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Vasco - A história carregou demais nas tintas o seu perfil moral

Capa do Livro - Biografia de uma ilha, 1965. Autor: Luiz Serafim Derenzi

Apesar de o aliciamento de colonos, para povoarem as capitanias em que fora dividido o Brasil, ter-se processado entre a população marginal do reino, com favores especiais do monarca, conseguiu Vasco Coutinho trazer alguns indivíduos com registro no livro da nobiliarquia lusitana.

Embora Jorge de Menezes fosse degredado por crime de morte cometido nas índias, tinha títulos de benemerência: descobridor da Nova Guiné, guerreiro destemido e fidalgo de longa linhagem. D. Simão Castelo Branco, apesar de não figurar na genealogia do apelido e de haver dúvidas quanto ao seu título de dom, figura na época como fidalgo, testemunhado pelos documentos quinhentistas. Titulados foram Fernandes Velez, Braz Teles de Menezes, cavaleiro da casa do infante D. Luis, irmão de D. João III, o humanista da família real, Sebastião Lopes, escudeiro e morador em Muge, Antonio Espera, (14) cavaleiro da Ordem de São Tiago, Duarte de Lemos, fidalgo da casa real e possivelmente outros esquecidos. Não eram letrados, mas sabiam escrever e pelas funções que exerceram podiam ter contribuído com testemunhos preciosos para o primeiro capítulo da província espírito-santense. As cartas de Duarte de Lemos não passam de denúncias torpes, as de Sebastião Lopes, mero relatório de dízimos cobrados. Desse modo há um vazio a diluir os vinte e seis anos de comando do primeiro donatário do Espírito Santo.

Como terá transcorrido a viagem do "Glória" ou da esquadra, como querem alguns? Não se concebe que um navio de 100 a 120 toneladas, não fosse pilotado por navegador hábil, afeiçoado ao manejo do astrolábio, que lhe garantisse a rota à costa brasileira. Terá feito a viagem direta ou terá tocado em Pernambuco, ou, na pior hipótese, em Porto Seguro? São pontos obscuros, mas que devem ser analisados. Terá vindo com um só navio, trazendo os sessenta colonos, com mulheres, crianças, víveres, reserva de água, ferramentas, sementes, animais domésticos, artilharia e armamento? (15) É pouco provável. Talvez o "Glória" fosse apenas a capitania. (16)

Como se certificaram que haviam chegado à costa compreendida entre os limites definidos pela Carta de Doação? A bordo havia pessoa hábil, em determinação da "ladeza", para orientar a proa dos veleiros a se abeirarem do litoral, ao sul do Mucuri. E por que lançaram ferro na enseada do Santa Maria, nesse lago, surpreendente, bordado de ilhas, e protegido pelas sombras divagantes do "Moreno", do penhasco da Penha e do maciço distante do Mestre Alvo? (*) Não se deve admitir que tenham feito um reconhecimento prévio das embocaduras do Rio Doce, do Santa Cruz, dos Reis Magos antes de atingir a baía de Vitória? Seria o mais feliz dos acasos se a expedição de Vasco Fernandes houvesse, às cegas, atingido a praia de Piratininga.

Fernandes Coutinho não encontrou, no território doado, arraial ou vestígio de homem branco em que pudesse apoiar sua primitiva morada, privilégio que favorecera a Duarte Coelho, Francisco Pereira Coutinho e Martim Afonso de Souza.

Nos trinta primeiros anos da descoberta, o reino havia estabelecido pequenas feitorias nos pontos básicos da costa. Em Pernambuco, quando o donatário chegou, havia convivência portuguesa com os nativos, plantava-se algodão, a igreja de São Cosme e Damião, em Igaraçu, catequizava. Caramuru reinava práticamente na Bahia, onde as tribos dos vários "sogros" lhe prestavam vassalagem.

Em São Vicente e Cananéia, João Ramalho, o "bacharel" e seu troço de castelhanos rejubilavam-se com os lusitanos, vindos no comboio do donatário. Não obstante essas circunstâncias providenciais, Coutinho, no Espírito Santo, com todas as vicissitudes atribulantes, firmava-se no seu quinhão, defendendo-se, ora dos goitacás, ora dos botocudos, das dissenções de sua própria grei: a tolerância e a bonomia perderam-no como administrador. "Era dócil e jocoso, porém incapaz de um ato de opressão e nem sequer tinha a severidade precisa para punir os delinqüentes e criminosos". (17) Mas pergunto eu que espécie de crimes e delinqüências podia cometer aquela mísera meia centena de homens, segregados da civilização, constantemente em sobressaltos, na penúria de víveres e agasalhos de seus hábitos? A não ser a tentação luxuriante das índias selvagens, na sua nudez provocadora, poucos artigos do código penal se poderia infligir.

A história deve ter carregado demais nas tintas com que traçou o perfil moral de Coutinho. Com os dízimos, que o foral lhe garantia, com os criados que trouxe de Lisboa, custa-me crer que Vasco Fernandes Coutinho tenha esmolado aos próprios colonos. Depois da introdução da cana de açúcar, dos canaviais de Brás Teles, a capitania produziu 300 arrobas de açúcar. Embora as investidas dos goitacás fossem sempre mortíferas e destruidoras, não se erradicariam as culturas de modo completo. Havia, embora pequena, produção sobre a qual a incidência do dízimo se fazia sentir. Em 1552, o padre Pero de Souto, substituto do vigário da Vila de Vitória vencia dezoito mil réis por ano. E é sabido que as côngruas e os vencimentos da Real Fazenda eram pagos com a dízima de Deus, arrecadada na capitania. O capitão-mor, com sua redízima, tinham pelo menos renda igual. Vasco Coutinho foi indubitavelmente pouco feliz como administrador. Talvez desperdiçado e muito pródigo. Anchieta o considerava bom, protetor, humilde e que pedia perdão ao povo por suas culpas. Deve ter cometido faltas para com a colônia nascente, nos seus primeiros anos, e, na velhice doentia, procurou expiar seus pecados com atos de humildade cristã. Frei Salvador reforçou-lhe com piedade o sentimento de contrição, escrevendo no seu documento histórico, sobre a morte do nosso herói, ocorrida antes de outubro de 1551, que foi "tão pobremente que chegou a lhe darem de comer por amor de Deus e não sei se teve um lençol seu em que o amortalhassem".

Estóico, sim, o foi com grandeza, suportando as diversidades no "vilão farto", na sua capitania panoramicamente bela e rica nas terras virgens, nos vales ubérrimos, nas encostas privilegiadas das serras agrestes.

 

NOTAS

(14) Antonio Espera — Almoxarife e feitor, respectivamente, nomeado por D. João III, em 2 de setembro de 1534, para a Capitania do Espirito Santo — Pedro Azevedo.

(15) ... El Rey a deu a Vasco Fernandes Coutinho, Fidalgo que o tinha servido na índia e dos mais ilustres do Reyno, de onde a veyo conquistar, trazendo em muitas naos todos os aprestos, muita gente, e Famílias nobres para a povoarem. — Sebastião da Rocha Pitta. "História da América Portuguesa" — Pág. 86.

(16) ... "Tinha muitos mil cruzados que trouxe da índia e muito patrimônio, que tinha em Portugal..." — Vicente Salvador. "Coutinho vendeu a tença de 30.000 reais mensais por 255.000 reais" — C. M. Dias — "Regimem Feudal". "huma esquadra de navios à sua custa"... Jaboatão. ... "partiu de Lisboa com a sua família"... Rocha Pombo. "féz em Lisboa huma boa armada à sua custa"... Vasconcelos.

(*) Os coevos escreviam também "Alvaro".

(17) Cezar Marques D.H.G.E.E.S.

 

Fonte: Biografia de uma ilha, ano 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2015

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