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História do Rio Doce e o Parque Real de Madeiras - João Eurípedes Franklin Leal

Rio Doce próximo da foz - Foto: André Alves NEPUV Universidade de Viçosa - Livro: O Vale do Rio Doce, CVRD 2002

A região que Vasco Fernandes Coutinho, primeiro donatário da capitania do Espírito Santo, recebeu como doação do rei D. João III, em 1534, já estava certamente, nesta data, com seu litoral reconhecido. O mais provável é que a expedição exploradora, que partiu de Lisboa em 10 de maio de 1501, comandada por Gaspar de Lemos, trazendo a bordo o navegador florentino Américo Vespúcio, foi a primeira a tocar o território do atual Espírito Santo. Esta expedição encontrou na região, a foz de um rio de grande expressão, em 13 de dezembro de 1501 e o denominou de rio Santa Luzia, por ser a data comemorativa desta santa católica.

O correto é que já, no mais antigo mapa do Brasil, o chamado Planisfério de Cantino, feito em 1502 e baseado nas descobertas de expedição de 1501, aparece a rio de Santa Luzia. O mesmo acontece no mapa do Brasil, elaborado em 1507, por Waldssemuller. Este rio, que na língua indígena era chamado de watu, posteriormente passou a ser denominado rio Doce, quando perceberam a caudalosa extensão de suas águas junto a foz. Entretanto, por décadas, toda a região ficou sem ter qualquer novo contato significativo com os descobridores portugueses.

A história da região do vale do rio Doce tem um primeiro registro, datado de 1567, quando uma expedição, entrou no sertão brasileiro, à partir de Porto Seguro, sob a chefia de Martim de Carvalho. Esta entrada percorreu o interior por mais de duzentas léguas e voltou com uma notícia que iria, por dezenas de anos, modificar a vida do rio. Era a notícia da existência, no interior, de uma serra das esmeraldas e que passou a atrair centenas de aventureiros. Já em 1572, Sebastião Fernandes Tourinho subiu o rio Doce com cerca de 400 homens, em busca das esmeraldas, retornando ao litoral de Porto Seguro pelo rio Jequitinhonha. Em 1598, o Governador Geral do Brasil, D. Francisco de Sousa quando de sua passagem pelo Espírito Santo ordenou que se fizesse uma entrada, em busca de esmeraldas pelo rio Doce. Esta entrada foi chefiada por Diogo Martins Cão, apelidado o Matador de Negros, que com cinqüenta brancos e muito indígenas, subiu o rio Doce, mas não teve qualquer sucesso, tendo que retroceder por causa dos ataques dos botocudos.

Muito importante foi a entrada, em busca da serra das esmeraldas, de 1611, pelo famoso Marcos de Azeredo, morador de Vitória, homem de posses e de grande audácia, que retornou sem atingir seu objetivo. Ele também usou de sua expedição para elaborar, com seus conhecimentos, uma carta geográfica do Espírito Santo, em 1612, que foi básica para todos os mapas posteriores e especialmente para atlas elaborado, em 1631, pelo geógrafo real João Teixeira Albernaz.

Em 1621, o padre João Martins e o sertanista João Fernandes Gato chefiaram outra entrada pelo rio Doce, mas sem grandes resultados. Em 1624, este mesmo padre João Martins, acompanhado do padre Antônio Bellavia, subiu o rio Doce e retornou acompanhado de cerca de 450 indígenas paranaubis (mares-verdes). A febre pela procura da serra das esmeraldas estava atingindo seu auge e o padre Inácio de Siqueira, em 1636 e em 1641, percorreu o rio Doce em busca da serra. Na década de 1640 foi intenso o interesse na busca das esmeraldas pelo rio Doce e a mais importante de todas as expedições foi organizada, por ordem do rei, em 1646, sob as chefias dos irmãos Antônio de Azeredo Coutinho e Domingos de Azeredo Coutinho, filhos do mencionado Marcos de Azeredo. Esta expedição subiu o rio Doce com 25 grandes canoas, 36 brancos e 180 indígenas e retornou após quatro meses de viagem temendo inundações do rio e falta de mantimentos. Em carta ao rei, os irmãos Azeredo Coutinho informaram ter encontrado pedras negras, que julgavam ser esmeraldas queimadas pelo sol, mas que se perderam porquanto as canoas que as carregavam foram afundadas pela correnteza do rio Doce. Esta expedição custou ao governo 4.000 Cruzados, valor apreciável para a época.

Outras expedições aconteceram, como a de 1660, chefiada por João Correia de Sá, a de 1664 por Agostinho Barbalho Bezerra e a de 1683 por Garcia Rodrigues Pais (filho de Fernão Dias Pais) todas pelo Rio Doce, em busca de esmeraldas e sem sucesso, assim como quatorze entradas organizadas por Francisco Gil de Araújo, donatário do Espírito Santo entre 1675 e 1685. A serra das esmeraldas nunca existiu. O ciclo da busca da serra das esmeraldas chegou ao fim no término do século dezessete, no mesmo tempo que, pelo mesmo rio Doce, chegou a mais esperada notícia que Brasil e Portugal desejava: descobriu-se o ouro. Foi em 1693, que o bandeirante Antônio Rodrigues Arzão encontrou o primeiro ouro no Brasil, no rio Casca, afluente do rio Doce em Minas Gerais. Este bandeirante desceu o rio Doce com o ouro encontrado e se dirigiu para Vitória, onde foi publicamente noticiada a tão esperada descoberta. Em Vitória foram cunhadas duas medalhas com o ouro encontrado, ficando uma para o bandeirante e outra para o capitão-mor do Espírito Santo, João de Velasco e Molina. Já, em 1702, subiu o rio Doce, uma expedição chefiada por Francisco Monteiro de Morais, com vinte barcos e quarenta indígenas em busca de ouro mas sem resultado. Nesta época realmente iniciou, na região de Mariana e Ouro Preto, a intensa mineração do Ouro que foi encontrado em grande quantidade e qualidade. Um novo ciclo econômico iniciou no Brasil.

Mas esta descoberta de minas de ouro trouxe para o Espírito Santo e para o vale do rio Doce uma enorme e pesada conseqüência: o Espírito Santo tornou-se a "defesa natural das Minas Gerais". Para evitar o contrabando de ouro das minas e para não facilitar invasões estrangeiras, via Espírito Santo, em toda a região foi proibida qualquer abertura de caminhos ao interior e de navegação pelos rios. As florestas, os indígenas, as doenças e a ausência de caminhos foram estratégias de Portugal para evitar descaminhos ou contra-bandos do ouro. Vitória tornou-se uma vila altamente fortificada, exageradamente para seu tamanho, não somente para sua autodefesa, mas para não permitir que estrangeiros invasores chegassem às Minas Gerais. Se a vida do rio Doce, nos séculos XVI e XVII, foi marcada pela busca às esmeraldas, no século XVIII foi estagnada por causa do ouro de Minas. Por todo este século, o interior do Espírito Santo ficou paralisado, estrategicamente, pela política governamental portuguesa de defesa natural das minas.

Enquanto Minas Gerais era tomada pela riqueza originária da mineração aurífera e o Rio de Janeiro progredia por ser o porto de saída do ouro e até tornava capital da colônia do Brasil, o Espírito Santo pagava o preço da incômoda vizinhança. Esta situação de bloqueio ao Espírito Santo durou até o início da decadência da exploração do ouro, no final do século dezoito. O governo da capitania do Espírito Santo voltou a interessar-se pelo vale do rio Doce e pela sua riqueza vegetal enviando a Portugal amostras de madeiras locais, acompanhadas de relatórios que exaltavam as qualidades da região, falando da riqueza pesqueira, inclusive da existência e profusão do manati ou peixe-boi. As amostras de madeiras enviadas foram as seguintes: peroba, pau-brasil, jacarandá, tapinhoã, arariba, vinhático, ipê, sapucaia, cabiuna, grauna, pau-ferrro, sobro, sejipira, poalha, teacica, bálsamo e cacau.

Mas o grande entusiasta pelo rio Doce, homem que marcou uma nova realidade para a região, foi o governador Antônio Pires da Silva Pontes, mineiro de Mariana, professor da Academia da Marinha de Lisboa, membro da Academia de Ciências de Lisboa, geógrafo e amigo do todo poderoso Conde de Linhares. Homem culto e inteligente foi nomeado para governar o Espírito Santo no período de 1800 a 1804 e incumbido oficialmente de dar prioridade na abertura de vias de comunicação com Minas Gerais (o ouro havia quase acabado), "civilizar" os indígenas, desenvolver a agricultura e conservar as matas. Tomou posse, em Vitória, a 29 de março de 1800, no antigo Colégio dos Jesuítas e sua primeira grande iniciativa foi mandar fazer uma planta do rio Doce, desde a foz até a cachoeira das escadinhas. Em seqüência mandou estabelecer no vale do rio Doce os chamados quartéis, que eram guarnições militares destinadas a proteger os viajantes, os moradores e a controlar possíveis contrabandos de ouro, e pedras preciosas. Ele criou os seguintes quartéis: Regência Augusta (em homenagem ao Príncipe D. João), Comboios, Coutins (em homenagem a família do amigo Conde de Linhares, Rodrigo de Sousa Coutinho), Lorena (em homenagem ao Governador de Minas Gerais, Bernardo José de Lorena), Aguiar (em homenagem ao Marques de Aguiar) e Porto do Sousa (de novo em homenagem ao Conde de Linhares que também era da família Sousa). Em 8 de outubro de 1800 assinou o acordo de limites, no Porto do Sousa (Baixo Guandu), estabelecendo as divisas entre Espírito Santo e Minas Gerais. O Governador Pires ficou impressionado com as possibilidades do vale do rio Doce, procurou povoar a região e declarou o rio aberto à navegação, comunicando o fato às firmas comerciais de Vitória, Rio de Janeiro, Salvador e Lisboa. Fez ele um estudo dos tipos e qualidades das árvores e tentou organizar na ilha do Príncipe, em Vitória, um jardim botânico. Mas seu grande marco administrativo foi a idéia e a criação do que podemos acreditar ser, o primeiro parque de conservação florestal no Brasil e possivelmente no continente americano, o Parque Real de Madeiras de Regência Augusta.

Este parque destinava-se a preservação da floresta e especialmente das madeiras ditas de lei. A área estabelecida para o parque tinha como limite sul toda a margem norte do rio Doce, desde a foz até a cachoeira das escadinhas e como limite norte toda a margem sul do rio Cricaré ou São Mateus. A margem sul do rio Doce foi estabelecida como área para a concessão de terras ou sesmarias visando incentivar o povoamento e o cultivo na região. Criado em 1800, este Parque Real de Madeiras foi, durante todo o governo de Pires Pontes, objeto de atenção governamental.

Em 1804 o Governador Pires Pontes foi substituído por Manoel Vieira da Silva Tovar, que manteve a política de preservação do rio Doce e de seu desenvolvimento. Ele visitou a região, mandou reconstruir a antiga aldeia do quartel de Coutins, que fora destruída por indígenas e deu-lhe o nome definitivo de Linhares, assim como denominou de Pancas ao afluente do rio Doce, em homenagem também ao Conde de Linhares, poderoso Ministro do Reino, que também tinha o título do Senhor de Pancas (vila de Portugal). O governador Tovar administrou o Espírito Santo até 1811, quando foi substituído pelo governador Francisco Alberto Rubim. Tovar enviou amostras de madeira a Portugal, em 1806 e constava exemplares de jacarandá, garataia, araribá, massaranduba, araqui, grabu-açu, camará-açu, vinhático, cerejeira, pequiá, canela e tapinhoã, todas retiradas do então Parque Real de Madeiras de Regência Augusta.

Entretanto toda esta política fechou seu ciclo no governo de Francisco Alberto Rubim, que visitou a região e informou, em relatório de 1816, que Linhares nesta data possuía 36 residências e 224 habitantes. O novo governador, optou pela abertura de nova ligação terrestre entre Vitória e Ouro Preto/ Mariana, em detrimento da ligação fluvial via rio Doce. Esta estrada, dita Estrada do Rubin, seguia um trajeto próximo da hoje Vitória - Belo Horizonte, e contemplou o sul do Espírito Santo com uma política nova de desenvolvimento. A partir deste fato foi o vale do rio Itapemirim que tornou-se o foco central das ações governamentais.

O rio Doce deixou de ter importância estratégica e por muitas décadas permaneceu quase intocado. Somente mais tarde, com a ocupação da área, principalmente por colonos italianos, alemães e poloneses, com a chegada do cultivo do café e com a construção da ferrovia, que a região, passou a ter novo ciclo de povoamento.

Infelizmente a destruição de sua cobertura florestal foi desordenada, massiva e devastadora, especialmente após a década de quarenta do século vinte e o Parque Real de Madeiras de Regência Augusta desapareceu, inclusive como notícia histórica e tornou-se hoje uma curiosa e inusitada amostra da política administrativa de Portugal, que teve iniciativas brilhantes como esta, ao lado da exploração predatória colonial tradicional.

 

Fonte: Espírito Santo: História, realização: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES), ano 2016
Coleção Renato Pacheco nº 4
Autor: João Eurípedes Franklin Leal
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2016

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