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Índios – Por Monsenhor Pedrinha, em 1891

Índia botocotuda

"O índio é uma criança, nem mais nem

menos; deixá-lo, pois, entregue às leis da

natureza é uma verdadeira barbaridade".

Dr. J.M. da Silva Coutinho

 

"Foi a pouco e pouco desaparecendo das

brenhas a brilhante luz da religião, até

apagar-se de todo...reapareceu a selvageria e

barbaridade".

Dr. César Augusto Marques.

 

Os botocudos, famosos pelo grande número, antropofagia e ferocidade, catequizados uns de seus membros, e batidos e dizimados sempre em muitas escaramuças, fugindo e se apertando à proporção que se ia alargando a civilização, vieram afinal se meter e esconder na margem esquerda do Rio Doce, encontrando em suas grandes e incultas florestas vivenda mais  desassustada e generosa.

Em 1832 o espírito de rapina, e por ventura de vingança, levou-os por muitas léguas de matas até S. Mateus, donde foram duramente repelidos, pagando a ousadia e bruteza do acometimento com 140 dos mais esforçados, a quem acertaram as balas de matar.

Era então muito numerosa a tribo dos caboclos, visto como, em 1824, "o grande número de selvagens errantes pelas florestas do Rio Doce levou o governo a criar um diretório", despendendo só nos aldeamentos para cima de cinqüenta contos, com pouco ou nenhum proveito do gentio; que mais curou o governo na proteção dos diretores, do que no bem-estar e civilização dos dirigidos.

Até à véspera do levante militar sustentava ainda o governo o aldeamento Mutum, já muito decadente, sítio à margem esquerda do Rio Doce, cerca de duas léguas abaixo do Porto de Souza e 17 léguas acima de Linhares, donde andam sempre arredados os índios nunca menos de doze léguas.

Os diretores imitavam-nos muito bem nesses escrúpulos de aproximação, pois de ordinário não residiam no aldeamento, indo de longe em longe, quando julgava tempo, levar alguma farinha, legumes, cachaça (de que já começam os índios de gostar), mal chegando para uns vinte que acertassem de sair então ao aldeamento.

Daí já se pode colher a razão de não se conhecer o número dos índios que povoavam aquelas matas; porquanto dos diretores nada se pode alcançar, e muito menos do gentio, embuçado sempre em timidez e má fé. Os que hão saído das brenhas por diversas vezes em mós, ou melhor- em alcatéias — de vinte a cinqüenta índios, ora afirmam haver nas florestas muitos borum (assim se chamam a si próprios), que nunca viram craí (assim nos chamam eles), ora sustentam às claras o contrário, de modo que mais mentem que declaram. Porém, se há de calcular pelos que hão visitado o aldeamento, acredito não chegarem a dois mil.

Obrigam-me aqui a gratidão e justiça a lembrar o nome do virtuoso capuchinho Frei Bento, falecido nessa capital há dois anos, se me não falha a memória. Esse zeloso apóstolo, por algum tempo encarregado da catequese no Mutum, foi um exemplar diretor, dando sempre os mais nobres exemplos de abnegação, caridade e patriotismo.

Infelizmente, já não existe mais o aldeamento Mutum: o levante achou-o em mau estado e destruiu-o! Assim, ficaram entendo os mesmos selvagens que o heroísmo que destrói um trono glorioso pode até abafar também o único lampejo da luz que brilha esperançosa nas grossas trevas da selvageria. Ficou às escuras o Mutum, porque esta república vive às claras...

Aí está a onipotência deste governo — tira a luz das trevas! E isso já foi profetizado há anos nesse mesmo Brasil, quando escreveram no rosto do gasômetro dessa capital aquelas famosas letras, que ainda hoje ali rutilam — ex fumo darem lucem.

Sacrificaram a arte poética de Hoáacio, arrastaram o grande poeta para onde nunca pretendeu ir, mas fizeram uma profecia que essa se realizando agora. Que sábia profecia! Que realização onipotente!

Mas deixemos as profecias e voltemos aos índios.

São os índios do Rio Doce indolentes, ciosos de independência, ratoneiros, desconfiados, vingativos, mas já pouco antropófagos; daí vem que só matam para roubar e sobretudo para vingar ofensa. São ciumentos das mulheres e podem ter mais de uma, se são bons caçadores; podendo ter o chefe até quatro e cinco.

Vendem os próprios filhos por farinha e ferramentas, ainda que depois se empenham as mães em reavê-los, provando que, se a gula e selvageria podem alguma coisa alguma vez sobre o coração de mãe, nunca o matam de todo. Andam em nudez completa, sem tanga, nem enfeites de penas; não sabem pescar, vivem de caças, insetos, raízes e frutas; o arco e a flecha, em que são destros, os entretêm, defendem e sustentam; não têm outra arte que a das flechas, nem outra ocupação que a da caça e das brigas; são entretanto agradecidos ao bom trata-mento e têm muita confiança e veneração para com os padres.

Mal contava eu uns 10 anos de idade, quando, subindo o Rio Doce em todo o seu curso navegável, visitei pela primeira vez o aldeamento Mutum.

Vi os poucos índios aldeados ou quase aldeados: uns nus, outros andrajosos, todos preguiçosos, sujos, desasizados, mais tendo de brutos que de homens.

O rude e grosseiro da fala, do ar, dos meneios; os botoques ou batoques (meta) nos beiços e orelhas de muitos deles; as mulheres trazendo às costas , a modo de mochila, atados por cordas de embira, seus miserandos filhinhos, com as cabeças reclinadas nos sujos ombros das mães, como preferindo assim a aspereza daquelas cordas ao doce baloiçar de berço alheio, fizeram-me tais impressões, que nunca mas há de obliterar o tempo: afigurou-se-me um novo mundo, que nunca se sonhara!

Sobre tarde viu-se da mata próxima levantar-se um fumo, por onde se ficou entendendo serem índios bravios, que vinham visitar o aldeamento. Aparelhou-se para logo regalado banquete para os hóspedes: do terreiro fez-se mesa e de couros de boi mal secos — toalhas e pratos, servindo-a boa quantidade de farinha de pau, carne mal assada e crua, bananas, mamões e outras quejandas iguarias — sem se reparar na qualidade, que para os tais, tudo faz excelente a quantidade. Aprestar-se a mesa e verem-se logo os botocudos, foi tudo um.

Era uma enfiada de uns trinta robustos homens em tom de peleja: vultos mais carregados que graves, bem nus, desacompanhados de mulheres e crianças, peitos e braços untados de rubra tinta, as testas apertadas por fitas de embira e com grandes petrechos de suas armas: anúncios de boa disposição para briga.

Com tais vistas e indícios se foram nossos rostos perdendo toda a cor, de puro medo, ainda que soube reanimar-nos a experiência do diretor, assegurando-nos simularem eles zanga, para bem os fartarmos de comida, senão por generosidade, ao menos por temor.

E assim foi que dando, dando os índios com vianda nos couros, lançaram-se sobre ela quais lobos famintos sobre a presa: não deixando a avidez nem cascas, nem migalhas, mas só o conhecimento grosseiro e bárbaro dessas refeições, são onde tudo coices e  vilanias.

Não me esqueci ainda dos sustos e pasmos que nos dera tão desacostumado espetáculo, que, com ser todo novo para nós, menos não pode a curiosidade que o temor; porque se o temor nos vedava sair do aposento, a curiosidade levava-nos às portas e janelas, de onde pudemos assistir ao banquete, o qual terminado, se foram os índios, uns deitando concertadamente pelo chão, outros tirando bichos de madeira podre, os quais lhes são regalos de estômago, e outro, achegando-se de nós, arrimou-se a um jirau que pegava com a parede de nossa habitação. Assanha-se logo em mim a curiosidade de menino; miro-no da porta — arremedando muita ternura e jovialidade, como para lograr daquela fera algum falar ou benévolo sorrir, mas ele indiferente, deixa-se ficar mudo como estafermo. Porém, como positivamente me não repelisse, o atrevimento das graças fez-se ousadia. Subo ao jirau, e com a mão direita bem armada de receio, vou lhe afagando o queixo, mal povoado por barba, com tal temeridade, como o prova de repente armar-se o selvagem dos dentes e lançar-me, como cão furioso, três botes, cujos estalidos foram crepitando ao longe. Maravilha foi não ir mais longe a bruteza do gentio, que só querendo vingar a mão que o ofendera, logo aquietou-se em a remetendo eu à pressa para as costas. Desci como era razão, muito desengraçado e corrido com tão ruim sucesso, me não convidando mais a curiosidade a outros ensaios.

Vi também uma índia bem apessoada e formosa, que, elevando os naturais, enchia de admiração a toda a gente que sabia a raridade da beleza dela em tantos desalinhos.

Não tinha ela cor bronzeada como a dos mais, era porém ligeiramente morena, esbelta, galharda, de uma sisudez misturada com jovialidade, feições delicadas e galanteamento simpática. Porém, lembra-me ainda o que então dissera meio admirado e perplexo: "aquela Tatu (outro não era o nome) é muito bonita, quando esta calada e parada, mas quando anda ou fala, nem com gente se parece". E a razão, que longe não andara eu de atinar, é que, sendo a linguagem do índio rude e desentoada, os movimentos e meneios no andar feios e descompostos, empanam toda a beleza natural e como convertem a simpatia em asco.

Depois da nossa visita ao aldeamento, trouxemos um botocudo bravio até S. Antônio (fazenda abaixo do Mutum 8 léguas). Em viagem encalhou a canoa num baixio. Os canoeiros saltaram na água para levaram a canoa ao canal, e com o botocudo, sentado no fundo da canoa, se esforçasse estupidamente com os braços nos bordos para safá-la do baixio, disse-lhe irritado o piloto em linguagem botocudo-portuguesa: "salta no monhang (água) e tira o tjoncate (canoa)". O índio, que só entendeu monhang e tjoncate, foi simploriamente deitando com uma cuia água na canoa, julgando talvez assim aligeirá-la.

Aí está, embora muito mal e ligeiramente esboçado, o que são índios do Rio Doce e aldeamento Mutum.

O índio, cego no entendimento, depravado na vontade, ensopado em suas falsas e pestíferas deleitações, entregue em suma a todos os desvarios da natureza, mostra que sem Deus e sem religião — tudo são aniquilamentos e baixezas; e afogado assim nos mares dessas torpezas, brada-nos a todo o coração brasileiro e cristão lhe lancemos uma espia que o salve de tão tremendo naufrágio!

O aldeamento Mutum, por seu turno, increpando a incúria nunca desculpável do governo, está a suplicar-nos de joelhos — mais lealdade, mais patriotismo, mais amor. Se estamos nos tempos da liberdade....de  consciência, de cultos, de mentiras, de crimes, de impiedades, por que não havemos de ser uma vez liberais, no sentido verdadeiro e nobre da palavra,  para com esses desgraçados da fortuna?

Libertamos os escravos do cativeiro dos homens, é bem que libertemos os índios do duro cativeiro da selvageria e do demônio. Esta liberdade será sempre gloriosíssima, por mais rápida que vier, nunca será precipitada e nociva. E como se hão de libertar e civilizar os índios, diga a história da minha mesma província, narrando com assombros as maravilhas operadas pelos obreiros da vinha do Senhor; digam os quatorze mil índios catequizados e aldeados da Nova Almeida e Benevente (hoje cidade de Anchieta) pelo levantado heroísmo dos filhos de S. Inácio, antes que a ingrata e injusta perseguição lhes tolhesse as mãos benfazejas.

A verdadeira civilização e progresso só nascem do Evangelho, nobremente civilizador. A palavra de Deus sempre medra e frutifica nos corações, quando neles é lançada e regada por aqueles a quem incumbiu regenerar e santificar os povos, Cristo, Nosso Bem: "Ide, ensinar as nações".

 

Pati do Alferes, setembro de 1891. (Publicado no Brasil)

Nota: O Monsenhor Pedrinha (1864-1919), autor do texto acima publicado, foi poeta, ensaísta, orador sacro e parlamentar por mais de uma legislatura. De família tradicional de desbravadores, nascido às margens do Rio Doce, foi um dos maiores intelectuais de sua Época. Patrono da cadeira 18 da AEL.)

(Rio de Janeiro: Tip. de O Apóstolo, 1896. CAPÍTULO XIII.)

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-Santense de Letras – Comemorativo ao 86º aniversário da AEL, ano 2007
Autor: Monsenhor Eurípedes Pedrinha
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2015

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