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O Retro-susto do Zé Costa

Jogos Praianos - Rubens Gomes hasteando a bandeira na abertura

Embora, na juventude, os nossos amigos e eu vivêssemos sempre numa dureza atroz, a exuberante falta de dinheiro estimulava o gosto pelas coisas banais da vida, que era ordinariamente generosa em episódios hilariantes. As coisas ocorriam espontaneamente e de repente as pessoas envolvidas em eventuais casos passavam a se sentir cúmplices e até reféns de determinada situação sem qualquer direito a volta.

O episódio que vou relatar aqui, por uma questão de discrição e também em respeito às inúmeras garotas amigas de então — hoje respeitáveis senhoras — não terá a citação de nomes. Este privilégio ficará apenas para o José Costa, um dos protagonistas desta ocorrência.

Rolava uma dessas tardes de verão com a prevalência daquela temperatura morna que estimula muito a preguiça e nos convida ao ócio. Nenhuma de nossas amiguinhas, a não ser Carmélia, cujo trabalho era cíclico, sem horário certo e geralmente noturno, tinha qualquer trabalho. Portanto, o calor era muito bem-vindo e o programa de todas as tardes era sempre o mesmo: reunir as garotas, na casa de uma delas, para bater papo, estabelecer e difundir as fofocas, e ainda planejar eventos paralelos aos Jogos Praianos, com o objetivo de atrair os jovens.

Carmélia era mestra nisso e as outras iam aprendendo com ela a capturar os homens como convinha a um bando enorme de garotas cheias de vida, embora castas algumas e aparentemente virgens outras tantas. Os malabarismos para se chegar a este objetivo ora tinham a feição de uma pequena reunião na casa de alguém, ora se apresentavam como uma disputa esportiva, e poderiam até ter a cara de uma serenata.

As tardes eram como que uma reunião de um conselho — como fazem com frequência os índios antes de uma guerra —, conselho do qual saíam as grandes decisões. Nenhum homem ligado ao seleto grupo tinha acesso a este ambiente, até porque muitos estavam trabalhando. Menos José Costa que, jornalista como Carmélia, tinha um horário generosamente flexível e podia fazer incursões no conselho em variados horários.

Estavam todas refesteladas em cadeiras bem robustas ou espalhadas pelo chão, deitadas ou apenas recostadas em pufes ou travesseiros. José Costa alternava sua postura entre sentado e em pé, como se a cada instante se lembrasse de suas obrigações e se preparasse para sair. Um barulho no portão anunciou a chegada de mais uma para a reunião. José Costa, preparando-se para dar um susto na recém-chegada, se enfiou atrás de uma cortina comprida e desapareceu da cena.

A amiga que chegava saudou o grupo, apenas com o rosto para dentro de casa, com um pequeno versinho recitado bem alto quase gritado da soleira da porta: "De manhã cedinho, cafezinho bem quente, um piru bem durinho, na bundinha da gente."

A platéia ficou calada e gélida, e a declamadora não entendia a inexplicável reação das amigas, que sempre riam de suas besteiras, e insistia: "Vocês não gostaram ou estão me gozando? Por que não riem?"

Como o silêncio persistisse, uma garota da roda resolveu explicar o caso de forma silenciosa, simples e prática: apontou com os olhos para os pés de José Costa, cujos sapatos estavam inteiramente fora da cortina. A moça entendeu e saiu calada de fininho, até alcançar o portão, quando saiu correndo envergonhada. José Costa, por sua vez, ou com cerimônia ou com vergonha do grupo, se mantinha no esconderijo sem saber o que fazer ou dizer.

Na verdade, todo esse desconcerto que o versinho provocou carregava muito de desfaçatez das pessoas presentes, pois conheciam os hábitos daquela época. Com exceção da moça que declamou o versinho, estavam todos se iludindo mutuamente. Todos estavam fartos de saber que, por justificadas razões, se praticava a escolha preferencial por esta banda (revisão atenta para evitar erros) do corpo feminino. Afinal, sabe-se que este lado, quando usado com moderação e prudência, não costuma deixar rastros — só que o assunto era segredo de claustro. Por outro lado, a preservação da parte mais cobiçada do lado contrário do corpo era extremamente valorizada, pois era essencial preservar uma aparência intacta, por dentro e por fora, para a futura oferta solene ao marido, no leito nupcial.

A delicada cirurgia plástica que hoje reconstitui com naturalidade e rapidez os cobiçados embaraços à conquista da cavidade, naquele tempo, era um tabu. Só a ida a uma consulta médica já colocaria a jovem paciente no rol das mulheres sexualmente suspeitas, o que se constituía em verdadeiro estigma.

O grupo ali reunido e mais uma enormidade de moças e rapazes das praias e circunvizinhanças eram um importante contingente com o qual contava Nogueirinha, o gigante condutor do Praia Tênis Clube por tantos anos, para garantir o sucesso dos Jogos Praianos.

Os Jogos Praianos, como eram chamadas as competições organizadas pelo Praia, eram abertos a todos os clubes que quisessem inscrever seus atletas masculinos ou femininos.

Durante o verão, não se falava em outra coisa, a não ser nos torneios de tênis, futebol, basquete, vôlei, natação etc. Os jornais enxergavam neste assunto uma rica oportunidade, sem igual o ano inteiro, de incrementar suas editorias de esportes e fugir daquela mesmice de cobrir o futebol profissional ainda incipiente no Estado.

As matérias do esporte amador ganhavam cada vez mais destaque, até porque, além da imensa torcida formada de jovens, eram eles também assíduos compradores de jornais para avaliar, discutir e se posicionar em relação ao que dizia a mídia. Seus pais não ficavam atrás, e cedo estavam nas bancas se atualizando em relação ao desempenho de seus filhos, condição indispensável para poder trocar ideias com os amigos sobre a atuação de ambos os filhos. Portanto, a cobertura que os jornais faziam era, ao mesmo tempo, a satisfação do cumprimento de um dever profissional pela grandiosidade do evento e também o aproveitamento válido de um grande mercado leitor episódico.

A abertura dos Jogos Praianos era uma cerimônia cercada de especiais cuidados para que a festa tivesse uma pompa condizente com o desejo dos promotores, sem contudo extravasar para o luxo, como nas escolas de samba do Rio. A Banda da Polícia Militar era presença obrigatória para alegrar a festa com os seus dobrados e também dar ritmo ao desfile das representações das equipes.

Para a abertura do desfile era constituído um primeiro pelotão com um representante de cada esporte sempre portando o instrumento símbolo de sua categoria. Os jogadores de tênis carregavam as suas raquetes e o pessoal de futebol, basquete e vôlei as respectivas bolas. Escolhiam-se as garotas mais bonitas para participarem desse pelotão, até porque elas eram como uma comissão de frente da qual dependia todo o sucesso do resto.

Precediam esse pelotão de mulheres mais altas e bonitas as porta-bandeiras. Eram quatro estandartes. Um pouco à frente das três bandeiras que vinham em seguida estava o Pavilhão Nacional. Na mesma linha atrás seguiam as bandeiras do Estado, do município e do Praia. A cada ano, a direção do Praia, comandada brilhantemente por Nogueirinha, vinha se esmerando mais e mais no sentido de arranjar mulheres mais bonitas para o desfile, com destaque para as quatro porta-bandeiras, especialmente a condutora da Bandeira Nacional.

Todas essas coisas rodavam pela cabeça do José Costa ainda envolto na cortina, lembrando que cada uma daquelas moças que ali se reuniam tinha um papel de maior ou menor destaque no desfile. E pensar, imaginava ele, que a mais linda de todas, de corpo mais bem feito e a escolhida daquele verão para carregar a Bandeira do Brasil havia confessado algo muito difícil naquela época: que gostava, de manhã cedinho, de um cafezinho bem quente... Isso era calor demais para um cara de vinte anos.

 

ESCRITOS DE VITÓRIA — Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.

Prefeito Municipal - Paulo Hartung

Secretário Municipal de Cultura e Turismo - Jorge Alencar

Diretor do Departamento de Cultura - Rogerio Borges De Oliveira

Coordenadora do Projeto - Silvia Helena Selvátici

Conselho Editorial - Álvaro Jose Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco

Bibliotecárias - Lígia Maria Mello Nagato, Elizete Terezinha Caser Rocha, Lourdes Badke Ferreira

Revisão - Reinaldo Santos Neves, Miguel Marvilla

Capa - Remadores do barco Oito do Álvares Cabral, comemorando a vitória Baía de Vitória - 1992 Foto: Chico Guedes

Editoração - Eletrônica Edson Malfez Heringer

Impressão - Gráfica Ra

Fonte: Escritos de Vitória, nº 13 – Esportes- Prefeitura Municipal de Vitória e Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1996

Autor: Carlos Lindenberg Filho

Nascido no Rio de Janeiro. Empresário

Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2020

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