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Guananira, a ilha doce - Por Samuel Duarte

Penedo e Beira Mar

Ilha das infâncias idas, Ilha das ilusões perdidas,

Ilha voltada para os ventos de todos os quadrantes,

Ilha que acolhe o ontem e o renova para as lutas do amanhã,

Quem poderá condignamente cantar-te,

Ó Ilha de Sol e de Mel?

 

Nos últimos dias de maio de 1535, dois escaleres da caravela Grorya, aproveitando a enchente da maré, subiam lentamente o "rio" Espírito Santo. Tripulavam-nos alguns dos colonizadores chegados de Portugal dias antes, na comitiva de Vasco Fernandes Coutinho. Os remos rangiam nas forquetas e os remadores, entre-abrindo os pesados trajes de lã, suavam copiosamente e amaldiçoavam o inclemente sol tropical.

Pequenas ilhas cônicas, esbanjando verdes, foram alcançadas e logo deixadas para trás. O caudal, cada vez mais estreito, alargou-se de repente e se transformou numa vasta e tranquila enseada. Na sua entrada um enorme rochedo se alteava, parecendo guardá-la. Pela sua margem direita, até onde a vista alcançava, eram somente colinas íngremes, cobertas de vegetação, prenunciando frescuras de sombras e de frutos sumarentos. Que terra seria aquela? Seria outra ilha?

Os exaustos remadores levantaram os remos e sorriram. Se existia mesmo o Jardim do Éden, eles haviam chegado às suas portas. Tudo conspirava para seduzi-los: as marolas calmas da baía, os bandos de garças brancas a traçarem riscas de giz sobre os manguezais, os perfumes que as brisas traziam e que lembravam flores desconhecidas e colmeias distantes. Porém, o que mais os seduziu naquela terra formosa foi a fragrância que se desprendia dela. Porque, tiveram que convir, aquela Terra cheirava bem, e era um cheiro capitoso que os atraía, que os enfeitiçava, que os escravizava, que os ligava a ela para sempre. Mas a tarde caía e era preciso voltar; e eles o fizeram, ainda encantados com a visão daquela Terra de sonho.

Dias depois, a 13 de junho, eles retornaram e desembarcaram. Trouxeram parcas viandas, mas farta munição para os seus arcabuzes de pederneira. Afinal, a Terra era desconhecida e o gentio que havia tentado estorvar o desembarque do Donatário, dias atrás, bem que poderia andar também por ali, à espreita. Urgia serem cautelosos. E, após desembarcarem e palmilharem umas poucas léguas à beira d'água, eles descobriram o óbvio: aquela era a maior e mais bonita de todas as ilhas que enfeitavam o abençoado "rio" Espírito Santo. E, por lembrarem que o santo do dia era o glorioso Santo Antônio de Lisboa, houveram por bem nomear a Terra nova, a pérola mais preciosa daquele cordão de ilhotas, com o seu nome.

Já no ano seguinte, após subirem o rio dito "da Passagem", eles comprovaram que a Terra de Sto Antônio era de fato uma ilha. Depois, ao procurarem atrair os índios com presentes e com promessas, eles souberam que os selvagens a chamavam de Guananira; e os mais bem informados deles se lembraram da Guanahani de Colombo, descoberta 43 anos antes. Mas, ao passo que a ilha do genovês evocava um lagarto, o iguana, ou iwana, na língua aruaque, a nossa Guananira evocava perfumes de flores e aromas de mel. Porquê? perguntará o leitor. É o que tentaremos esclarecer.

Nem sempre o substantivo verbal guara, na forma de participativo nominal de U (comer) se refere ao "que come, ao comedor", assim como sua forma contrata gua nem sempre é "enseada", como em Guanabara, ou "coisa redonda" como em Jaciguá. Guara ou gua, no sentido lato da palavra, significa também "o ente, o vivente, o morador" (T. Sampaio) ou "o que está, o que é de" (E Edelweiss). São exemplos clássicos: Guanandy (guanhandy), literalmente "aquele que é grudento, que é visguento" — alusão à seiva desta árvore.-, Guanhães (gua-nhã), "aquele que corre, o corredor", nome de uma tribo de Minas Gerais, Aguapé (gua-pé), "aquele que serve de caminho", a jigoga ou baronesa, e muitos outros. O gua de Guananira, se traduzido como "aquele que", confere ao topônimo uma tradução que é, a nosso ver, a mais correta de todas: "Aquele que é (gua) semelhante (rana) ao mel (eira ou ira)", Gua-(ra)na-n-ira, subtendendo-se "a ilha"; ora, "o que é semelhante ao mel" pode, perfeitamente, ser considerado "doce". Caldas Tibiriçá, ao considerar guana uma possível na-salização de guara, com o mesmo sentido de "o que costuma ser", vem reforçar a nossa dedução. Como vimos, estão praticamente de acordo os três mestres da língua tupi.

Em 1537, após o primeiro donatário havê-la doada a Duarte de Lemos, a ilha Guananira passou a ser conhecida como a "Ilha de Duarte de Lemos", ficando o nome de Santo Antônio restrito apenas à área em frente à Ilha das Caieiras. Quatro anos mais tarde, Vasco Fernandes e mais algumas pessoas gradas, fugindo dos ataques dos selvagens que não lhes davam tréguas na atual Vila Velha, mudaram-se para Guananira, e passaram a chamá-la, a partir de então, e nessa trêfega troca de topônimos tão a gosto do brasileiro, de "Vila Nova". Foi mais um nome que não prosperou. Pouco depois, para celebrar o último e renhido combate travado pela posse de Guananira, quando os silvícolas foram finalmente vencidos e compelidos a deixá-la, ela mudou de nome novamente: passou a chamar-se "Ilha de Vitória", nome que conserva até hoje e que devia levar os seus habitantes a se lembrarem com respeito, não apenas dos invasores que a nomearam, mas também dos seus donos que a defenderam de armas na mão.

Então, já agora "Vitória", mas sempre com seus ares balsamizados pelos perfumes doces das colmeias distantes, a "ilha semelhante ao mel", a antiga Guananira, após haver atraído os homens da ambição, atraiu também, - felizmente! -, os homens da religião. Em 1551 o piedoso e esquecido jesuíta Afonso Braz dava início à construção de uma igreja que seria, ao mesmo tempo, convento e escola. Tal como ocorreu em São Paulo, essa igreja viria transformar-se na sede do governo estadual, no atual Palácio Anchieta. A ação do inaciano como elemento coadjutor da colonização do solo espírito-santense foi relevante, posto que pouco lembrada. Ele não somente procurou elevar a moral e os costumes da população branca que então vivia, no ambiente novo e hostil, de maneira mais desregrada que os próprios índios, como também ajudou a conquistar, pelo coração, a cooperação do elemento autóctone.

Atualmente, da geração que lutou por Guananira, daquela que a conquistou ou daquela que a defendeu, nem a memória subsiste. Os implacáveis ventos do Tempo apagaram-na, como apagaram também, uma após outra, a lembrança de todas as gerações que por ela passaram.

A própria Guananira está mudada. Já não há mais colmeias ou flores silvestres perfumando seus montes altaneiros. Sua baía de águas calmas que serviu de abrigo para centenas de embarcações, dos veleiros coloniais aos graneleiros que transportaram o minério de ferro para ajudar a vencer a 2ª Guerra Mundial, agora está descaracterizada. Mal se consegue vê-la, cercada que está por pilhas e mais pilhas de "containers" abarrotados de artigos que o consumismo desenfreado considera indispensáveis à vida moderna. Os manguezais se encolheram e o mar recuou, assustado com tanto aterro, com tanta praia invadida. Já não há mais Ortizes a defender as suas ladeiras da sanha dos holandeses, já não há mais índios em procissão a carregarem os restos mortais dos seus abarés, já não há mais Caramurus e Peroás a se digladiarem por imagens de santos, já não há mais Fortes de S. João a defenderem a entrada do porto, já não há mais crianças mamelucas a recitarem as suas lições no Colégio dos Jesuítas. A velha e doce Ilha nem se reconhece mais. Tudo mudou. Apenas o seu vizinho Penedo, do outro lado da ria, continua o mesmo de sempre, tranquilo e imutável, assistindo desolado à transformação da amiga Guananira.

Há que se convir, no entanto, que apesar de tanta mudança, a alma da Ilha continua a mesma. Pouco se lhe dá que seus descendentes a tenham esquecido, que não a chamem mais pelo seu lindo nome de outrora: "Guananira, aquela que é doce, aquela que é semelhante ao mel". Nas raras noites em que o silêncio de outrora volta a imperar, nas raras noites em que as paixões humanas dão uma trégua aos seus frenéticos filhos e os deixam repousar, Guananira pode desfrutar da única alegria que ainda lhe resta: a de conversar com os Ventos. Eles são os seus últimos amigos, são os únicos que não a abandonarão jamais.

Então nós, que também somos afeitos a dialogar com ventos, no silêncio das nossas madrugadas insones, bem que poderíamos intrometer-nos na conversa e lembrar a Guananira os versos do grande Jorge de Lima: "Afinal, Ilha de Praias, / quereis outros achamentos / além dessas ventanias / tão tristes, tão alegrias?"

 

Fonte: Vitória, Cidade Sol – Escritos de Vitória nº 25, Academia Espírito-Santense de Letras e Secretaria Municipal de Cultura, 2008
Autor: Samuel Duarte.
Nasceu em Atílio Vívacqua, ES, em 1934. Formou-se em Odontologia. Romancista, poeta, cronista, ensaísta e tupinólogo. Pertence à ACL e à AEL.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2020

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