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O erotismo ou a escritura da paixão em Paulo Roberto Sodré

Capa do Livro: Francisco Aurélio Ribeiro, ilustração de Attílio Colnago

Em seu livro de estreia, Interiores, FCAA, 1984, Paulo Roberto Sodré (1962) revela em poemas neo-simbolistas, "impressionistas do momento do clic", todo um erotismo latente que se transforma em "escritura da paixão", inscrição do corpo e do desejo homoerótico transformado em criação literária e poética.

Os poemas do seu primeiro livro chamam a atenção do leitor e/ou do crítico pela extrema elaboração formal, pela capacidade "imagista", a busca da modernidade, através da criação de neologismos, aglutinação de palavras, versificação, justaposição, experiências concretistas e criação de haicais.(24)

Insisto na afirmação, no entanto, de que o poeta "infante" que estava em “Germinação" (p.19), construindo sua "Poética" (p.20) e percorrendo "Estradas" (p.21) era o mesmo que desabrocharia maduro na manifestação do homoerotismo em obras posteriores e que se prenuncia em poemas como "Minutos", dedicado a Oscar Gama Filho:

 

"Não há encontro, encanto,

em que na insistência em seu rosto

meu olho não queira deitar.

 

Momento não há, acalanto,

quando em sua mão solta esguia

meu desejo não queira caminhar.

 

Não há segundo não há, quebranto,

que em pensamento na sua boca

meu sonho infante não queira repousar" (p.28)

 

Em "Embriaguez" (p.31), Paulo Roberto Sodré evidencia o que Octavio Paz nos afirma:

"...sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenômeno, manifestações do que chamamos vida. O mais antigo dos três, o mais amplo e básico, é o sexo. É a parte primordial. O erotismo e o amor são formas derivadas do instinto sexual: cristalizações, sublimações, perversões e condensações que transformam a sexualidade e a tornam, muitas vezes, incognoscível. Como no caso dos círculos concretistas, o sexo é o centro e o pivô dessa geometria passional".(25)

 

Sexo, amor e erotismo é o que podemos ler nos seguintes versos que abrem e fecham o poema citado:

 

"Cálices de peles seu corpo encerra

perfumadas em desejos de campo e mato

rompem do cio que a mão em afã enerva(...)

 

Entornam vermutes-afagos e licores-falos

amortecendo tremores-sensualidades fortes

num orgasmar profundo de homens magos". (p.31)

 

O mesmo se pode verificar nos poemas "Êxtases" (p.34), "Quedanças" (p.39) ou no poema escolhido para a contracapa:

 

"Cada palavra deitada no ventre

do branco que meu ser-me espelha

arranja entre tons e imagens

as dissonâncias de instantes ferventes"

 

Sem o tom de culpa, de militância ou panfletarismo de Valdo Motta, ou a angústia existencial de Amylton de Almeida e a solidão narcísica de Sergio Blank, Paulo Roberto Sodré realiza, desde a sua primeira obra, a melhor produção literária homoerótica do Espírito Santo, em que inscreve-se e escreve-se, na e com a paixão.

Seu segundo livro foi o romance Lhecídio gravuras de Sherazade na penúltima noite, premiado no concurso literário da FCAA, em 1987. O professor Luiz Busatto destaca, na "orelha" da obra, aspectos formais da construção narrativa: preocupação metalinguística, ruptura entre fronteiras de gênero, dialogismos de códigos recém impressionistas, hermetismo. Não se adentra, todavia, na análise da temática desenvolvida na obra.(26)

O professor José Arthur Bogéa, em artigo intitulado "Escritura da paixão", analisa Lhecídio, "sob uma perspectiva barthesiana". Para ele, o objeto da narrativa do romance Lhecídio é a paixão, ou melhor, a paixão do olhar, "aquela que turva o ser no mundo e nele confunde a imagem e o real", em citação de Pécora.

Apoiando-se em Banhes (Fragmentos de um discurso amoroso). Marilena Chauí, A. Novaes, A. Pécora e J. M. Wisnik (todos com textos publicados em O olhar, São Paulo, Cia das Letras, 1988), José Arthur Bogéa constrói a sua leitura de Lhecídio, enfocando a paixão de Eduardo, narrador, por Alexandre, "rapaz debruçado negligentemente sobre a janela".(p.19) Segundo ele, Lhecídio é um "texto de ambiguidades", a partir do título, em que o suicídio é transposto pelo narrador para a "morte do outro em si". E desenvolve sua leitura, analisando o "obliquo", o "delírio", as "perguntas", o "corpo", a "personagem". Para ele, "Eduardo/Sherazade se completa em Eduardo/Ariadne, e também se soma a Eduardo/Eurídice", constelação de mitos feminino.(27)

Tanto no aspecto formal, observado por Luiz Busatto, quanto no temático, analisado por J. Arthur Bogéa, Paulo Roberto Sodré constrói uma obra revolucionária, com todas as conquistas da (pós-) modernidade na elaboração de uma narrativa ímpar, original, que, (não) por acaso, tematiza o homoerotismo e suas inúmeras variações de amor, sexo e erotismo. Estes, nos recorda Octavio Paz, são apenas "província de um reino ainda maior: o da matéria animada", a própria vida.(28)

Seu terceiro livro, Dos olhos, das mãos, dos dentes, foi premiado pelo Departamento Estadual de Cultura e publicado em 1992. No prefácio, a escritora Bernadette Lyra chama a atenção do leitor para o fato de que, na obra apresentada, "Paulo Roberto Sodré(...) rompe com os hábitos da poesia erótica usual, transforma as banalidades do "dejá-vu" da paixão e, sobretudo, opera sobre variantes imaginárias". (...) "Cativo da escritura, pois apenas ela diz o escândalo da sensualidade, o poeta se vê obrigado a fazer uso da língua em que escreve para amortizar as tentações que lhe entram pelo olho."(29)

Dos olhos, das mãos, dos dentes é uma obra-prima, um escancarar de emoções, técnicas e liberação dos sentidos. Todo o erotismo e sensualidade que são pré-enunciados em Interiores, ou caóticos em Lhecídio, estão explicitados nessa sua terceira obra. A epígrafe, "Os sentidos, sem gaiola", de Carlos Nejar, é a tônica que predomina na temática de todos os poemas.

Paulo Roberto Sodré divide seu terceiro livro em cinco partes: "Introito", com cinco poemas, "Dos olhos", nove; "Das mãos", dez; "Dos dentes", 14 e "Madrigais secos", sete. Com isso, ele estabelece um compasso musical à obra, que vai de um ritmo lento (Introito) a um adágio (Dos olhos) crescendo, (Das mãos), até atingir o clímax (Dos dentes), concluindo com os "madrigais secos", o pós-clímax, ou epílogo. Mais que o amor, sentimento universal, pertencente a todos os tempos e os lugares, é a paixão, o erotismo, o prazer corpóreo e sensorial, que Paulo Roberto Sodré transforma em versos em sua obra. O poeta escreve sobre a atração passional, cuja primeira revelação é feita pelo olhar. Seu eu-lírico afirma preferir "voyeurizá-los só com óculos" (p. 15), em "poema ro co có sem prudência" (p.17). Mas, "quando um homem chega" (p. 19), seus "versos vazam" (p.21) e acompanham "peito, braços e pernas/adivinhados sob a pele azul" (p. 29).

No primeiro movimento após o Introito, "Dos olhos", o poeta dialoga com textos do cancioneiro português (Dom Dinis, Mariana Alcoforado, João Garcia de Guilhade, Pessoa/Caeiro), ou Verlaine, para cantar a paixão do olhar: seu objeto do desejo, o corpo masculino. "Dói olhá-lo" (p.29), "Adormecido: de músculos calados" (p.33). "Espalho meus olhos sobre sua presença" (p.39). No segundo movimento, "A pele da anima exige mãos” (p.45), ... "A touch, a touch" (J. Joyce, epígrafe, p.49), as "mãos se enchem de céus"(p.53) e "os dedos(...) oferecem caminhos/por(...) coxas, (...) pernas, (...) pés..." (p.63). Na terceira "os dentes doem" (p.75), "E pronto! Agora unidos, enlaçados,/boca rota de amor e alma mordida" (Garcia Lorca, epígrafe, p.78), "tudo o que (...) é masculino anoitece", "apaga-se o que é receio", (p.83). "O gosto de bagos se enche/de vontades", em poemas "Redondilhados ou idílios fora de moda", extraídos de antigos cancioneiros populares, em que o poeta canta seus "amores broncos"(p.93 a 101) ou "cantos de andorinha" (p.103-109), parodiando canções populares da Grécia arcaica. Em "De viris", torna-se o outro na vida dele/dela (p.109-113). O círculo se fecha com a volta à calma, "onde dorme, exausto, o poema(...) e "os olhos espreitam" (p.121). Seus "madrigais secos" são a coda feliz, repetição contida de todas as outras partes, uma volta à "normalidade".

Erotismo e palavra, desejo e realização, poesia e escritura têm em Paulo Roberto Sodré o melhor representante capixaba do discurso homossexual, ou do amor homoerótico e de suas inúmeras formas de representá-lo.

O autor possui ainda inédito o livro de poemas intitulado: Poemas do desconcerto.

 

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

(24) GAMA Fº, Oscar. Prefácio, In: SODRÉ, Paulo R. Interiores. Vitória FCAA/UFES, 1984, p. 11-18

(25) PAZ, Octávio. A dupla chama. Amor e erotismo. Trad. Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994, p. 15.

(26) BUSATTO, Luiz. Orelha da obra de SODRÉ, Paulo R., Lhecídio Gravuras de Sherazade na penúltima noite. Vitória: FCAA/UFES, 1989.

(27) BOGÉA, J. Arthur. “Escritura da paixão”. In: Revista de Cultura UFES, Vitória: FCAA, XVII, nº 49, 1994, p. 15/21.

(28) Id., ibid., p.15.

(29) LYRA, Bernadette. Prefácio. In: SODRÉ, Paulo. R. Dos olhos, das mãos, dos dentes. Vitória: DEC, 1992.

 

Fonte: Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica, 1996, Vitória/ES
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Capa (execução eletrônica): Renato Costa Neto e Luiz Alexandre Mess
Ilustração: Attílio Colnago
Editoração Eletrônica (texto): Antonio Gil e Alexandre Moraes
Revisão: Reinaldo Santos Neves
Agradecimento especial: Idelze Maria Vieira Pinto
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2021

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