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Segunda Viagem ao Interior do Brasil. Espírito Santo

Lagoa Juparanã - Linhares

A viagem Auguste de Saint-Hilaire é de certa forma uma reprodução do trajeto que o Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied realizou até o Rio Doce, inclusive a obra de Saint-Hilaire, publicada anos mais tarde à de Maximiliano, traz várias notas de referência à obra desse que foi o primeiro viajante estrangeiro a cortar de sul a norte, pela via terrestre, o território capixaba. No entanto, o pioneirismo de Maximiliano não deve, e nem pode, ofuscar o trajeto de Saint-Hilaire, que teve como ponto de partida a foz do rio Itabapoana em direção à vila de Itapemirim.

Acompanhado constantemente, nesse primeiro trecho da viagem, por homens armados, Saint-Hilaire busca evitar o contato com os índios que dominam esse trecho do caminho, precaução tomada, haja vista, que desde sua saída do Rio de Janeiro ele foi constantemente alertado dos perigos que dominam o trajeto entre Muribeca e Itapemirim.

Na saída de Muribeca ele conseguiu convencer o administrador de lhe fornecer reforço à comitiva que com ele seguia, com isso novos elementos foram adicionados à caminhada, pois “o bom padre deu-me três escravos, que já haviam combatido contra os índios, armados de espingardas e de facão do matto”(163).

Segundo Saint-Hilaire

 

No tempo da expulsão dos Jesuítas, não havia selvagens em todo este districto; foi somente seis ou oito annos depois della, que elles começaram a cometter estragos (escripto em 1818). A primeira vez que se fizeram notar mataram animaes a dente; cavallos, homens e depois ainda renovavam suas carnificinas e devastações(164).

 

O medo toma conta desse trecho da viagem. O silêncio somente é rompido pelos sons dos passos e dos animais que habitam a enorme floresta que acompanha, a perder de vista, o litoral. Os companheiros de viagem vigiam constantemente a margem da floresta “da qual era possível que surgissem [a qualquer momento] os índios”(165).

Seguiu a viagem, apesar de toda a tensão que reinou nesse trecho, sem maiores incidentes, e os temidos índios antropófagos, mais uma vez, impuseram o medo e o terror aos viajantes estrangeiros sem nem ao menos expor sua face. O primeiro ponto de parada, quartel Boa Vista, finalmente foi atingido.

Após breve estadia nesse posto de guarda, Saint-Hilaire segue sua jornada rumo à vila de Itapemirim. Uma nova adição foi feita a sua comitiva, dessa vez de quatro soldados, com o objetivo de proteger o grupo que ainda seguiria por um caminho considerado crítico e alvo de constantes ataques dos índios.

Apesar das constantes narrativas descritas por aqueles que o acompanhavam, sobre os ataques e as práticas canibalísticas dos nativos da região, Auguste de Saint-Hilaire questionou a veracidade de tais histórias e acontecimentos. Para ele

 

esses factos, dos quaes um dos meus soldados havia sido, disse-me elle, testemunha occular, e aquelles que me haviam narrado os escravos de Muribéca, tendiam provar a realidade da antropophagia; mas, é aconselhavel, eu creio, não acceitar plenamente essas narrativas de homens incultos, animados pelo rancor e susceptiveis de crear phantasias, em torno das suas acções(166).

 

Para Saint-Hilaire, toda essa história criada em torno dos ataques “foi imaginada, a fim de tornar os índios mais odiados”(167), tendo em vista que as descrições realizadas por aqueles que narram esses brutais ataques ora correspondem aos Botocudos, aos Coroados e por fim aos Puris, trazendo assim dúvidas sobre a veracidade e credibilidade sobre o fato narrado e sobre o narrador.

O fato é que a viagem novamente segue sem nenhum problema de maior grandeza. A comitiva passa pela pequena aldeia de Siri, que ainda estava destruída, como narrou Maximiliano, e segue diretamente para Itapemirim.

A partir desse trecho e a medida que a comitiva se aproxima de Itapemirim há um maior número de habitações e pequenos povoados. Do ponto de vista de Saint-Hilaire “este districto parece ter sido, outrora, coberto de mattas, mas, hoje não se lhe vêm senão bosques esparsos, entre as plantações de cannas ou de mandioca”(168). Nessa vila ele é recebido e abastecido pelo Capitão Francisco Coelho, proprietário de algumas fazendas na região.

Itapemirim, apesar de ter recebido o título de vila em 1811 é, segundo Saint-Hilaire, “composta de uma pequena aglomeração de casas cobertas de palha, não se assemelha a mais que uma aldeia”.(169) Além Disso,

 

a villa de Itapemirim não está senão em formação, mas, o nome que ella tem e que em guarany significa pequena pedra chata, foi dado ao seu territorio pelos índios, provavelmente mesmo antes da descoberta do Brasil, porque já se o encontra citado na relação tão interessante de Jean de Lecy, publicada por volta do meiado do 16º seculo. [...] A população inteira desse pequeno districto se eleva, disseram-me, a uma media de 1.900 almas. [...] A pretensa villa não é senão logarejo composto, quando muito, de 60 casas, das quaes a maior parte é coberta de palha e estão nas condições as mais deploraveis. Essas cabanas formam uma só rua muito curta e a praça inacabada, de que fallei mais acima. A egreja, um pouco distante da villa, é demais pequena e não tem mesmo campanario, mas, do alto da colina em que está construida, descortina-se um panorama pittoresco, aquele que eu já havia admirado, atravessando o Rio Itapemirim(170).

 

Segundo Saint-Hilaire, Itapemirim possui uma produção diversificada, estando ancorada, principalmente, na larga produção de açúcar que os navios de transporte, que circulam pelo rio, buscam “à porta de várias fazendas”(171). Outro produtos estão entre os cultivados às margens do rio Itapemirim, entre eles: arroz, feijão, mandioca, algodão e cebolas; todos cultivados às margens do rio, que podem “ser consideradas muito férteis, pois permaneceram 20 annos sem descansar jamais e sem serem estrumadas”(172).

Apesar da produção diversificada, somente o açúcar e a cebola são elementos economicamente ativos e passivos de exportação para as vilas de Vitória e Campos, além da própria capital, Rio de Janeiro, todos os demais itens são para consumo próprio daqueles que cultivam a terra, gerando pouco excedente destinado também a exportação.

Saindo de Itapemirim em 4 de outubro de 1818, a comitiva de Auguste de Saint-Hilaire retoma a marcha rumo ao norte da Capitania. Se à medida em que ele se aproximava de tal vila maior era a incidência de moradias, à medida que caminha, dela se afastando, novamente volta a rarear as moradias. A marcha torna-se enfadonha nesse trecho, haja vista que

 

durante toda a jornada eu não achei, florindo, senão plantas communs; não percebi nenhum insecto; não encontrei um viajante e até Taopaba não vi nenhuma cabana. Os passarinhos, esses mesmos, abandonaram esta praia, onde não se encontra água doce e se fica ensurdecido pelo barulho monótono das ondas do mar que vêm despedaçar-se sobre a areia(173).

 

Avançando pelo litoral sul, caminhando cada vez mais para o norte, nosso viajante passa pelo Monte Aghá(174) e pelas praias de Itaipava e Piuma, onde “acham-se na embocadura de Piúma algumas cabanas habitadas por índios civilizados, que vivem da pesca e cultivam um pouco de terra, perto da praia”(175). Segundo Saint-Hilaire

 

Havia, antigamente, às margens do Piúma, mais índios do que hoje há; o receio aos botocudos fez fugirem os que se adiantaram pelas terras adentro; outros se retiraram para satisfazer a inconstância natural da raça e para evitar os vexames de que são sempre alvo na província do Espirito Santo(176).

 

Sem uma parada significativa em Piúma, a comitiva segue viagem, encontrando, a partir da pequena povoação indígena de Piúma, um número cada vez maior de moradias, deixando evidente que o trecho é de significativa importância.

Após algumas léguas percorridas, ele finalmente chega a Benevente, que “mostra-se logo, entre os arvoredos; esconde-se muitas vezes, para reapparecer, instantes depois, e dá ao viajante uma sequencia de paisagens agradabilissimas”(177).

Em Benevente Saint-Hilaire esbarrou no misticismo, no preconceito e no medo. Firmino, índio botocudo de origem, foi execrado e sofreu grandes injúrias devido a sua origem e à péssima relação, e fama que os Botocudos têm entre as demais etnias e, principalmente, entre os ditos civilizados, “o pobre moço, confuso, perturbado, baixava os olhos sem proferir uma palavra sequer, e escondia seu rosto entre as mãos”(178).

Resolvidas as querelas que foram postas a cabo pelo comandante da vila, Saint-Hilaire fora alojado no antigo convento dos jesuítas e pôde novamente pôr em prática as suas análises a respeito do local, da paisagem e da sua gente. Sob o olhar de Saint-Hilaire, Benevente

 

Compõe-se de cerca de 100 casas, cobertas, algumas de telhas e outras de palha, e das quaes, muitas têm um andar alem do terreo. [...] Benevente, outr'ora conhecida pelo nome de Aldeia de Reritygba era uma das quatró reduções que se achavam comprehendidas na província do Espírito Santo. Os jesuitas lançaram os alicerces desta Aldeia, logo após sua chegadà ao Brasil. Nella reuniram um numero muito consideravel de indios; estabeteceram uma hospedaria para os viajantes de sua Ordem e Reritygba foi o principal theatro dos generosos trabalhos do Padre Anchieta. [...] Em 1716, a antiga redução foi erigida em Villa, sob o nome de Benevente, e, em 1795, foi feita cabeça de comarca de uma parochia independente. Após a extinção da Companhia de Jesus, o governo apoderou-se do mosteiro; uma parte do edificio serve hoje de alojamento ao cura; o resto tem sido consagrado a muitos destinos differentes; nelle se fez uma prisão; dispuzeram de uma sala para a camara; em outra peça o Ouvidor dá suas audiencias, quando vem cumprir suas funcções de corregedor; emfim, tiveram a generosidade de reservar um quarto para da-lo aos estrangeiros honestos, que passam pela região(179).

 

Benevente compunha o conjunto de aldeamentos que a Companhia de Jesus instalou no Espírito Santo. Juntamente com Vila Nova de Almeida, Benevente destacou-se pela enorme massa de indígenas aldeados que nessa região se concentrou. Após a expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, os índios ficaram dispersos. Segundo os apontamentos de Maximiliano, foi somente após a expulsão dos padres que as regiões mais ao sul da capitania do Espírito Santo tornaram-se novamente hostis e selvagens àqueles que transitam e lançam alicerces de novas povoações.

Com vistas a resolver a questão indígena na região sul da capitania

 

a Administração destinou aos indios civilisados de Benevente uma extensão inalienavel de seis leguas por outras tantas, mas, como o lugar era fertil, os governadores tão logo deram aos seus amigos porções dessas terras, sem considerar o direito dos indigenas que inutilmente o reclamaram(180).

 

Com o passar dos anos a situação foi se tornando cada vez mais insustentável na região, à medida que os brancos avançavam sobre as terras, ditas inalienáveis, dos indígenas, adquirindo-as ora sob a doação direta dos governadores, ora por posse direta. Segundo Saint-Hilaire “as referidas terras teem passado, quasi todas, pelas mãos dos luso-brasileiros e os indios se comprazem em cultivar campos que deveriam semear para elles proprios”(181).

Segundo o naturalista, tal situação se sustentou dado o fato de que

 

Quando o indio pede justiça contra o português, como poderá obte-la? E aos amigos e patricios de seus adversarias que elle é obrigado a dirigir-se, posto que, os Juizes ordinarios de Benevente são exclusivamente portugueses. E, ainda, como é que as queixas de uma raça de homens pobres e sem appoio chegarão até aos magistrados superiores, a uma tão grande distancia desses infelizes, e surdos, a mais das vezes, á voz daquelles que se apresentam de mãos vasias?(182)

 

Findada a estadia em Benevente, Saint-Hilaire toma novamente a rota rumo ao Norte. Aqui vale um pequeno adendo à descrição. As paradas que Auguste de Saint-Hilaire realiza ao longo do litoral são as mesmas feitas por Maximiliano, no entanto, não há por parte do viajante o interesse em seguir o mesmo percurso de seu antecessor, até mesmo porque a obra de Maximiliano somente há de se tronar pública três anos após a viagem de Saint-Hilaire. O que acontece é que as demais povoações ao longo do litoral e interior da futura Província do Espírito Santo, somente hão de se desenvolver em maior número e volume de pessoas a partir da segunda metade do século XIX, principalmente com a inserção dos colonos estrangeiros, de origem majoritariamente italiana e alemã.

Com isso os pontos de parada para pouso e abastecimento tornam-se os mesmos, porém, uma análise não anula a outra, haja vista que sempre existem novos elementos descritivos a serem somados à narrativa histórica, e que auxilia ainda mais na compreensão do cotidiano e do modo de vida daqueles capixabas do século XIX. Exemplo de tal situação é a descrição das disputas de terra entre índios e colonos portugueses na região de Benevente, acima descrita por Saint-Hilaire, e que não encontramos em Maximiliano de Wied-Neuwied.

Dados os devidos esclarecimentos no que concerne à rotina de viagem seguida por ambos cientistas, retornamos a caminhada.

A estrada que deixa Benevente leva o naturalista a Meaípe, pequena aldeia litorânea já em território administrado pela paróquia de Guaraparí. Nessa pequena aldeia vale a pena dar destaque à análise quase que etnográfica feita por Auguste de Saint-Hilaire dos habitantes da região.

 

Não obstante os habitantes de Meiaipe se jactarem de serem brancos reconhece-se logo, sem custo, que a mór parte, não pertence, nem por misturá, á raça européa. Elles não têm, na verdade, olhos differentes e a cor bistrada dos indigenas; mas, é de observar-se que esses caracteres se perdem, quasi sempre, pela preponderancia dos brancos e dos indios; aliás, os colonos de Meiaipe teem o peito largo e os hombros sem saliencia, como os americanos; sua cabeça é mais volumosa do que a dos verdadeiros portugueses, e os ossos da maçã do rosto são nelles mais proeminentes que nos europeus; emfim a brancura de sua pelle tem algo de embaçado e pallido que não se nota nos homens que pertencem inteiramente á raça caucasica(183).

 

Ainda em movimento o naturalista segue para Guarapari, que

 

foi na origem uma das quatro reduções que os jesuitas formaram na província do Espírito Santo e o celebre José Anchieta ali fez, como em Benevente, triumphar seu zêlo pela civilisação e pelo bem estar dos indios(184).

 

Elevada ao título de vila em 1689, Guarapari contava na ocasião da visita de Saint-Hilaire com “mais de 300 casas e mais de 2.400 adultos”(185). Uma vila que seguiu na contramão do desenvolvimento das demais vilas e povoações que margeiam os rios. Guaraparí, aos invés de adentrar o território margeando o rio, seguiu um crescimento perpendicular ao mesmo, montando um paralelo com o mar. O ponto de vista do viajante sobre essa vila foi o seguinte:

 

A rua pela qual cheguei ao rio Guarapary é bastante larga e ladeada de casas mal entretidas, a mór parte coberta de telhas. Em frente das portas e das janellas de sacadas ha, ordinariamente, uma especie de téla muito fina que substitue as venezianas e se assemelha á que se emprega em muitas partes do Brasil, para fazer peneiras. Não se teve o cuidado de calçar a rua de que acabo de falar e nella cresce, como em Cabo Frio, um gramado muito fino, de effeito bem bonito. Uma colina coberta de matto e corôada pelo antigo convento dos Jesuitas, parte da villa e arroja-se diante da embocadura do rio. Aquelle que em face da rua principal tem apenas a largura de nossas ribeiras de terceira ou quarta ordem, arremessa-se diante da pequena bahia, distando a cerca de um tiro de fuzil, das ultimas casas.[...] A cidade de Guarapary tem muito mais importancia do que Itapemirim e Benevente, pelo seu commercio. Seus habitantes são em geral pobres e teem poucos escravos. As cannas que suas terras produzem não podem ser empregadas senão para fazer aguardente e se colhem algodão, arroz, feijão, mandioca, não é em abundancia para que se entretenha commercio regular com a Capital. De vez em quando, negociantes da Bahia ou do Rio de Janeiro entram no Guarapary com pequenas embarcações e compram dos agricultores os generos excedentes do consumo da região, porém, esse commercio se effectua com extrema morosidade(186).

 

Após a estadia em Guarapari, a viagem segue por Perocão, Ponta da Fruta e Barra do Jucu, ponto do qual já é possível avistar o Convento de Nossa Senhora da Penha, chegando, finalmente, à vila de Vitória. Chegando a Vitória, Auguste de Saint-Hilaire dirigiu-se para Jucutuquara a fim de encontrar o capitão-mor Francisco Pinto, para o qual o viajante possuía uma carta de recomendações para obter maior apoio a sua jornada.

Passou a noite no sítio de Santinhos, onde descobriu que o ódio aos índios Botocudos era algo comum e que se espalhava por todo o território da capitania do Espírito Santo, e que foi veementemente afirmado pelo proprietário do sítio em que se alojou logo após a sua chegada.

Se Basílio Carvalho Daemon afirma que Saint-Hilaire chegou a Vitória em 10 de outubro de 1818, podemos dizer que na verdade o viajante chegou à capital da capitania no dia 9, visto que o próprio naturalista afirma que

 

No dia seguinte de manhã, (10 de Outubro de 1818) o capitão-mór, conforme me promettera, mandou-me uma barca até o sitio de Santinhos. Minha bagagem foi transportada para o outro lado da bahia e meus burros atravessaram-na a nado, fazendo uma parada numa ponta de terra(187).

 

Saint-Hilaire discorre durante longa parte de sua obra sobre os aspectos gerais da Vila de Vitória. Dedica-se, inicialmente, a descrever os aspectos geográficos e hidrográficos, dando ênfase aos pontos mais marcantes das adjacências da capital(188).

No que concerne à vila o viajante aponta as seguintes características:

 

As ruas de Victoria são calçadas, porem o são mal; teem pouca largura, não offerecendo nenhuma regularidade. Entretanto, não se veem, aqui, casas abandonadas, semi-abandonadas, como na maioria das cidades de Minas Geraes. Entregues á agricultura, ou a tim commercio regularmente estabelecido, os habitantes da Villa da Victoria não são sujeitos aos mesmos reveses dos cavadores de ouro e não têm razão de abandonar sua terra natal. Elles tem o cuidado de bem preparar e embellezar suas casas. Um numero consideravel d'entre ellas tem um ou dois andares. Algumas de janellas com vidros, e de lindas varandas trabalhadas na Europa. A Villa da Victoria não tem caes; ora as casas se estendem até a bahia, ora se vê, nà praia, terreno sem construcção que tem sido reservado para o embarque de mercadorias. Esta cidade é tambem privada de um1 outro genero de ornamento: não possue, por assim dizer, nenhuma praça publica, posto que aquella existente defronte do palacio é muito pequena e é com muita condecendencia que se dá o nome de praça á encruzilhada enlameada que se prolonga da egreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até a praia. Ha, na Villa da Victoria, algumas fontes publicas que tambem não contribuem para embéllezar a cidade, mas, que, pelo menos, fornecem agua, de excellente qualidade, aos habitantes(189).

 

No que concerne às diversas instituições religiosas Saint-Hilaire traz a seguinte descrição:

 

Contam-se, na Capital do Espírito Santo, nove egrejas, incluindo-se a dos mosteiros. A egreja parochial é muito grande, muito limpa e não apresenta nada que provoque a curiosidade. Desde a expulsão dos jesuitas, os conventos não são senão em numero de dois, o das Carmelitas e o de São Francisco, construidos fóra ou quasi fóra da cidade. O convento de São Francisco, que abrange o panorama de uma parte da bahia e as campinas vizinhas, nada tem de notavel a não ser sua posição.

 

Quando de minha viagem, contavam-se nelle dois religiosos; entretanto, embora pequeno, o edifício poderia recebe-los em ~umero maior;· de resto, as receitas dessa casa são pouco consideraveis. Quanto ao convento do Carmo, pareceu-me qual o dos franciscanos; mas, a administração tomou o pavimento terreo para fazer a çaserna dos soldados pedestres. A egreja desse convento é muito limpa e bem clara, a exemplo de todas do Brasil; é contristante que se a tenha enfeia do, collocando, em cima dos altares, as mais feias figuras que eu jamais vi. Da communidade do Carmo de pende uma bellissima fazenda; mas, essa propriedade, disseram-me, é, desde muito tempo, muito mal administrada; os monges, animados do mesmo espirita da maioria dos brasileiros, apenas pensam em fazer dinheiro de tudo, destróem as mattas e não deixarão aos seus successores senão terras inuteis(190).

 

A estrutura de serviço públicos da capital era composta de dois hospitais - um militar e um civil -, e o palácio do governo. É o centro da jurisdição do ouvidor e dos dois juízes da comarca. Devido a essa diminuta estrutura “não há na Villa da Victoria nenhum negocio público”(191). A população é composta por mais de 4000 habitantes, sendo, em sua grande maioria, formada por escravos negros.

É propícia a estrutura voltada à prática do comércio, no entanto,

 

os commerciantes desta villa, apenas imperfeitamente, tiram proveito da sua posição favoravel. As fragatas podem entrar na bahia do Espírito Santo, quando estão sem muita carga; mas, nunca se vêm embarcações mais notaveis do que lanchas e sumacas(192).

 

Planta-se por toda a extensão da comarca arroz, feijão, milho, algodão, e cana-de-açúcar, sendo estes dois últimos os principais elementos de exportação, tendo o algodão um maior destaque. O arroz também constitui elemento de exportação, no entanto, utilizam-se do mesmo para a alimentação, buscando exortar o máximo de excedente possível.

Depois da estadia em Vitória e de ter se apresentado ao Governador da Capitania, Saint-Hilaire, mesmo depois das diversas indicações para que não seguisse viagem para o Rio Doce, resolve retomar a caminhada.

De posse de um passaporte privilegiado e um guia, ambos cedidos pelo governador, que insistia veementemente para que reconsiderasse tal ideia, Saint-Hilaire partiu, pois segundo ele, “todos esses discursos não fazia arrefecer minha curiosidade; eu havia resolvido ir até as fronteiras da Provincia de Porto Seguro e puz-me a caminho”(193).

 

Intinerário aproximado de Vitória ao Rio Doce

Palhoça                                          5 léguas

Freguesia da Serra (aldeia)           3 1/2 léguas

Caraipe, sitio                                 2 1/2 léguas

Villa dos Reis Magos, villa             3 léguas

Aldeia Velha, sítio                          3 léguas

Quartel do Riacho, posto militar     3 léguas

Quartel de Regência, posto militar 7 léguas

 

(Fonte: SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao Interior do Brasil. Espírito Santo. Trad. Carlos Madeira. São Pulo: Companhia Editora Nacional, 1936, Coleção Brasiliana, v. 72, nota 96.)

 

Saindo da parte insular de Vitória para a continental, Auguste de Saint-Hilaire depara-se com a ponte que passa por cima do rio Maruípe, que na ocasião que Maximiliano por aqui passou estava fechada, tal ponte ainda encontrava-se, três anos depois, fechada, sendo que “estava no pior estado de conservação e que provavelmente não tardaria a tombar se, como tem succedido, não se lhe fizer nenhum reparo”.

Como Maximiliano, Saint-Hilaire encontrou no povo capixaba a cordialidade descrita por Sérgio Buarque de Holanda e anteriormente citada, visto que “Em geral, a proporção que eu avançava, era tratado com mais hospitalidade e em parte alguma encontrava essa desdenhosa indifferença dos habitantes dos arredores do Rio de Janeiro”(194).

Seguindo a partir daqui o itinerário proposto por Dom José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro que realizou trajetória idêntica nos anos de 1812 e 1819,(195) e fugindo um pouco daquele seguido por Maximiliano, Saint-Hilaire toma o caminho que o leva ao limiar da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Serra(196), onde resolveu realizar uma parada para descanso.

Fato interessante se deu nessa pequena vila. Ao chegar Saint-Hilaire, como de costume, se apresentou à autoridade maior da localidade, porém, pouso foi-lhe negado nessa residência, que enviou um escravo ao entorno buscando um local para abrigar o estrangeiro,

 

Durante a auzencia do emissario nos puzêmos a conversar e eu provoquei uma opportunidade de exhibir-lhe minha portaria. O respeito dos brasileiros aos seus superiores era tal, então, que á simples vista da assignatura do Ministro de Estado Thomas Antonio de Villa Nova e Portugal produziu o effeito de uma palavra magica. Então, a casa foi-me offerecida; estava ás minhas ordens; elle desejava, definitivamente, hospedar-me(197).

 

Durante sua hospedagem na Freguesia de Serra, Saint-Hilaire teve a oportunidade de visitar o alto do Monte Mestre Alvo(198). Um guia experiente da região e membro da milícia local foi designado para acompanhá-lo. Sobre o guia e as compreensões regionais de autoridade fortemente presentes nessa população o naturalista deixa o seguinte registro:

 

verifiquei que era um agricultor honesto, pertencente á milicia e percebi que se lhe havia dado ordens de servir-me de guia, porque, disseram-lhe, eu estava encarregado de uma missão, pelo Governo. Esse bravo que era branco, obedecia-me, alegremente, sem reclamar, não se queixando do trabalho, acreditando-o fazê-lo a sua alteza; assim era chamado o rei, quando ainda príncipe regente, e um grande número de brasüeiros, de classe mediana, dava-lhe ainda, por habito, esse titulo(199).

 

Do alto da montanha ele descreve o seguinte cenário:

 

Lá do lado do oriente, descortinei o mar; no occidente avistei, na distancia, as montanhas soberbas da cordilhéjra maritima, ás quaes se unem outras mais proximas; finalmente, vislumbrei as colinas sobre as quaes estão as casas da freguezia e que, terminando todas por um largo planalto, parecem, da altura em que me achava, formar uma vasta planicie. De um lado e d' outro, columnas de fumaça subiam vagarosamente para o ceu e mostravam o lugar onde os mattos iam ser substituídos por uteis plantações.

 

Passei toda a jornada na montanha de Mestre Alvo e voltei a casa quasi sem haver colhido nenhuma planta. A vegetação é, sem duvida, muito variada, nas mattas virgens; é admiravel, pelo vigor e pelos contrastes que apresenta a cada passo; entretanto, acha-se muito pouca flôr, sob esses grandes arvoredos que privam de ar e de luz as hervas e os arbustos que crescem ao seu pé; as proprias arvores parecem, como n'outra parte disse, florescer bem raramente e são bastante arrojadas para deixar perceber suas flores, em geral menores que as dos vegetaes menos vigorosos(200).

 

E finaliza:

 

Passarão, provavelmente, muitos annos, antes que se conheça, com algumas excepções, uma outra flóra, brasileira, que a das hervas e a dos arbustos. Só botanicos sedentarios poderiam dar a conhecer as arvores das mattas virgens e, não sei se depois da morte do meu amigo padre Leandro do Sacramento, se haja formado botanico no Brasil(201).

 

Finalizada a visita ao Mestre Alvo e à freguesia de Serra, Saint-Hilaire retoma o caminho do qual havia se desviado para a realização dessa parada. Segue até a aldeia de Caraípe(202), às margens do Rio homônimo. Fez uma parada e pouso nessa pequena localidade, sem destaque para maiores acontecimentos ou observações, exceto sobre o fato de ter sido muito bem recebido.

Seguindo a partir de Caraípe, chega a Vila Nova de Almeida, antiga vila dos Reis Magos, que foi rebatizada em 1760 após a expulsão dos jesuítas, que eram os responsáveis pela localidade.

 

A administração local estava, na época da passagem de Saint-Hilaire a cabo dos próprios índios, que em maior volume populacional na paróquia, conseguiram nomear um juiz de comarca também de origem indígena.

Como ocorreu em Benevente, parte das terras da comarca de Vila Nova foi doada como sesmaria aos índios e considerada inalienável. As terras, por lei, não podem ser vendidas nem trocadas, ao contrário do que aconteceu em Benevente. Além disso,

 

a região não apresenta, por assim dizer, nenhum attractivo á cubiça: é menos fertil, isolada, visinha dos botocudos; nella as formigas exercem estragos contínuos; emfim, o Rio dos Reis Magos pouco offerece em transportes de pequenos recursos(203).

 

Apesar de uma relativa independência gozada pelos índios de Vila Nova, é certo que a aldeia não se encontrava nas melhores condições. O convento dos jesuítas estava em ruínas e muitas das casas estavam abandonadas.

Somada a decadência da vila pode-se encontrar o largo processo de emigração dos índios, causado, entre outros motivos, pela exploração da mão de obra indígena por parte dos governadores que

 

Todos os meses tirava-se dentre elles (1818) um certo numero de indios casados ou não, para faze-los trabalhar no caminho de Minas, no hospital de Villa da Victoria, na nova villa de Vianna ou Santo Agostinho, etc; alimentavam-se mal; durante muito tempo não se lhes deu nenhum salario e na epoca de minha viagem, era somente depois de dois meses que se começava a juntar á sua alimentação uma retribuição de dois vintens ou cinco soldos por dia(204).

 

Assim, se “no tempo dos jesuitas contavam-se 3.700 indios em Villa Nova e seus arredores, emquanto que hoje o territorio desta villa englobado tem 1.200 habitantes numa circunferencia de 9 leguas”(205).

Saint-Hilaire se detêm em fazer um relato mais preciso possível do modo de vida e das mazelas que se abateram sob os índios que residiam em Vila Nova de Almeida, além do seu modo de vida, economia e sociabilidade, uma verdadeira contribuição para aqueles que almejavam redescobrir como se deu a relação entre os colonos e os nativos(206). Realizou uma pausa nessa vila antes de seguir para o trecho que finalmente o levaria ao rio Doce.

Retomou o caminho pelo litoral, e, com exceção de Aldeia Velha, não teve encontro com viajantes ou habitantes da região até o Quartel do Riacho.

Após parada para pernoite no referido Quartel, retoma o caminho à beira-mar em direção a seu destino. Segundo Saint-Hilaire

 

Naquelle dia fui obrigado a fazer duas vezes mais de caminho que ordinariamente, porque, desde Riacho até a embocadura do Rio Doce, onde cheguei, á tarde, não se acha agua doce, nem casas. Segue-se, constantemente, uma praia arenosa, marginada de florestas, onde crescem, misturados, mas em grupos, os quiriris, ananases e diversos arbustos(207).

 

Chegou finalmente ao Quartel de Regência. Uma caserna construída com o objetivo de proteger a foz do rio Doce, além de estabelecer a comunicação entre o Espírito Santo e a Bahia. Tal posto é recente e foi criado durante a administração de Silva Pontes. Para Saint-Hilaire “Antes dessa epoca, toda communicação por terra, entre Villa Nova e a embocadura do Rio Doce, ou si se quizer, entre as provincias de Porto Seguro e da Bahia, devia ser impossível”(208).

Estabelecida a comitiva no Quartel de Regência, Auguste de Saint-Hilaire, acompanhado de poucos companheiros, iniciou uma nova trajetória, dessa vez, pelo rio Doce. Rio acima fez uma parada em uma pequena casa à margem do rio. Segundo Saint-Hilaire “pertencia a um branco, o primeiro colono que contemporaneamente se sabe estabelecido nas margens do Rio Doce.

Este homem chamado Antonio Martins”(209). Apesar das fecundas terras das margens do rio Doce, da larga navegabilidade possível em suas águas, mesmo que por barcos menores, da proximidade, via mar, com a capital da Capitania e do Reino, e dos esforços realizados com vistas a fomentar a ocupação dessas terras, baixo era o índice populacional, causado principalmente por “dois motivos [que] contribuiam para afastar dessa região aquelles que desejassem nella se estabellecer: o pavor das doenças e dos botocudos”(210).

 

E' incontestavel que as terras da provincia de Minas; banhadas pelo Rio Doce, são insalubres, como ja o disse; é incontestavel, tambem, que chegando á embocadura do rio, os estrangeiros são quasi sempre atacados pelas febres. [...] Quanto ao medo que havia, antigamente, dos botocudos deve estar agora inteiramente afastado porque, pelos cuidados do senhor Guido Thomas Marliere, esses indígenas se tornaram amigos dos luso-brasileiros; e mesmo na epoca da minha viagem elles não deviam ser tão perigosos quanto se suppunha, pois não haviam feito nenhum mal a Antonio Martins estabelecido nesta região a tanto tempo(211).

 

Chegou a Linhares, onde foi acolhido na casa do falecido João Felippe Calmon.

 

Diante da fazenda de João Felippe ou nas suas immediações, o Rio Doce, descrevendo uma curva, se dirige um pouco para o norte. No meio dessa especie de bojo a margem se eleva á pique acima do rio, e se arredonda para formar uma meia lua, perfeitamente regular que de longe parece uma fortaleza e cujo alto semelha uma larga plataforma. Foi onde se teve a feliz idéia de construir a aldeia de Linhares ou Santa Cruz de Linhares(212).

 

A cidade constitui-se da seguinte forma:

 

Só existem ahi choupanas; porem, são dispostas com symetria e desenham os 4 lados de da praça perfeitamente quadrada, coberta de grama; na epoca de minha viagem, estavam acabando a egreja, que será muito bonita; ella occupa o centro, do lado norte da praça; é, entretanto, um pouco afastada das casas e atraz della as mattas formam uma cortina magnifica. [...] Esta villa é séde de uma parochia, a ultima da diocese do Rio de Janeiro, do lado norte. [...] Ella é tambem a da primeira divisão militar da provincia, e lá reside, como eu disse, o alferes ou o 2º tenente encarregado do commando da divisão(213).

 

Até o início do século XIX Linhares não passava de um “sonho”. A ocupação do rio Doce e sua utilização como eixo de ligação das Capitanias do Rio de Janeiro e Espírito Santo com Minas Gerais há muito era almejada pelos portugueses, visto que seria um excelente meio de escoamento das riquezas e mercadorias produzidas nessa última, e claro, de maneira significativamente mais rápida. Foi somente após os incentivos providos pelo então ministro do Interior, Dom Rodrigo Coutinho (Conde de Linhares) é que tal empresa tomou forma. A partir da instalação dos destacamentos militares na região deu-se início a prospecção de interessados em ocupar a região, tendo João Felippe Calmon atendido ao chamado, os demais habitantes seriam nas palavras de Eduardo Bueno, Náufragos, traficantes e degredados(214).

Em Linhares teve a oportunidade de visitar a Lagoa Juparanã, privilégio que não foi concedido a Maximiliano alguns anos antes. Saint-Hilaire propõe que “Parece que a lagoa Juparanan deve a sua origem a um corrego do qual não se conhece a nascente”, e que dadas as gigantes proporções dessa lagoa, as mesma deve ter se se formado a partir das “aguas deste ribeiro, [que] muito pouco inclinadas para a confluencia, ter-se-iam espalhado sobre a terra e formado o lago”(215).

Essa parte da capitania ainda permanece sem a presença do homem, o que contribui significativamente para a exuberância do local. Mesmo compreendendo a inevitabilidade da chegada do homem às margens da lagoa Juparanã, o naturalista conclui que “dia virá em que ellas se animarão com a presença do homem e se embellezarão com habitações numerosas; esse lugar será, certamente, então, um dos mais bellos do imperio do Brasil(216).

Partindo de Linhares de volta a Regência, Saint-Hilaire descobre que não era somente seu companheiro Prejent que havia caído enfermo. Firmino, o botocudo que o acompanhava, sofreu de febres ao longo do trajeto de volta pelo rio, e ao chegar a Regência descobre que Manoel da Costa e Luis, o guia cedido pelo governador, também haviam sido afligidos por tal mal.

Com as rações reduzidas, um longo caminho de volta e diversos companheiros em péssimo estado de saúde, Saint-Hilaire resolve pôr-se a caminho de volta a Vitória, na esperança que novos ares, alimentação e água pudessem melhorar o grave estado de saúde daqueles que se encontravam enfermos.

No primeiro dia do retorno, não foi possível a comitiva chegar ao Quartel do Riacho, sendo então forçados a fazer uma parada no Quartel de Comboios, que fica no interior da floresta, cerca de meia légua, e tem exatamente como função servir de apoio para aqueles que se encontram impedidos de fazer em única jornada o caminho de Riacho a Regência.

Manoel da Costa, que havia apresentado melhoras já na saída de Regência, se encontrava em bom estado de saúde, e Firmino, que cavalgou com febre e sonolência durante todo o trajeto até Comboios, apresentou, nesse lugar, significativa melhora.

A recuperação desses dois companheiros possibilitou a retomada do caminho. Prosseguiram até Aldeia Velha, onde realizaram parada para conhecer a Aldeia Piriquiassú(217), aldeia essa que surgiu após a junção das moradias que encontravam-se dispersas ao longo do rio e que eram alvos constantes dos Botocudos, afinal, ao oeste da vila, existe um grande ramo de floresta que se estende até as margens do rio Doce, domínio dos Botocudos. Saint-Hilaire descreve a pequena aldeia possuindo a seguinte forma:

 

As casas de que se compõe Piriquiassú ou Destacamento, são em numero de sessenta e tres. Muito chegadas umas ás outras, ellas cercam uma praça que tem o aspecto de um rectangulo. Todas são construidas de mageira e barro, não são caiadas e teem uma coberta de palha, que, como a de todas as cabanas deste paiz é mais alta do que as paredes. Muito mal tratadas, essas casas denunciam indigencia e seu interior é tambem assim pobre. Não existem outros moveis senão uma rede, um banquinho e uns pótes de barro. Os habitantes de Destacamento, todos indios civilisados, não mostram, em sua roupa mais magnficencia que em sua casa(218).

 

Retornando de Piraqueaçú e Aldeia Velha, chegam à Vila Nova de Almeida no Dia de Todos os Santos, 1º de novembro. Firmino novamente foi alvo de atenções e agressões como as que havia recebido em Benevente e o viajante novamente se encontrou em meio a uma grande discussão.

Nesse mesmo dia, Saint-Hilaire foi espectador das ações exaustivamente reclamadas pelos índios à imposição do trabalho por parte do governo. Nesse dia “os soldados da companhia de linha tinham vindo buscar 20 homens que deviam no dia seguinte partir para a Villa de Vianna ou S. Agostinho”(219).

Retorna finalmente sem maiores transtornos a Vitória. Hospeda-se novamente sob a guarda do Capitão Francisco Pinto e tem, novamente, Luis da Silva designado como guia, dessa vez porém para acompanhá-lo a Viana.

No caminho para Viana recebe maiores informações sobre a estrada que está sendo construída entre as Capitanias do Espírito Santo e Minas Gerais com o objetivo de interligá-las, possibilitando acesso mais rápido a essa e dando acesso a mais produtos e serviços àquela. Em Viana tomou conhecimento da, ainda paupérrima, condição dos colonos. As reclamações feitas a Maximiliano repetiram-se a Saint-Hilaire, que fez a seguinte descrição da pequena vila:

 

Vianna se compunha de cerca de 60 casas, porem não eram reunidas em um só grupo. Algumas dellas construidas de terra e cobertas de palha foram feitas. dentro das proprias posses e outras sobre uma colina separada. Ao redor das casas a matta foi derrubada e substituida por plantações de milho, de arroz, de feijão e de mandióca. No extremo de toda a zona cultivada ha uma ligeira elevação cujo alto apresenta uma larga plataforma onde se construiu a igreja, o presbiterio e tambem uma grande casa destinada ao governador.

 

Deste ponto se avista a leste uma parte das casas de Vianna e do lado de oeste uma grande caserna destinada aos soldados que protegem os colonos contra os ataques dos indigenas.

A igreja de Vianna não é muito grande, mas é bem illuminada e ornada com muito gosto. E' certamente uma das mais bonitas que eu vi desde que estou no Brasil. Não poderei fazer o mesmo elogio da casa do Governador, grande construcção de janellas perfeitamente quadradas, pesadas, mal distribuida, com entrada ao lado e á qual não se pensou nem em juntar um jardim. O governador Rubim, que foi o creador de Vianna., passava tempos nesta casa á qual se dava o pomposo nome de palacio, mas é de crer que ella tenha sido abandonada pelo seu successor(220).

 

Após sua visita a Viana, acompanhado de Luis da Silva e pelo Tenente Bom-Jardim, comandante militar da região, Saint-Hilaire retorna a Vitória e antes de se por a caminho do Rio de Janeiro decide realizar uma última visita ao Convento da Penha.

Assim como a Maximiliano, a Vila do Espírito Santo ou Vila Velha não agrada muito aos olhos desse novo viajante. Segundo ele

 

Os ataques dos selvagens, originariamente muitos repetidos, forçaram logo os europeos a se retirarem para a ilha de Duarte de Lemos. Porem, outras razões ainda contribuiram para impedir que a Villa do Espirito Santo ou Villa Velha adquirisse alguma importancia: as aguas são alli de má qualidade, o ancoradouro, á beira do qual a villa foi construida, é raso e1 as embarcações não podem navegar nelle; e por ultimo as terras da visinhança são por demais arenosas para serem cultivadas. Villa Velha se conservou séde de uma parochia e de um termo administrado por 2 juizes ordinarios e um senado municipal (camara). Comtudo, esta supposta villa é apenas um aldeiamento formado quasi exclusivamente de cabanas meio arruinadas. Si bem que visinhas das montanhas, essas cabanas são construidas sobre um terreno plano e são apenas cerca de quarenta. As menos estragadas se alongavam mais ou menos juntas até o mar e o lado opposto a este é tomado pela igreja(221).

 

Após íngreme subida até o campo do Convento, Saint-Hilaire, assim como Maximiliano antes dele, se extasia com a vista que se descortina a sua frente.

Ao fim, visitados os pontos de maior interesse e satisfeitas as curiosidades que pairavam sobre a capitania do Espírito Santo, Auguste de Saint-Hilaire decide retornar ao Rio de Janeiro, porém,

 

como existe apenas um caminho para ir de Victoria ao Rio de Janeiro aquelle pelo qual eu já tinha vindo e que não chega a ser realmente caminho, resolvi voltar por mar á capital do Brasil e enviar por terra minha caravana, com Prejent e Manoel da Costa(222).

 

Ao fim, depois de uma longa jornada e após deixar nosso viajante embarcado e despachado sua comitiva por terra, finalizamos a nossa companhia a tão ilustres personagens.

É claro que, assim como Maximiliano, as viagens e explorações de Auguste Saint-Hilaire não terminaram no cais de Vitória naquele 1818, ele ainda permanecerá cortando o Brasil até 1822, ano de seu regresso à França e as glórias que ele coletou no Brasil durante esses sete anos que esteve por aqui.

Nossas aventuras também se finalizam por aqui, afinal com tantas distâncias percorridas e obstáculos enfrentados, merecemos um breve descanso. Isso até um novo aventureiro se arriscar por aqui.

Para aqueles que decidirem seguir a viagem com Saint-Hilaire a fim de descobrir as aventuras que o Brasil proporciona, BOA VIAGEM!!!!

 

NOTAS

(163) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo. Trad. Carlos Madeira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, Coleção Brasiliana, v. 72, p. 42.

(164) Ibidem, loc. cit.

(165) Ibidem.

(166) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 46.

(167) Ibidem, p. 48.

(168) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 49.

(169) Ibidem, p. 50.

(170) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 50 et. seq.

(171) Ibidem, p. 52.

(172) Ibidem, loc. cit.

(173) Ibidem, p. 56.

(174) Na língua dos índios Puris, significa “lugar de se ver Deus”.

(175) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 59. (176) Ibidem, loc. cit.

(177) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 60.

(178) Ibidem., p. 64.

(179) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 66 et. seq.

(180) Ibidem., p. 67.

(181) Ibidem, p. 68. Ainda hoje a questão das terras indígenas na antiga região de Benevente, atual município de Anchieta, é uma questão mal resolvida, tendo em vista que os grandes empreendimentos ainda visam as terras que permaneceram sob a posse dos índios remanescentes. Sobre tal debate ver. MATTOS, Sônia Missagia de. Resistência e ação política: os índios “mansos” da aldeia de Iriritiba, Anchieta, ES – Brasil. Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória, n. 1, p. 25-44, 2017.

(182) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 68-69.

(183) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 72.

(184) Ibidem, p. 74.

(185) Ibidem, loc. cit.

(186) Ibidem, p. 75-76.

(187) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 87.

(188) Ibidem, p. 91 et. seq.

(189) Ibidem, p. 95-96.

(190) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 97.

(191) Ibidem, p. 102.

(192) Ibidem, p. 100.

(193) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 125.

(194) Ibidem, p. 127.

(195) Cf. COUTINHO, José Caetano da Silva. O Espírito Santo em princípios do século XIX: apontamentos feitos pelo bispo do Rio de Janeiro quando de sua visita à capitania do Espírito Santo nos anos de 1812 e 1819. Vitória: Estação Capixaba Cultural - ES, 2002.

(196) Hoje Serra Sede.

(197) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 130.

(198) Hoje conhecido como Mestre Álvaro. Em algum momento a variação da língua fez que a compreensão do nome da montanha se alterasse.

(199) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 130.

(200) Ibidem, p. 133-134.

(201) Ibidem, p. 134.

(202) Hoje Jacaraípe.

(203) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 144.

(204) Ibidem, p. 145.

(205) Ibidem, p. 146.

(206) Cf. Ibidem, p. 137-152.

(207) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 165. (208) Ibidem, p. 168.

(209) Ibidem, p. 185.

(210) Ibidem, p. 188.

(211) Ibidem, p. 188-189.

(212) Ibidem, p. 190.

(213) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 191.

(214) Refiro-me ao título da obra de Eduardo Bueno sobre a formação do Brasil. Para mais Cf. BUENO, Eduardo. Náufragos, Traficantes e degredados. São Paulo: Objetiva, 1998.

(215) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 198.

(216) Ibidem, p. 199, grifo nosso.

(217) Hoje reserva ambiental no município de Aracruz e está composta por nove aldeias indígenas, sendo elas Tupiniquins e Guaranis. Fica às margens do rio Piraqueaçu e está localizada entre Santa Cruz e Coqueiral de Aracruz.

(218) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 220.

(219) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 224.

(220) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 232-233.

(221) SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo... Op. cit., p. 240.

(222) Ibidem, p. 244.

 

 

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