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O discurso homossexual na literatura do ES - Parte III

Capa do Livro: Francisco Aurélio Ribeiro, ilustração de Attílio Colnago

Os continuadores de Amylton de Almeida: os primeiros personagens homossexuais.

 

Lacy Ribeiro, Fernando Tatagiba e Bernadette Lyra são escritores que fizeram de seus textos retratos das diferentes marginalidades brasileiras, em que se encontra mais da metade da humanidade, por não se ajustarem “em sua conduta, em seus sentimentos e em suas atitudes à norma estabelecida pela classe dominante”, segundo texto de Amylton de Almeida.

Lacy Ribeiro, em Avenida República, Diáro na madrugada, publicado em 1987, assim retrata, num pequeno conto/crônica, liricamente, o amor entre duas mulheres:

 

As namoradas

“Quando o jorro de luz, saído das portas subitamente levantadas da padaria, as iluminou, elas se separaram e soltaram as mãos. Baixaram a cabeça e arredaram-se para o cantinho escuro da calçada. Voltaram a se aproximar e a dar as mãos, timidamente.

As pessoas as olhavam de soslaio, mostrando, com meneios de cabeça e risinhos debochados, o espanto.

A que ficou na calçada teve um ataque de tosse, talvez pela fumaceira preta do cano de descarga do ônibus que lhe roubara a amada”.

 

Tendo como personagens predominantes, em seus contos/crônicas, os marginalizados e excluídos de toda sorte pelo sistema dominante, Lacy Ribeiro reconstitui a vida desses seres, nas madrugadas, nas sarjetas e periferias em que estão relegadas, sem dispensar-lhes o olhar carinhoso e humano de quem compartilha suas vidas.

Em romance premiado em 1989 pelo Departamento Estadual de Cultura, Rocks e baladas de Marcos Furtado, publicado em 1991, reconstrói a vida do personagem-título, bancário, e a sua dificuldade para assumir, perante si e a sociedade, sua identidade homossexual. A mãe era seu principal empecilho, cobrando-lhe uma namorada e o casamento, enquanto sua grande paixão era César, o colega do banco. Envolve-se numa relação sadomasoquista com Alexandre, enquanto o cenário de fundo da sociedade é a repressão policial, no primeiro dia do ano de 1971.

Lacy Ribeiro reconstrói, com propriedade, as angústias existênciais da mesma geração de Amylton de Almeida, e seu personagem é protótipo de tantos seres que passaram pela mesma situação, numa época de sufoco individual e social, com a crise política do país e o questionamento dos valores de toda uma geração.

Em seu livro de contos também premiado pelo DEC, em 1990, Contos bastardos, e publicado em 1991, Lacy Ribeiro constrói narrativas catárticas de dor e desespero, retratando, em dois deles, figuras de homossexuais. Em “O espelho mágico de Eric Ullman”, o lindíssimo, alto, magro, elegante e louro personagem é um narcísico “rapaz de aluguel”, “prestador de companhia” de quem pagar por ele e seus carinhos, sem saber se quem o leva é uma mão de homem ou de mulher.

Em “Jonatham blue” o último conto, o personagem do título é “lindo, corpo moreno, amulatado”, que malha nas academias e se ama. Com um pênis grande, humilhava os outros meninos do bairro, mas não sentia prazer em ficar com as mulheres. Jonathan masturba-se e sonha com todos os homens, “seus amantes utópicos, platônicos” e para quem “vive e respira”.

Lacy Ribeiro escreve com paixão sobre os excluídos de toda sorte e nenhum escritor capixaba, talvez brasileiro, registrou, com tanta perspicácia e intensidade, a vida, o sofrimento, e o sentimento desses seres, dentre os quais os homossexuais, sejam eles homens ou mulheres.

Outro escritor que teve com projeto de sua vida literária fazer uma “Literatura-Povo/Literatura-Rua” foi Luiz Fernando Tatagiba (1946-1992). Em seu texto-manifesto, publicado em Rua, afirma que “A Literatura Capixaba (...) sempre foi feita pela burguesia (...) fascista ou “liberal” (...) alienada (...) afastada do povo (...) do ser humano comum da esquina”. Por isso, advoga que o cenário literário sejam as ruas, e o personagem o povo: “vendedores ambulantes, travestis, loucos, prostitutas, passageiros de ônibus, operários, caixeiras de lojas, vendedores de cafezinho, empregadas domésticas, balconistas, catadores de papel, garçons, motoristas de coletivos, espectadores do Cine Santa Cecília, engraxates, tipos populares, crianças-pedintes”.

Em seu primeiro livro, O sol no céu da boca, publicado em 1980, Fernando Tatagiba enfoca o homossexual no conto “Theda Bara”, em que retrata os sonhos/pesadelos do garçom Antônio que à noite se traveste na famosa atriz, projeção de seus desejos e imaginário.

Em Invenção da saudade, de 1982, ao publicar crônicas sobre o “tempo dos bondes” e os personagens de sua juventude, Fernando Tatagiba não registra o homossexual como personagem, mesmo em sua forma caricata de travesti, porque este não existia, ou se expunha nas ruas que pretendia retratar como fotógrafo do povo. Na época retratada, década de 50 e início da de 60, a figura do homossexual era inexistente ou recalcada numa cidade então provinciana como Vitória.

Em Rua, de 1986, na crônica “Vitor ou Vitória?”, Fernando Tatagiba faz uma alegoria entre o personagem Vitor, que se assumiu, e se transformou em Vitória, a cidade. Ou seja, o autor escreve sobre a vida homossexual em Vitória, que se ousa mostrar, a partir da década de 80, nos bares, cinemas, desfiles, “pegações” e “fechações”. A fantasia do travesti/Vitória é constituída por todas as misérias sociais da cidade que “não estará sozinha na avenida iluminada”, visto que será acompanhada pelos outros blocos da “Grande Vitória”. Ao final, a dúvida: “Pode ser que Vitória também não dê certo como travesti. Mas não custa nada tentar”. Esta é uma das mais irônicas/céticas/pessimistas crônicas escritas sobre o tema, em que o autor associa o destino do homossexual que se assume ao da cidade e suas misérias. Um “soco no estômago”, como propunha.

Bernadette Lyra (1937), desde a sua primeira obra, As contas no canto, 1980, registra a presença, com suas dores, angústias e alegrias, do personagem homossexual masculino ou feminino. Nesta primeira obra, o desejo homossexual reprimido está presente nos contos “1” e “2”, da 2ª parte. Em O jardim das delícias, seu segundo livro de contos, de 1983, o conto “O dourado e o negro” tematiza o erotismo entre o sacristão e a imagem do arcanjo no vitral: “Os dedos do sacristão acompanharam o corpo do arcanjo no vidro” (p. 24). O desejo homossexual reprimido do personagem leva-o à auto-imolação: “Ele apertou as palmas das mãos até que o alto-relevo do ferro despedaçou a carne” (p.24).

Em outro conto, “Tempo”, há uma alegoria à inevitabilidade do destino, da sedução e do desejo (homossexual), em que o menino, apesar da proibição da avó, deseja “galopar com o madeireiro” que passa, “voar para ele”. Impedido em seu desejo, aguarda o tempo passar e espera (o madeireiro voltar) (p. 30-31).

“Urália” é um dos mais bem construídos contos da obra em citação, e alegoriza a homossexualidade masculina, numa terra em que todos são condenados ao mesmo destino. O personagem-narrador relata seu sofrimento de “amar a terra”, num lugar em que todos têm de ser pintores. A exceção não é permitida e a sociedade condena os infratores à marginalização (p. 39-40).

Seu terceiro livro de contos, Corações de cristal ou A vida secreta das enceradeiras é o mais “feminino” de todos, registrando as várias nuanças do ser-mulher. O conto “Letícia” (p. 9-11) narra, pela voz da protagonista, o amor entre a novata que narra sua entrada no internato e a meiga e séria Letícia, interrompido pela doença da outra. À personagem-narradora, restaram a solidão e a saudade de Letícia, que não mais voltou.

Em 1992, Bernadette Lyra publica A panelinha de breu, romance que tematiza as contradições entre a literatura e a história, da condição feminina e da pópria escrita literária. Na peça encenada por M, para representar a invasão dos holandeses na ilha de Vitória, em 1625, Dame Kiri, “um travesti recheado de silicone” (p. 72), é escolhida/o para ser a personagem-principal Maria Ortiz, a mulher-símbolo do heroísmo das capixabas. Pura ironia. Da história ou da realidade?

Sebastião Lyrio, em Tigres de papel, 1983, no conto “Primeiro amor” tematiza um diálogo entre Hilda e Ísis, que se namoram num bar. Hilda, mais ousada, tenta beijar Ísis publicamente, mas esta só cede aos seus apelos num “trecho mais escuro, onde uma lâmpada queimada não fora substituída”. Na mesma obra, o conto “Modulações” narra a cumplicidade entre Paula e Silvana, que tinham entre si um relacionamento amoroso, na morte de Luiz Cláudio. Este escritor famoso é morto por elas, após ter transado com as duas, numa noite de “sexo e álcool”. Pela primeira vez, personagens femininas homossexuais são retratadas na literatura do Espírito Santo com as suas contradições, como todos os seres humanos.

Também Francisco Grijó, em seu primeiro livro Diga adeus a Lorna Love, publicado em 1987, e vencedor do concurso de contos da FCAA, em 1986, descreve a paixão entre dois jovens no conto “Dois meninos e um jazz”. Nele, Mário e Lucas se descrevem mutuamente com a língua da paixão e da liberação dos sentidos:

 

“MÁRIO -... Lucas mantinha o sorriso dentro do meu (...) fumava depositando as cinzas em mim.”

“LUCAS – Mário está no banho e o sabonete lhe desce como a minha língua.”

 

Jamais se pôde ler, até então, tamanho erotismo entre dois jovens do mesmo sexo nas letras capixabas, descrito por um outro jovem fiel captador de seu tempo e de seus comportamentos. Mesmo em uma escritora mais madura, ex-professora de muitos desses jovens poetas, Maria do Carmo M. Schneider, se pode ver o clima de liberação do sentimento e do desejo homossexual da época, nos seguintes poemas publicados em 1989, na obra Fio de prumo: “Agonia” (p.21), “Alma gêmea” (p.24), “Encontro marcado” (p.25), “Timidez”, “Roupagem” (p.32), “Fugaz” (p. 61). Todos, dedicados a ex-alunas ou amigas, personificam o desejo do Eco (p. 28) ou Narciso (p.57) de encontrar uma voz ou espelho iguais a ela.

 

Fonte: A Literatura do Espírito Santo, uma marginalidade periférica, 1996
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2012 

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