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Teatro Capixaba Pre-Anchietano - Por Oscar Gama Filho

Oscar Gama Filho

Homem-mor do colonialismo português no Brasil, José de Anchieta é um ponto por onde todas as retas culturais do século XVI não podem deixar de passar. Nenhum olhar de águia é necessário para unir seu projeto catequético à guerra oculta e não declarada de tomada do pré-Brasil aos índios. Anchieta foi o principal articulador dessa guerra, no que ela teve de psicológica, graças ao poder de persuasão de suas peças, de suas palavras e de sua conduta. Não é, entretanto, muito claro o motivo pelo qual a obra de Anchieta continua a ser estudada, pesquisada e reeditada, enquanto que a obra de outros jesuítas seus contemporâneos e de mérito igual não é sequer citada. Esse descaso poderia ser atribuído à necessidade de construção ideológica de um herói-símbolo de uma era, de um modelo/molde que ajudasse na sujeição das gerações futuras? Não é lógico que a visão de um ídolo é melhorada pela retirada de cena das estátuas de deuses menores que o rodeiam?

Parece ter sido um processo semelhante o responsável pelo descaso em relação às inúmeras manifestações teatrais não-anchietanas do século XVI. Em termos de Espírito Santo, por exemplo, sua peça Na Aldeia de Guaraparim, que estreou a 8 de dezembro de 1585, em Guarapari (E.S.), é considerada como o marco inicial do teatro no Estado. Recentemente, porém, lendo os famosos Tratados da Terra e Gente do Brasil, de Fernão Cardim (3 ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional/Instituto Nacional do Livro/MEC, 1978), deparo com referências à montagem de uma peça do jesuíta Alvaro Lobo em 1584, no Espírito Santo, ou seja, um ano antes que estreasse Na Aldeia de Guaraparim, de autoria de Anchieta. Se eliminarmos a hipótese do processo de construção de um herói da ideologia, fica difícil imaginar como essa encenação passou despercebida pelos historiadores capixabas, já que Serafim Leite, na p. 609 do Tomo II de sua História da Companhia de Jesus no Brasil (Lisboa, Portugália/Civilização Brasileira, 1938), também a menciona, conferindo-lhe o título de Diálogo da Ave-Maria, que passarei a utilizar. 1. Tentarei, a seguir, localizar no tempo e no espaço tanto Álvaro Lobo -- de quem pouco se sabe quanto a sua obra, preenchendo algumas das lacunas ainda existentes.

Colônia criada "por decreto", no Brasil quinhentista, paradoxalmente, as leis, as instituições, o governo e a religião foram preparados e implantados fora daqui, no estrangeiro Portugal, a priori, de cima para baixo, antes daquele elemento do qual, segundo os idealistas, emanaria o poder: o povo. Por incrível que pareça, na formação nacional, o Estado antecedeu o povo. Toda semelhança com a atualidade não é mera coincidência E se não havia povo, não se pode dizer que havia pátria. Os únicos que, nesse pré-Brasil, possuíam pátria eram os índios, pois a pátria dos brancos obviamente era Portugal. O sentimento patriótico em relação ao que viria a ser o território brasileiro, se havia, estava presente apenas no gentio, visto que o objetivo dos portugueses não era, em geral, fixar residência aqui, mas sim enriquecer o mais extrativisticamente possível e voltar para a Europa. Como o povo existente (os índios) não era o povo brasileiro e não tinha a confiança do Estado, era necessário dissolvê-lo (física e espiritualmente) e criar outro. O teatro foi um dos meios empregados nessa tarefa por jesuítas como Anchieta.

Fernão Cardim, em um dos capítulos dos seus Tratados da Terra e Gente do Brasil a "Informação da Missão do P. Christovão Gouvêa às Partes do Brasil" -- descreve a entrada na capitania e a montagem da peça de Álvaro Lobo, chamada de "diálogo" porque possuía apenas dois personagens: 

“(...) aos 21 tomamos a capitania do Espírito Santo, que dista 120 léguas da Bahia. (...) Têm os padres nesta capitania, três léguas da vila, duas aldeias de índios a seu cargo, em que residem os nossos, que terão três mil almas cristãs. (...) Véspera da Conceição da Senhora, por ser orago da aldeia mais principal, foi o padre visitador fazer-lhe a festa. (...) O dia da Virgem disse o Sr. Administrador missa cantada, com sua capela, e o padre visitador pela manhã cedo antes da missa batizou setenta e três adultos, em o qual tempo houve boa música de vozes e frautas, e na missa casou trinta e seis em lei de graça, e deu a comunhão a trinta e sete. (...) Acabada a missa houve procissão solene pela aldeia, com danças dos índios a seu modo e à portuguesa; e alguns mancebos honrados também festejaram o dia dançando na procissão e representaram um breve diálogo e devoto sobre cada palavra da Ave Maria, e esta obra dizem compôs o Padre Álvaro Lobo e até ao Brasil chegaram suas obras e caridades". 2

Fernão Cardim descreve acontecimentos que ele mesmo presenciou, é bom lembrar. Esta é uma das primeiras referências à música e à dança no Espírito Santo. Quanto à peça de Álvaro Lobo, Cardim informa que a montagem ocorreu no "dia da Virgem", que, segundo Serafim Leite, na já citada página de sua História da Companhia de Jesus no Brasil, cairia em 8 de dezembro. Portanto o Diálogo da Ave-Maria teria sido encenado a 8 de dezembro de 1584.

Resta determinar o local. Pelas indicações de Cardim, sabe-se que era a Aldeia de Nossa Senhora da Conceição, situada a "três léguas da vila" de Vitória. José de Anchieta, em suas Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões (1554-1594) (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1933 p. 419), informa que existem, em 1585, a uma distância de "três ou quatro léguas da vila, por um rio muito ameno a riba, uma aldeia de índios da invocação de Nossa Senhora da Conceição, e outra a meia légua desta que se diz de S. João". 3. Como as aldeias estavam sujeitas a mudanças de lugar, admite-se até mesmo que, como expõe José Antônio Carvalho em sua insuperável obra O Colégio e as Residências dos Jesuítas no Espírito Santo (Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1982. p. 80), no decorrer da sua existência, a Aldeia de Nossa Senhora da Conceição tenha se situado na antiga Aldeia Velha (atual cidade de Santa Cruz), que, entretanto, dista aproximadamente doze léguas de Vitória . 4. Não há dúvida, porém, que a Aldeia de São João, que Anchieta e Cardim dizem estar a meia légua da Aldeia de Nossa Senhora da Conceição, ficava na atual Carapina. A partir desse dado parece mais provável que, em 1584, a Aldeia de Nossa Senhora da Conceição estivesse localizada na atual cidade de Serra, como sugere José Teixeira de Oliveira em sua História do Estado do Espírito Santo (2 ed., Vitória, Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 90): "(...) Seria a Aldeia de Nossa Senhora da Conceição (da Serra), hoje Serra". 5.

Falta, ainda, tornar mais nítida a figura do autor Álvaro Lobo, que --- por enquanto --- tem habitado este ensaio apenas como um fantasma impertinente, sombra por que passamos sem atenção, como se de tão cotidiana já nem possuísse corpo. Serafim Leite, no Tomo II de sua História da Companhia de Jesus no Brasil (Lisboa, Portugália/Civilização Brasileira, 1938. p. 609), informa sobre a representação do Diálogo da Ave-Maria no Espírito Santo e esclarece que, apesar dela, o Padre Álvaro Lobo não esteve no Brasil. 6. Pelos dados fornecidos por Diogo Barbosa Machado, no Tomo I de sua Biblioteca Lusitana (Lisboa, Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, 1741. p, 106), pode-se concluir que Álvaro Lobo nasceu em 1551, em Trás-os-Montes (Portugal), e faleceu a 23 de abril de 1608, em Coimbra:

"Nasceu em Vila Real da Província Transmontana, e das mais qualificadas famílias daquela Vila de que descendiam seus Pais Antonio Lobo, e Beatriz de Contreiras. Aos 15 anos de idade passou a Coimbra, e no Colégio dos Padres Jesuítas foi admitido a seu colega em 28 de fevereiro de 1566. Nesta escola saiu tão perfeitamente instruído nas Humanidades, que por alguns anos as ensinou aos seus domésticos com grande fama de insigne Poeta, e consumado Orador. Semelhante nome alcançou, quando em Évora ensinou Filosofia por espaço de quatro anos. Mais ilustre se fazia a sua ciência pelas virtudes, em que florescia, como eram a contemplação dos bens eternos, o desprezo dos caducos, a humildade profunda, e o domínio sobre todas as paixões. Foi regente dos Estudos de Braga, e de Lisboa, Reitor do Colégio do Porto. Ainda que era de saúde pouco robusta se aplicou com desvelo a compor a História da Companhia desta Província, a qual não lhe pôs o desejado fim interrompido pela morte, que o tresladou a melhor vida em Coimbra a 23 de abril de 1608 com 57 anos de idade, e 42 de religião". 7.

Inocêncio Francisco da Silva, no Tomo I do Dicionário Bibliográfico Português (Lisboa, Imprensa Nacional, 1858), além dos informe biográficos já mencionados, cita duas obras de que Álvaro Lobo é autor:

"Martirológio Romano acomodado a todos os dias do ano, conforme a nova ordem do Calendário (...) Coimbra, por Antônio de Maris 1591. 8º -- E no fim vem: Martirológio dos Santos de Portugal e Festas Gerais do Reino (...) Coimbra, pelo mesmo, 1591. (...) Duvida-se o P. “Álvaro Lobo é autor da Crônica do Cardeal Rei D. Henrique, que a Sociedade Propagadora dos conhecimentos úteis publicou pela primeira vez em 1840”. 8.

 

NOTAS E BIBLIOGRAFIA

1 - LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa, Portugália/Civilização Brasileira, 1938. p. 609. (Tomo II).

2 - CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. 3 ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional/Instituto Nacional do Livro/MEC, 1978. p. 203-5.

3 - ANCHIETA, José de. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões (1554-1594). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1933. p. 419.

4 - CARVALHO, José Antônio. O Colégio e as Residências dos Jesuítas no Espírito Santo. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1982. p. 80.

5 -  OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo, 2 ed., Vitória, Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 90.

6 - LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa, Portugália/Civilização Brasileira, 1938. p. 609 (Tomo II) .

7 - MACHADO, Diogo Barbosa. Biblioteca Lusitana. Lisboa, Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, 1741. p. 106. (Tomo 1).

8 - SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário Bibliográfico Português. Lisboa, Imprensa Nacional, 1858. (Tomo 1). s. v. Álvaro Lobo

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1985 - Nº 36
Autor: Oscar Gama Filho
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2014 



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