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Reencontro Vitorioso

Praia de Camburi - Início dos anos 70

O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais superior testemunho de nós próprios, a obra absoluta em face da qual todas as outras são apenas ensaios.

Rainer Maria Rilke

 

Raul morava em Vitória há vários anos: por uma das casualidades costumeiras e com a graça do Espírito Santo. A primeira impressão de província sem rosto foi se desfazendo ao longo de sua convivência e das relações de afeto desenvolvidas com a cidade. Sentara-se num dos bares da praia, próximo à ponte de Camburi, para admirar a paisagem e saborear um coco. Apesar desta combinação mais que tropical, o vento era levemente gelado. Raul fechou os botões da camisa para proteger o peito e deixou o seu olhar vagar pelo horizonte. Marcara ali um encontro vital, ou melhor, um reencontro decisivo para a sua felicidade terrena. Naquele canto da praia as águas são suaves e seus movimentos são quase imperceptíveis. O mar conservava para ele ainda sempre algo de mágico. Provavelmente pelo encanto infantil que a mutação constante daquela gigantesca massa de água lhe provocava. Quando criança viu-se muitas vezes parado frente a ele, fascinado e temeroso, nas incursões esporádicas de sua família em direção à praia. Era sempre um grande acontecimento em sua vida. Seus pais tinham uma origem urbana e rural, mas distantes do mar, com as raízes bem fincadas na terra. Isso talvez tenha influenciado esse seu olhar e a sensação de imensidão, amplitude e respeito, que o dominava nestes momentos, como se estivesse diante do universo. Folheou o jornal em busca de algo interessante para fazer à noite com Ana. Viu apenas uma lista de bares e restaurantes.

"Ana, hoje quero te amar gostosamente por inteiro: corpo e espírito", pensou, imaginando o abraço e os beijos do reencontro. Teve o cuidado de jogar o coco, agora vazio, no cesto de lixo, pois indignava-se muitas vezes com a displicência da maioria da população no que se referia às noções básicas de higiene e limpeza. "Não jogar mais lixo no chão equivaleria nos países do primeiro mundo à erradicação da esquistossomose, por exemplo. São enfim as contradições da cultura brasileira, fruto de uma mistura de realidade e ilusão, de 'faz-de-conta' e 'agora - vai', de alegria espontânea e hipocrisia, de liberdade e descaso, de descompromisso e irresponsabilidade", divagou Raul, atento aos navios atracados no horizonte. Daquele bar avistava toda a curva da baía, o Hotel Porto do Sol e as chaminés da CST. "A mãe tubarão, que nos protege e nos engole, além de forjar o nosso avanço social e tecnológico," concluiu, sabendo que essas chaminés eram inseparáveis do processo de urbanização e de crescimento de Vitória e arredores. Raul aprendeu a aceitá-las como parte integrante da paisagem, tal como os piers e o convento da Penha ao fundo. Lembrou com um sorriso que estar naquele bar, defronte àquela "planície marmórea", de bermuda e tomando água de coco era um sonho de consumo para uma infinidade de brasileiros que trabalhavam grande parte do ano para poder usufruir por algumas semanas os prazeres e a tranqüilidade da vida à beira-mar. Riu deste pensamento, pois viu nele uma certa ironia dos deuses que muitas vezes deixam entrever o paraíso sem que os homens o percebam. "Há momentos em que realizamos os sonhos dos outros, sem sabê-los", refletiu.

O garçom parecia absorto num programa de TV qualquer. Ria sozinho e às vezes tecia comentários cujo conteúdo Raul não entendia. Ele se limitava a sorrir e a sonhar com Ana. Achou curioso ver ali a televisão substituindo a paisagem. Várias pessoas foram se aglomerando no balcão para acompanhar as imagens. Pediam cerveja, falavam alto e gargalhavam. Tratava-se de um jogo. Ao que parecia de vôlei ou basquete, e segundo as pessoas, importantíssimo e decisivo.

"O que seria do domingo sem a TV?", pensou. "Se faltasse energia elétrica o domingo inteiro, será que a maioria das pessoas saberia o que fazer?"

Lembrou-se do projeto de apocalipse descrito por Umberto Eco em seu livro Viagem na Irrealidade Cotidiana: um blecaute em Nova Iorque em conseqüência de um gigantesco engarrafamento rodoviário e a paralisação de todos os meios de transporte que dura vários dias; está nevando e as estradas e a rede telefônica ficam bloqueadas. Os saques se sucedem e aumenta o número de mortos pelo frio, pela fome e por inanição nos hospitais. Uma rápida decadência reduz as cidades a um monte de ruínas, alternadas com casas habitáveis, verdadeiras fortificações, até culminar numa espécie de retorno à Idade Média e à estrutura feudal de poder baseada na aliança por amizades ou comunhão de interesses. Em suma, uma volta à barbárie, rápida, inevitável e sem anestesia. Mas felizmente, isso tudo não passava de uma mera conjectura distante do calor ameno daquele domingo de praia e daquele mar azul refletindo a beleza do céu.

Colocou o jornal sobre a mesa e pediu ao garçom um peixe frito. Queria manter-se inteiramente dentro da normalidade. As pessoas junto ao balcão vibraram com o resultado do jogo. Parece que a vitória era também deles e de quase todas as pessoas presentes no bar. Alguém abriu o porta-malas de um carro estacionado no meio-fio e deixou à mostra uma espécie de trio-elétrico privé. Todos se regozijaram com aquele som ensurdecedor e comemoraram ainda mais essa vitória. "Parece que o destino de nosso povo é torcer, no esporte, na política e nas grandes causas sociais," pensou Raul, pouco antes de pedir uma cerveja. Foi prontamente atendido, além de ser contemplado com sorrisos alegres e algumas frases animadas do garçom. Contemplou novamente o mar e sentiu-se feliz por estar ali, naquele ínfimo ponto do planeta, defronte à África, à espera da mulher que tornava a sua vida ainda mais bela. Não estava ansioso, nem inquieto; aprendera a aceitar a sucessão contínua do tempo, respeitando os momentos certos de cada acontecimento. Havia marcado este encontro no último bar antes da ponte de Camburi e chegara intencionalmente mais cedo a fim de desfrutar o calor da manhã, alguns instantes de reflexão defronte ao oceano, e de preparar-se interiormente para a chegada de Ana.

Enquanto esperava o peixe foi invadido pela presença e pela lembrança de Ana. Seu sabor, seu sorriso, seus perfumes, seu calor, suas observações sinceras e impulsivas, sua intuição precisa; tudo isso se misturava à paisagem, à cerveja, ao peixe que não vinha, aos gritos das crianças, à música atordoante e aos corpos bronzeados que iam se reunindo em volta das mesas.

Raul amava Ana e sabia que os seus destinos se entrelaçavam e se confundiam; suas histórias tinham tantos elementos comuns que as grandes diferenças se diluíam por serem naturais. Escolhera aquela ponta da praia para o reencontro e a reunificação tão sonhada e tão pretendida, porque de algum modo precisava da aprovação e da anuência do mar, testemunha inseparável de suas paixões. O amor dava um sentido maior a suas vidas e uma dimensão cósmica a suas trajetórias neste planeta. Ana lhe escrevera manifestando o desejo de abraçá-lo, beijá-lo, perpetuar o amor e sussurrar-lhe ao ouvido: "Vitória!"

O vento acariciou o seu rosto e a esperança brilhou em seus olhos. Sabia que aquele era o momento, que o futuro chegara. Com o olhar perdido naquela bela baía aguardava cheio de amor, e confiante nas intenções sutis que regem o tempo e os acontecimentos terrenos. Ao virar-se viu ao longe uma mulher linda, sensual e radiante atravessando a ponte que une Camburi a Vitória. E vibrou de alegria.

 

Fonte: Coleção Escritos de Vitória. Nº 8 Bares, Botequins, etc. – ano 1995
Autor: Erlon José Paschoal
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2015

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