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Memórias da Redação – Por Márzia Figueira

Márzia Figueira

Corriam os anos de chumbo, em marcha pesada sobre o Brasil oprimido — além de humilhado e ofendido. A censura calava os jornais. Se mulher dava azar em navio, na redação era tabu. Jornalista era machão, falava aos berros, xingava tudo quanto é palavrão, cuspia no chão.

Mulher, pra cruzar aqueles umbrais secretos, tinha que portar salvo-conduto, exibir credencial, ou arranjar padrinho. Era proibido ultrapassar. O antro de perdição não era lugar para delicadas representantes do sexo frágil, ali ainda mais menosprezado. Mulher na redação entrava pra ganhar, não pra competir. Mesmo porque, quem ia deixar? Guerra é guerra, e na redação daquele tempo valia tudo. Até intriga, fofoca, boato, maldição, tudo que jornalista tanto curte e gosta. Até hoje.

Os machos da espécie e da classe faziam suas apostas: "Ela não dura aqui uma semana, um mês." Ao vencedor, as batatas (assadas), os louros, toda honra e toda glória. Mulher que teimava, forçava a entrada, e saía queimada, era escrachada: "Quem mandou entrar? E entrar sem bater? Não bateu, levou..." Jornal era reduto de Homem com H (maiúsculo), mesmo que negasse fogo na Hora h (minúsculo...). Quem faz a fama deita na cama. E mulher que insistisse em penetrar nas másculas hostes podia até não deitar na cama, mas levava a fama... Coisas dos idos de 70. Que os anos não trazem mais.

Na verdade, nunca mais. A redação hoje é florida e colorida. Tem mais mulheres que homens e um clima ameno. Viemos, vimos e vencemos. As jornalistas e os jornalistas convivem em paz ou trégua. Que a profissão, como se sabe, é mais ou menos comandada por aquele célebre pega-pra-capar. Então, na eterna luta feroz sexo versus sexo, entre mortos e feridos salvam-se todos. Se não todos, pelo menos a maioria.

Atravessei a barreira em 1973: entrei em A Gazeta há 23 anos, embora fosse cronista colaboradora desde 1968. Fui, portanto, testemunha ocular da história, que nem o Repórter Esso... Participei das mudanças e rolanças, podia até escrever um livro. Mas só se fosse a quatro mãos. Com Chico Flores, por exemplo, que faz parte da minha carreira desde o início dos tempos. Ou Paulinho Maia, idem ibidem. Poderia ser um livro de parceria com o Walmor, o Rei Momo Primeiro e Único dos nossos carnavais e que, nas horas vagas, era repórter de Polícia... Ou com o Nabor Vidigal. E outros colegas de saudosa memória, como Darly Santos, Carlos Chenier, Osmar Silva. E Amylton de Almeida, então? Que reinava soberano na Agenda, nome antigo do Caderno Dois, e foi o último a depor as armas. Entrincheirado, resistiu, à minha incômoda presença enquanto pôde. Depois acenou bandeira branca, amor. E rendeu-se.

Naquele tempo batalhavam na redação as combativas companheiras Lena Mara Gomes, Clara Lemos, Heloisa Sant'Ana, e outra Heloisa de que esqueci o sobrenome. Pois entrei na redação com a cara (maquilada) e a coragem (do sonho realizado), mas não de sola, como muitas colegas que vieram depois de, mim — e do dilúvio... Entrei de salto alto, saia justa e cabelo em, coque-banana, muito em moda na época, no melhor estilo dondoca. A troca por confortáveis sapatos baixos, calça jeans azul e, desbotada, rabo de cavalo, foi imediata. Dei o devido grito de; liberdade e fui à luta. Como dizia meu avô, português legítimo de Póvoa de Varzim, com seu sotaque carregado, "cáim não tem competência não sestablece". Competente, me estabeleci.

O diploma debaixo do braço — fiz História na Fafi, passei em primeiro lugar no vestibular, e deixei Plínio Marchini, que prestou exame a meu lado, com cara de quem comeu e não gostou nem um pouco — foi parar numa gaveta e depois no baú, de onde até hoje não foi resgatado. Em Vitória não havia faculdade de Comunicação, e História foi a opção. O que não me impediu de fazer todo curso de jornalismo que pintasse, e ter professores da categoria de um Alvino Gatti, um Eugênio Sette, um Renato Pacheco, meu mestre e guru desde a Fafi.

O general Darcy Pacheco de Queiróz era diretor de A Gazeta, muito amigo de meus pais. Foi por seu intermédio que me enquadrei garbosamente na equipe de jornalistas. Não como repórter, que não tenho faro pra furo, mas como redatora, que minha paixão é escrever. A Secretaria de Texto acabara de ser criada pelo editor-chefe Marien Calixte, e Serginho Egito era o titular da nova pasta. Entrei inaugurando uma vertente de redator, raça que anos mais tarde o também colega de redação, Cláudio Lachini, chamaria de "nefanda": a dos copidesques. Que se grafava como em inglês, copydesk. Éramos, pois, redatores/copydesk.

Os "cópis" faziam parte da dita Secretaria do Sergito e se dividiam em duplas, de acordo com o horário de trabalho, jamais excedendo o tempo regulamentar, ou seja, cinco horas, como reza o contrato de trabalho e a carteira profissional. Lena Mara e eu pegamos o horário da tarde e copidescávamos (o verbo copidescar foi inventado por nós, claro) tudo que nos chegasse às mãos, ou fosse atirado em nossas mesas. Desde matérias do jornal do dia, a suplementos, como o semanário, A Gazetinha, o agropecuário. Etc, etc, etc. Até o término da partida, e apito final.

A diagramação não tinha os plenos poderes que hoje exerce tiranicamente, mas já mandava um bocado. Através do Nen, irmão de Cláudio Simões, que depois lhe sucedeu na função, Peninha, que estudava Medicina e hoje é pediatra em Brasília, os irmãos Cotts, Milton e Marcelo. E Erildo, um dos Anjos de Barra de São Francisco, de onde se origina Tinoco, apelido de Edvaldo, também dos Anjos, a ovelha branca (ou pelo menos malhada) da família... Tinoco era redator também e quando mudamos para a nova sede em Bento Ferreira acabou sendo editor do Caderno Dois, como Erildo, primeiro irmão e editor, onde atualmente, como antigamente, milito. Mas militante mesmo era Tinoco, só que do PT. Eis que, por essa opção de gosto duvidoso, hoje rege os destinos da RTV, oferecendo seus prestimosos ser-viços ao governo que ajudou a eleger — Deus lhe perdoe.

Por cinco anos fui editora de A Gazetinha, com Clara Lemos e Lam Shuk Yee. Aí voltei ao ninho antigo. Heloisa Sant'Ana foi ser fotógrafa. Ângelo Passos, que brigou comigo por causa de uma máquina de escrever, saiu do jornal e retornou. Jairo de Britto, que declarou uma vez que eu não era jornalista mas "uma senhora que trabalha em jornal", sumiu. A roda do tempo girou, ele engordou e virou um senhor que não trabalha no jornal. Álvaro Silva mantém a Editoria de Esporte — e nossa boa e velha amizade — em alta. Aninha Gueller continua a fazer o melhor café, A Gazeta cresceu, se expandiu em rádios e TV, virou Rede Gazeta de Comunicações, se informatizou. Agora navega na Internet. Os jornalistas, em coro, cantam: "Navegar é preciso, viver não é preciso..." Um tanto desafinados, é verdade. Mas no peito dos desafinados também bate um coração. E, apesar das aparências, alguns ainda são capazes de ouvir e entender estrelas.

 

Fonte: ESCRITOS DE VITÓRIA — Imprensa – Volume 17 – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo - Jorge Alencar
Sub-secretário Municipal de Cultura e Turismo - Sidnei Louback Rohr
Diretor do Departamento de Cultura - Rogério Borges de Oliveira
Diretora do Departamento de Turismo - Rosemay Bebber Grigatto
Coordenadora do Projeto - Silvia Helena Selvátici
Chefe da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim - Lígia Maria Mello Nagato
Bibliotecárias - Elizete Terezinha Caser Rocha e Lourdes Badke Ferreira
Conselho Editorial - Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Revisão - Reinaldo Santos Neves e Miguel Marvilla
Capa - Amarildo
Editoração Eletrônica - Edson Maltez Heringer
Impressão - Gráfica e Encadernadora Sodré
Autora do texto: Márzia Figueira
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2018

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