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Restaurante Mar e Terra – Por Álvaro José Dias

Capa do Livro: Escritos de Vitória - Bares, Botequins etc... – Volume 8 - Acervo do artista Wagner Veiga

Não fosse a juventude, o que teríamos de hilariante para contar aos netinhos?

Se você não conheceu o velho Mar e Terra, amigo, perdeu. Mas pode se consolar: não era um ambiente familiar. Naqueles dois salões de refeições, um logo na entrada, ao longo do balcão, e outro nos fundos, com a escada que dava acesso aos banheiros do lado direito, havia de tudo. Homens sérios, outros nem tanto, bêbados contumazes misturados com muitos ainda neófitos, marginais, mendigos, prostitutas, gigolôs e chatos. Todos democraticamente misturados noite adentro, entre pedidos, risadas e, eventualmente, uma briga.

O Mar e Terra, para quem não sabe, ficava ali onde vai terminando a Vila Rubim e começando a Volta de Caratoíra. Perto do Náutico Brasil. Era um prédio velho e encardido, sem atrativo algum que levasse um desconhecido a parar lá, descer do carro, do ônibus ou da bicicleta, para entrar e sentar a uma das mesas. A menos, é claro, que se tratasse de um notívago, desses sem outra opção para molhar a garganta ou saciar a fome, perdido na noite e na completa falta de vontade de ir para casa e dormir. Afinal, o restaurante virava a madrugada, geralmente recheado de freqüentadores.

As opções eram várias. Preferiam-se duas: a galinha ao molho pardo e o filé medalhão ao molho de Madeira R. Muita gente optava pela galinha. Eu não deixava de comer o filé. Geralmente, dois medalhões de bom tamanho e textura, fritos em molho de vinho Madeira R. Eram deliciosos. A gente os acompanhava com arroz e barris de cerveja. Ou outra coisa liquida, geralmente alcoólica.

Frequentar o Mar e Terra envolvia conhecer Doutor, o garçom. Era chamado assim porque tratava todo mundo dessa forma. Se entrava no restaurante um sóbrio senhor de paletó e gravata, la vinha a pergunta: "O que vai querer, doutor?" Se, instantes depois, chegava um outro em andrajos e sentava-se em outra cadeira, merecia o mesmo tratamento: "Já escolheu, doutor?" Ele não usava no rosto aquele sorriso tipo Miss Brasil, fabricado em aulas de etiqueta, mas era educado. Raramente perdia a fleuma, mesmo no ambiente onde trabalhava. Com a mesma delicadeza meio impessoal falava com todos.

No balcão, localizado do lado direito de quem entrava, em bancos em fila, ficavam os que não iam jantar, ou pelo menos comer alguma coisa mais demorada. Geralmente, pinguços da madrugada, já bem altos. Ou então alguma desocupada esfomeada, apressada, pois matar a fome em horário de trabalho exige pressa. Senão, perde-se a féria da jornada.

Do salão dos fundos, onde geralmente ficavam os que queriam um pouco de sossego (embora isso não fosse lá muito garantido pelo ambiente), tinha-se acesso a escada do banheiro. E ai é necessário explicar melhor a arquitetura do lugar: os salões e a cozinha do restaurante estavam localizados ao nível da avenida Santo Antonio. Dois andares abaixo foram construídos os toscos banheiros e o galinheiro. Para descer ate ia, depois de algumas garrafas de cerveja, era necessário enfrentar (o verbo mais apropriado é realmente este) uma escada íngreme, meio escorregadia, sobretudo em noites de chuva, que saia do salão praticamente por cima do cercado das galinhas. Os sanitários estavam ao lado. Fediam. Alias, fediam tanto ou menos que o ambiente próximo, onde cacarejava a matéria-prima do frango ao molho pardo.

Descer aquela escada absolutamente sóbrio já exigia alguma atenção. Depois de três ou quatro cervejas, que é quando normalmente o bebedor se levanta pela primeira vez para ir ao mictório, o cuidado devia ser redobrado. Com três horas de papo regado a bebida, a escada tornava-se um desafio tenebroso. E dai em diante era uma verdadeira loucura enfrentá-la. Mas às vezes não se tinha alternativa. Fazer no salão? Nem pensar. Na rua? Idem.

Galináceos e homens com bexiga cheia conviviam mais ou menos harmoniosamente naquelas noites de comilança e bebedeiras. Provavelmente com prejuízo para o sono das galinhas, mas isso não contava. Pelo menos, jamais houve um único freqüentador que reclamasse da qualidade do molho pardo, colocando a culpa no stress das aves. Assim era o Mar e Terra.

Na década de 70, alguns poucos jornalistas que trabalhavam à noite nas redações, sobretudo aos domingos, o tinham como uma das opções de final de jornada. Ele era uma espécie de rival menos charmoso do Britz, este ultimo reservado para ocasiões mais relaxadas. A Avenida Santo Antonio a gente ia quando queria ficar longe dos iguais, conversando sobre outros assuntos que não fossem a própria profissão, e comendo uma das especialidades da casa.

Foi com esse espírito que desembarcamos lá, numa bela noite de domingo, candidatos eleitos a passar a madrugada daquele dia para segunda-feira em uma de suas mesas, Nabor Vidigal, Jackson Lima e eu. Todos alegres, e eu pronto para viver a experiência mais insólita de minha vida. Estávamos com fome e sede. Fomos primeiro ao copo, enquanto a cozinha preparava os pratos. E Doutor, com sua paciência de sempre, cumpria a ordem de avisar ao cozinheiro que os fregueses da mesa "X" não estavam com pressa.

E pressa para quê?

Era noite de fauna diversificada no restaurante. Havia de tudo. Até casais de namorados. Algumas prostitutas, discretamente, olharam o ambiente e foram saindo devagar. Um bêbado, que criava casos, acabou gentilmente convidado a dar um passeio. Em quase todos os lugares falava-se alto. A fumaça de cigarros tomava conta do ambiente, vinda de todos os cantos. E era bem-vinda, pois havia raros fumantes passivos por lá nas noites de domingo.

Na nossa mesa, as cervejas se sucediam. Não tínhamos pressa e a conversa corria solta. Gostoso como sempre é papo entre amigos. Quem primeiro precisou ir ao banheiro não fui eu. Mas logo em seguida desci aqueles longos degraus, com alguma facilidade. Não era fácil ficar muito tempo lá embaixo, com aquele cheiro, e retomei não sem antes jogar uma bucha de papel sobre as galinhas. Elas se agitaram. Cacarejaram. Reclamaram da vida, as coitadas.

Geralmente a gente não se lembra de tudo o que acontece nas grandes noitadas de farra, e quem já viveu pelo menos uma delas pode atestar isso em minha defesa. Ainda mais quando já faz muito tempo que o fato aconteceu. Quando se é jovem. Mas o filé estava ótimo como sempre, piadas se sucediam e, ao final, já de madrugada, preocupados surgiram, inevitavelmente. Segunda-feira a dia de trabalho, e aquela não teria por que ser diferente.

Nabor e Jackson teriam de seguir em frente, pois moravam em Santo Antônio, enquanto eu voltaria, já que minha casa era no centro. Decidimos pedir a conta, meio altos, na alta madrugada já quase se tornando dia. Aguardavam pelos três boêmios, um dia de batente duro e três carros parados em frente ao restaurante, largados sobre a calcada da avenida não muito larga.

Foi Nabor quem resolveu aventurar-se pela penúltima vez escada abaixo, para urinar. Esperei. Deu vontade, e decidi ir depois. Seria o último. Parece que senti a cabeça rodando um pouco ao levantar da mesa, mas não me assustei. Já havia enfrentado o desafio antes. Tudo era conhecido ali, naquele ambiente de boemia. E, afinal de contas, mijar no salão ou na rua, nem pensar.

A gente não sabe bem como as coisas acontecem. Principalmente se não há testemunha na hora do acidente, mas só imediatamente depois. Parece que as pernas faltam, vem uma sensação de vazio. Uma espécie de frio no estômago, e um estouro em seguida. Você não lembra da queda, não sente dor. Só frio.

Muita gente correu para ver o que havia acontecido. "Alguém caiu dentro do galinheiro", gritou um mais esbaforido. E eis-me sendo levantado por "N" mãos, alvo de "X" favores, centro de todas as atenções e motivo da unanimidade das risadas. Como toda aquela legião desceu correndo a escada e a subiu virtualmente me carregando nas costas depois disso, jamais saberei. Mas não houve um único que acabasse como meu companheiro de infortúnio, apesar de toda a imensa confusão daquele final de madrugada.

Terminado o pandemônio, paga a conta, atendido o ferido por mil médicos de última hora, nenhum ferimento grave foi constatado. Atestaram o diagnóstico senhores sérios, outros no auge da gargalhada, bêbados, malandros, putas e vigaristas. Se não me falha a memória, até Doutor, afinal fazendo jus ao nome. Os companheiros acompanharam-me, humilhado que estava, ao carro. Colocaram-me dentro dele. Na última hora, primeira marcha já engatada, alguém lembrou-se de gritar, e desejar-me um bom banho ao chegar em casa. Só aí olhei pelo espelho retrovisor para me ver. Estava imundo. E a cabeça ficara ornamentada por um incrível e ridículo cocar de penas e esterco de galinha.

São rocambolescas as histórias das madrugadas capixabas. Principalmente as dos recantos de boemia, na época em que ainda se tinha coragem e falta de tino para varar madrugadas cultivando a arte do bom papo, do prato suculento e da maratona de cervejas. Mas hoje; hoje o Mar e Terra é apenas uma lembrança.

RECEITA FILÉ MEDALHÃO AO MOLHO DE MADEIRA R

Pegue dois medalhões de filé mignon. Bifes grossos, redondos, mais ou menos do tamanho de punhos fechados. Enrole uma fatia de bom bacon em cada um deles, com todo o carinho possível, pelas laterais. Com um pedacinho de palito e alguma paciência, você prende as duas fatias. Bote pouco óleo na chapa. Frite os dois bifes nela, com cuidado para eles ficarem ao ponto (vermelhinhos por dentro). Quando estiverem prontos e ainda fervendo, coloque-os na tigela de levar à mesa e derrame sobre eles um pouco de vinho Madeira R. Quantidade pequena, para dar sabor. Pode colocar, por exemplo, os 50 ml da medidinha de dose de uísque. Sirva com arroz à grega. Coma com carinho. Feche os olhos e imagine a mulher amada. A medidinha do uísque pode ser uma ótima sugestão de acompanhamento. Afinal, os escoceses nos legaram essa maravilha.

 

Fonte: ESCRITOS DE VITÓRIA — Bares, Botequins etc... – Volume 8 – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura, Esporte e Turismo - Jorge Alencar
Coordenadora do Projeto – Miriam Santos Cardoso
Conselho Editorial – Joca Simonetti, Pedro J. Nunes, Sérgio Blank
Assessoria Técnica – Biblioteca Municipal de Vitória
Revisão – Reinaldo Santos Neves, Enyldo Carvalinho Filho
Capa – Wagner Veiga, acervo do artista
Editoração Eletrônica - Edson Maltez Heringer
Impressão - Gráfica e ITA
Título original do texto: "Cocar de Penas”
Autor do texto: Álvaro José Silva
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2018

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