalhão. Ali ficavam alojados os militares que vieram organizar o que antecedeu ao 3º BC, que foi o 50º Batalhão de Caçadores. A sala de ordens deste Batalhão ficava em gente, na casa que hoje abriga o bar de “Seu Lalau”. O pessoal jazia rancho no Beco do Ataíde. O Sr. João Nava era o cozinheiro do batalhão, e cuidava da horta. No final das contas a mulher do Sr. João Nava, Dª Maria, quando enviuvou e depôs faleceu, passou o prédio para o Sr. Panizardi Augusto.

JVV: O que tinha na Praia de Inhoá, antes do aterro de onde surgiu a EAMES?
Ubaldo Senna: Tinha uma aldeia de pescadores, com choupanas. Havia uma fábrica de meias que cheguei ver funcionar. Era importante indústria de confecções da época. Mais a frente, com acesso por mar, tinha um armazém, antigo depósito de pólvora, hoje em ruínas. Em frente da praia tinha a famosa Ilha da Forca, engolida depois com o aterro da EAMES.

JVV: Fale sobre fatos pitorescos e pessoas antigas?
Ubaldo Senna: Graff Zepellin: Dirigível alemão que vi passar sobre Vila Velha na década de trinta.
Rua da Abissínia: Quando houve a guerra da Abissínia, quando a Itália invadiu a Etiópia, também nos anos trinta, apelidaram trecho da rua Arariboia, como Ruas da Abissínia, porque por lá moravam pessoas brigonas.

Crise de 29: Vila Velha era cidade dormitório, com grande falta de moradias. Como atividade econômica daqui era quase nenhuma, a crise pouco efeito trouxe para o marasmo do dia-a-dia. O povo alimentava-se muito de peixe.

Cidade: A estrada de rodagem para Vitória só foi usada com maior intensidade a partir dos anos trinta. A maioria usava os bondes para ir a Vitória.

Da curva do bonde, em frente à Atlântica, para lá, não existia praticamente mais nada. Ao fundo avistava-se, na encosta do morro da Jaburuna, a casa do Sr. Freitas Lima Os circos armavam-se onde hoje é o grupo Vasco Coutinho.

Ainda se via restos do cemitério por detraz da Igreja do Rosário. O atual cemitério foi construído com a desapropriação de terreno dos irmãos aranha, do Sr. Batista e de um tal de “Cavalo de Ferro”. Para o lado da Jaburuna, hoje chamado Olaria, existia uma fábrica de tijolos, daí o nome.

Antônio Ataíde: Conheci-o. Era um homem franzino. Tinha uma propriedade em Ataíde. Tinha o projeto da linha de bonde em 1894. É pena que nos mapas antigos muitos nomes saem trocados, até mesmo os feitos pelo Antônio Ataíde.

João Tagano: Pescador que morava pelas bandas do Morro do Moreno. Para vir à Vila Velha passava por Piratininga. Profetizou que seu nome seria eternamente lembrado. De fato, o lugar onde existia sua chopana ficou chamado de “Ponta do Tagano”, que figura em todos os mapas internacionais de navegação.

Rua Luiza Grinalda: Chamava Rua do Torrão. Havia a questão por ali do loteamento do morrinho, no Sítio do Padre José, que despertou disputa do Antônio Ataíde com a Igreja.

Água: Havia no cercadinho o poço do Sr. Milagre. A água para a caixa d’água vinha de Duas Bocas, por um cano que acompanhava a linha dos bondes.

Peladas: Havia um campo de peladas embaixo do morro da caixa d’água. Joguei muita pelada com o Darcy Queiroz, com Antônio “Charuto”, Calixto, João “Pelota” e outros.

Pombal: Ali tinha uma criação de pombos que servia de recreio de tiro ao alvo do Sr. Eugênio Queiroz.

Documento: Há o filme da colocação da pedra fundamental do colégio Marista. Vale a pena passar, que mostra inclusive a Prainha como era nos anos 50. Quem deve ter muitas fotos antigas de Vila Velha é Platão, filho de Inácio Higino.

Figuras ilustres e Populares: Havia o Coronel Sodré, falado de ser pai de “Sururu”. Tinha o carroceiro Ernesto Goggi. No mercado depois inexplicavelmente destruído, em frente da casa de Dr. Bezerra, o famoso Santos do açougue, as bancas de Seu João, de seu Getúlio e a de Seu Araújo. Tinha o chinês Xi Fook, com sua lavanderia. Tabelião era o Sr. Álvaro, e o defensor público o Sr. Antônio Quintaes e Eugênio Queiroz, entre outros.

JVV: O Sr. saiu depois de Vila Velha?
Ubaldo Senna: Saí em 1958 para o Engenho Novo, no Rio, e depois fui para a Urca, de onde venho sempre a Vila Velha.

JVV: Sr. Ubaldo o que o Sr. acha da História de Vila Velha?
Ubaldo Senna: É muito bom recordar, pois um povo sem História não existe.

 

Texto transcrito do: Jornal de Vila Velha,1991
Compilaçâo: Mônica Boiteux, 1991






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