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Legislação dos meios de comunicação, a matéria - Por Álvaro José Silva

Movimento Estudantil UFES

Afora poucas obras de ampliação de setores estratégicos - biblioteca, restaurante e teatro universitário, por exemplo - pouca coisa difere a Universidade Federal do Espírito Santo, a UFES, no plano físico, do que havia lá em meados da década de 1970 para os dias atuais. Ainda continua sendo o mesmo Campus onde um belo dia estava eu em sala de aulas quando entrou o advogado Namyr Carlos de Souza. Ele seria o professor da cadeira "Legislação dos Meios de Comunicação".

Não se dizia isso àquela época, até porque seria perigoso fazê-lo, mas a função do professor Namyr numa sala de aulas tomada principalmente por jornalistas não era explicar peculiaridades legais sobre legislação de empresas jornalísticas. Nos perigosos anos daquela década, ápice do regime ditatorial brasileiro iniciado no dia 1° de abril de 1964, a matéria curricular tinha por objetivo maior mostrar aos alunos o que eles deveriam fazer para evitar serem incursos em quaisquer dos envenenados artigos da Lei de Segurança Nacional (LSN). Era uma cadeira com o objetivo de deixar os alunos/jornalistas distantes da "Cadeira do Dragão", por exemplo. Nem Namyr nem nenhum outro dos professores falavam nas aulas abertamente sobre isso. Mas ao lecionarem as peculiaridades das legislações dos "meios de comunicação", a Lei de Segurança Nacional era a verdadeira vedete. Ela e o "Decreto 477", lei de essência nazifascista que permitia ao "regime militar" expulsar do meio universitário, notadamente das universidades do Estado, os alunos que fossem "óbices" aos projetos dos governantes da ditadura de então.

A UFES era dirigida por gente que apoiava a ditadura. Ou então por quem tinha medo de dizer que não. Os professores eram, em sua maioria, contrários ao que acontecia. Mas a não ser em conversas reservadas, ninguém expressava isso abertamente. Em sala de aulas, melhor não. Dentre os alunos de cada sala, de cada curso, sobretudo na área de Ciências Sociais, era sempre possível haver um informante. E o Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJE) estava estrategicamente situado onde era possível chegar com facilidade. Além dos estudantes do Curso de Comunicação Social - com foco para jornalismo, relações públicas e publicidade e propaganda - havia lá também os de Direito, Sociologia, Filosofia e outros. Vejam que perigo!

Mas a vida estudantil era prazerosa. Não havia, por exemplo, bullying. E até onde me recordo, nem ao menos o termo era conhecido. O que havia era "gozação", e muita. Mas todo mundo a levava na brincadeira. Na sacanagem. Inclusive quando se tentava demonizar tanto o regime quanto seus apoiadores de plantão. No Restaurante Universitário (RU), então situado no Centro, ao início da Avenida Jerônimo Monteiro, a gente podia comer diariamente um "agente da KGB", o bife que, segundo a garotada, era "frio, duro e com nervos de aço". Eu também apreciava o "chuá pam pam", o feijão. O chuá era o barulho da água caindo no prato. O pam-pam, dos caroços que, vez ou outra, teimavam em cair junto com ela. Mas o gostoso mesmo era ir lá aos sábados para degustar um irresistível "carnaval na zona". E ficava mesmo gostosa aquela "mistureba" do que sobrara da véspera. Ainda dá saudade me lembrar do mexidinho da UFES. Mas voltemos ao assunto.

Os riscos acompanhavam o dia-a-dia dos estudantes das décadas de 1960 - segunda metade - 1970 e 1980 - primeira metade. Trocando em miúdos, dos 21 anos de chumbo. E eles estavam na própria universidade. Para nossa sorte, na maioria dos casos, os "007" eram facilmente identificáveis. O "professor" Alberto Monteiro era o mais risível de todos. Ligado ao Centro de Educação Física, usava o "477" como instrumento de persuasão. Um dia, fui - e não me lembro do porquê - até a sala que ele ocupava, não na UFES mas na FAFI. Entrei lá e havia quadros na parede. Vários. Não eram obras de arte ou fotos de família, mas sim dizeres com molduras. Quase todas começavam com "O homem de informação.." e iam embora. Cada uma resumia uma das aulas que ele havia recebido, quem sabe no SNI, quem sabe na Escola Superior de Guerra (ESG). Só não disseram a ele o significado da palavra sigilo. E Alberto a desconhecia totalmente.

Mas o "homem de informação" meio bobão sabia falar alto e ameaçar. Tanto que seu apelido na época era Kung Bó, a mistura da estupidez do Kung Fu com a burrice do Pedro Bó, personagem retardado de então. Um dia, início de ano letivo, alunos da Educação Física procuraram por mim. A piscina e outras instalações do Centro estavam abandonadas, cheias de mato, impossível de serem usadas no ano letivo que se aproximava. Editor de Esportes que era, levei um fotógrafo lá e fizemos fotos de tudo aquilo. Olhei, ouvi pessoas e no dia seguinte quase uma página de jornal estampava a manchete: "Lixo, lama e lodo, mural da Universidade Federal".

Foi um pandemônio. Cruzei com Alberto no CCJE e, quando pensei que ele se dirigiria a mim para falar alguma coisa, ele simplesmente adiantou o passo e sumiu pelos corredores entre prédios daquele mundo de construções planas e baixas, separadas passarelas, vegetação rasteira e árvores. Mas quando cheguei a A Gazeta para trabalhar, depois das aulas, o General Darcy Pacheco de Queiroz, Diretor de Redação, queria falar comigo. Melhor explicar. Quando houve o golpe de estado de 1° de abril de 1964, o jornal A Gazeta tinha uma postura francamente pró-Jango. Fazia até mesmo editoriais em defesa do Estado de Direito. "Valente" como sempre, a diretoria da empresa queria se proteger. O general Darcy, que havia sido comandante da Polícia Militar capixaba, era cunhado do senador Carlos Lindenberg, irmão do diretor-presidente Eugênio Pacheco de Queiroz e tio do também diretor Carlos Fernando Monteiro Lindenberg Filho, o Cariê. Missão: agradar a ditadura a qualquer preço.

Mas o "General" era para lá de gente boa. Preferiu expor a todos a nova linha editorial da empresa, se é que se pode dizer assim, e pedir para que nos colocássemos diante da nova realidade. Foi o que todo mundo fez. E isso não era uma exceção no resto do Brasil.

Naquela ocasião, metade do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão, trabalhava na redação de O Globo. Roberto Marinho sabia disso e, contanto a linha editorial de sua empresa fosse seguida, tudo certo. É célebre uma frase atribuída a ele: quando um general de plantão levou-lhe uma lista dos "subversivos" da empresa para que fossem demitidos, teria dito: "Nos meus comunistas ninguém bota a mão". Ou então, "general, o senhor dá ordem unida no seu quartel e deixa o meu comigo". Mas, no dia seguinte, o diretor Darcy Queiroz me chamou para conversar. Falou que Alberto Monteiro havia dado um telefonema, reclamado e dito que eu só não seria enquadrado no "477" em homenagem a ele. E, olhando para mim, disse em sua sala na sede da Rua General Osório: "Agora tome juízo, seu sacana. Consulte a direção de redação antes de fazer matérias como essa". E também falou sobre isso com o chefe de redação José Antônio de Figueiredo Costa, o Zé Costa, que passou a me marcar qual bom zagueiro.

Tudo isso era levado à UFES e discutido por uma espécie de coletivo que a gente tinha lá. O mesmo acontecendo com o que se passava em A Tribuna, nas TVs e rádios locais. Uma linha de atuação era construída a partir disso. Como se fosse uma espécie de blindagem do pessoal "subversivo". Afinal, o professor de Educação Moral e Cívica sempre deixava claro que um dos objetivos da "Revolução" era o de afastar os "óbices" a ela. Ninguém tinha a menor sombra de dúvida quanto a isso...

Naquela época, ao menos no que se referia ao Curso de Comunicação, professores e alunos eram em boa parte jornalistas. E não raro acontecia, como ocorreu comigo, de minha professora de Jornalismo Impresso ser minha redatora em A Gazeta. Ela me dava aulas de manhã e ao mesmo tempo, quando chegava à redação, se tornava minha subordinada. Muitos dos professores trabalham ou vivem aqui até hoje. Como Roberto Belling, atualmente secretário municipal em Vila Velha. Tânia Mara Ferreira, na época casada com Belling, também lecionava e trabalhava no jornal. Erly dos Anjos era professor de sociologia. É sociólogo até hoje. Jane Mary Abreu Marques, atualmente uma das mais competentes marqueteiras políticas no Estado, me dava aulas pela manhã para ser minha redatora à tarde. E como com eles, isso ocorria com outros.

Mas de todos quem marcava mesmo presença era Domingos Freitas Filho, o professor do qual todos gostávamos e que lecionava Teoria da Comunicação (Fundamentos Científicos da Comunicação/Sociologia da Comunicação). Um belo dia, ele nos mandou ler, numa sexta-feira bem pela manhã, um livro imenso, de cerca de 500 páginas. E com a orientação: na segunda-feira cada um de vocês me traz uma sinopse do livro e vamos discutir o assunto em sala de aula. Caramba; todo mundo trabalhava. Na segunda-feira, os resumos foram todos entregues. Ele ficou tão feliz que discursou sobre a obra sozinho. A gente só concordava. Ao final foi embora feliz e deve ter dado dez para todos. Comentou com Lino Geraldo Resende, aluno também e muito próximo dele: "Viu? Fiz a classe toda ler o livro!". Resende deu uma risada sua, bem tipicamente gostosa e disse: "Domingos, aqui só tem jornalista, cara. Um leu, passou o resumo para os demais e todos fizeram os resumos um pouco diferentes". Domingos engoliu em seco sem dar mostras de que se sentira enganado.

Grande parte dos jornalistas que ainda hoje trabalham nos meios de Comunicação do Espírito Santo — claro, os mais veteranos — formaram-se nas duas primeiras turmas do Curso de Comunicação da UFES. Cito alguns nomes dentre os vestibulandos de 1976: Abdo Chequer BouHabib, Maria Terezinha Bertollo (que depois da formatura se casaria com Abdo), Namy Chequer Bou-Habib (vereador do PCdoB por anos), Tannit Figueiredo Souza Mario, José Nunes Dias (falecido), Jonas Rosa dos Reis, Ilda Castro de Oliveira, Suzana Tatagiba Fundão, Carlos Henrique Gobbi da Silva, Luiz Paulino Trevisan, Ademir Ramos dos Santos (falecido), Maria Angela Pellerano, Fernando Machado Ferreira, Rita Bridi, Maria do Carmo Correia de Souza, Márcio de Castro Lobato, Maria Celeste Franceschi Espínola e Paulo César Dutra, além de outros como eu. Os demais deixaram a profissão.

O curso não foi uma festa, mas tampouco permitimos que o clima de velório do Brasil contaminasse nossa passagem pela Universidade Federal. E muita gente contribuía com isso. Por exemplo: como eu poderia adivinhar que, décadas mais tarde, votaria pelo ingresso de minha professora de Língua Portuguesa, Bernadette Lyra, para ser "confreira" de Academia Espírito-santense de Letras? Naquela época era impossível pensar assim. Quanto aos riscos, tinham de ser driblados. Certa feita um "aluno" sentou-se à mesa onde eu comia um sanduíche na cantina. Puxou assunto e logo perguntou como poderia fazer para ingressar no Partido Comunista. Olhei para ele como quem vê o diabo: " - Credo, amigo. Como vou saber se corre o boato de que eles comem criancinhas?".

Numa outra ocasião, um aluno de Direito, Laércio Antônio Pavesi, que todos tinham como informante do SNI, pediu para falar em uma aula, pois era candidato a vereador pela Arena Jovem. Deixaram. Em dez minutos de discurso, ele citou umas cem vezes o termo comunismo. Ao final, pedi a palavra: " - Laércio, você falou mais de cem vezes o termo comunismo. Deve ser um profundo conhecedor da matéria. Como eu sou ignorante no assunto, defina para mim o que isso quer dizer". Ele encheu o peito e mandou bala: "O comunismo é um negócio, que quando alguém gosta de um troço todo mundo é obrigado a gostar também". Um universitário!!!!!

Finalmente, chegou o dia da formatura. Meus pais vieram de São Paulo para acompanhar a solenidade do Teatro Carlos Gomes na noite de 09 de agosto de 1979. Com tudo lotado, o representante da reitoria falou uns dez minutos tecendo loas à ditadura militar. Em seguida, foi chamado o orador da turma, Abdo Chequer, que triturou o regime político brasileiro, enquanto o representante do reitor se contorcia de raiva antes de tomar novamente a palavra para desdizer tudo o que havia sido dito, antes da entrega dos diplomas. Papai não conhecia ninguém. E, ao ser anunciado o nome do orador pelo microfone ele olhou para mim e me fez dar uma grande gargalhada: -"Caramba, filho, esse turco tem cheque até no nome!"

 

Fonte: UFES: 65 anos – Escritos de Vitória, 33 – Secretaria de Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), 2019
Conselho Editorial: Adilson Vilaça, Ester Abreu Vieira de Oliveira, Francisco Aurélio Ribeiro, Elizete Terezinha Caser Rocha, Getúlio Marcos Pereira Neves
Organização e Revisão: Francisco Aurélio Ribeiro
Capa e Editoração: Douglas Ramalho
Impressão: Gráfica e Editora Formar
Foto Capa: David Protti
Foto contracapa: Acervo UFES
Imagens: Arquivos pessoais
Autor: ÁLVARO JOSÉ SILVA
Jornalista e Escritor. Pertence à Academia Espírito-santense de Letras.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2020

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