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A safra de mamão - Por Álvaro José Silva

Sede do Jornal A Gazeta na Rua General Osório

Na velha redação do hoje falecido jornal A Gazeta, na rua General Osório 127, o trabalho era feito nas antigas máquinas de escrever. No nosso caso, a grande maioria era de Olivetti, um modelo extremamente forte e pesado, todo de ferro. Depois que as notícias eram escritas em laudas tamanho padrão - 25 linhas de 72 toques por linha -, o redator conferia o texto, entregava para a diagramação e daí ele descia para a composição. Lá, no andar de baixo, alguém copiava os originais em um equipamento que os transformava numas tiras de impressão que então eram coladas às páginas no lugar diagramado na redação para que tudo se tornasse uma unidade inteira de impressão. Um sistema complexo, demorado, mas era o que havia.

Um belo dia, eu havia saído para comer alguma coisa na cantina e voltava à minha mesa de trabalho. Vi então que a amiga Denise Zandonadi, repórter de Economia, parava de escrever uma determinada matéria para ir até o lugar onde estava o telefone, nos fundos da sala. Sim, naquela época, não havia celulares e um único aparelho daqueles bem velhos e pesadões, os telefones pretos, servia a todos. Alguém havia ligado para ela.

Parei ao lado de sua mesa e olhei. Na máquina de escrever, estava uma lauda com um texto sobre safra agrícola. Estava escrita a previsão da colheita daquele ano segundo o órgão responsável, e ela havia escrito "X" mil toneladas de café, "X" de laranja, "X" de cacau, "X" disso "X" daquilo e o texto parava em um "e". Olhei para me certificar de que ela não vigiava sua mesa, sentei-me diante da máquina de escrever e, depois do "e", escrevi um rotundo "mamão para caralho". Dei ponto, abri outro parágrafo e deixei a lauda lá, com aquela continuação em aberto.

Ri intimamente, pensando em ela voltar, descobrir o engodo e, danada da vida como toda italiana é, sair aos trancos e barrancos tentando encontrar quem havia sido o sacana que colocara molecagem na matéria dela. Só que, nesse meio tempo, fui chamado à sala do editor-chefe, Jackson Lima. Uma pessoa havia chegado lá para dar notícia sobre uma obra qualquer ligada a futebol. Coisa envolvendo esporte. Só sei que demorei muito tempo para retornar à mesa e quando, finalmente, fiz isso, a Denise continuava lá escrevendo. Calmamente. Desligadamente. E pensei comigo: "Ela viu, apagou e vai dar de ombros para que eu fique aqui esperando por uma reação que não virá. Eu vou fazer o mesmo".

Fui cuidar da vida, pois, logo em seguida, teria de começar a editar a primeira das páginas de esporte. Uma delas descia sempre ao final da tarde para adiantar o fluxo de trabalho da diagramação e composição. Isso era necessário num jornal que então tinha o processo de composição a quente, feito em velhas máquinas de linotipo que derretiam chumbo para compor letra por letra nos blocos que iam aos poucos fazendo as páginas. Absorto pelos afazeres, simplesmente me esqueci do que havia feito.

Mas era para me preocupar. Não vi, mas Denise havia voltado do telefonema e visto a lauda com o parágrafo aberto na máquina. Julgou que tinha terminado de datilografar a relação e continuou normalmente até acabar todo o texto. Entregou-o ao editor Orlando Eller que conferiu o número de linhas e o enviou à redatora para o copydesk. Era para ela ter visto o impropério, mas deixou passar. Se viu ou se não viu, jamais perguntei. Só sei que, depois disso, o diagramador, que já havia desenhado a matéria na página, anotou no cabeçalho os dados de identificação, prendeu o maço de papel ao prendedor e o desceu para e composição pelo buraco que havia na parede com essa finalidade. Lá as laudas seriam recolhidas, como sempre acontece.

Um dos profissionais responsáveis pela composição era um senhor obeso e evangélico. Não me recordo do nome dele. Sei porque me foi relatado, que ele começou a teclar a matéria e de repente parou. Os olhos arregalados. Levantou-se e procurou pelo responsável pelo setor, Abílio Eugênio França Matos, que também ficou de olhos arregalados. "Leve na sala do editor-chefe e mostre isso ao Jackson", disse ele ao responsável pela teclagem. O teclador saiu imediatamente e subiu as escadas.

Foi então que minha história e a "da safra de mamão" se encontraram novamente. Já estava editando a segunda página de esportes e Jackson Lima me chamou até ele para falar sobre o assunto da pessoa que havia passado por lá e conversado conosco à tarde. Recordo-me de que era alguma coisa ligada à construção do estádio do Rio Branco, em Campo Grande, Cariacica. Era para cobrar o texto da conversa. Entrei, sentei-me diante dele e disse que precisava voltar rápido para a diagramação, pois uma página havia deixado o diagramador parado. Foi então que o evangélico da composição entrou na sala espumando de raiva por todos os poros, pediu licença dizendo que era urgente, mostrou o maço de laudas ao chefe da redação e disse:

- Seu Jackson, eu acho que essa moça, a Denise, é doida!

E eu ali. O "crime" à minha vista. Esperei o editor-chefe ler, arregalar também seus olhos por detrás dos óculos e se preparar para levantar. Até hoje não sei se ele ia chamar o editor Orlando Eller ou a própria repórter. Talvez o responsável pela editoria. Sei apenas que, na exata hora em que ele bateu com as mãos na mesa para se levantar - era um homem obeso - eu pulei na frente dele para paralisar a coisa por ali mesmo. Disse:

- Jackson, mande o senhor fulano voltar porque eu sei o que aconteceu.

Peguei as laudas, com minha caneta risquei o trecho impróprio, devolvi o maço para o funcionário e, dizendo um "volte ao trabalho”, o despachei do lugar. A essa hora Jackson já havia se sentado de novo. depois de fazer um gesto de "vá embora" ao pobre evangélico, que estava sem entender nada. Estávamos novamente na sala somente eu e ele. Esperei que acendesse o cigarro, disse que precisava voltar à diagramação e perguntei pelo assunto da reunião da tarde. Ele se limitou a fazer um sinal de "calado":

- Estou diante do responsável por isso tudo, não é?

Deu uma risada:

- Era uma brincadeira com a Denise. Eu ia esperar que ela visse aquilo, que desse um pulo como toda italiana que se preza e depois levantaria o braço com um sinal de "fui eu", para vê-la riscar o trecho com raiva. Mas aí você me chamou aqui na sala, demoramos e, quando eu voltei, não reparei que ela simplesmente não havia visto nada. Isso me parecia impossível.

Ele ficou possesso:

- Puta merda, Álvaro, o culpado fui eu?

Falei de novo, agora sério:

- Tá bom, foi uma brincadeira de mau gosto e quase me dei mal. Desculpe-me e preciso voltar agora para a diagramação. Mas ele ainda não havia terminado:

- Se isso tivesse saído no jornal, o Cariê iria demitir você por justa causa, seu idiota. E, fatalmente, uma irresponsabilidade como essa respingaria em mim. Bote a mão na consciência e volte para terminar sua edição. Nem quero acreditar que isso esteja acontecendo. Suma. E sem rir!

Levantei-me da mesa com um "com licença, Jackson" e sai da sala dele. Juro por tudo o que existe de sagrado nessa vida que o vi rindo quando fechei a porta atrás de mim. O diagramador, que também estava uma onça, me perguntou o que o grande chefe queria comigo. Respondi:

- Vamos diagramar essa coisa logo. Você não iria acreditar.

Deixei que se passassem alguns dias. Jackson sem falar comigo. Até que, uma semana depois, ele me chamou para comer um filé medalhão ao molho de madeira no Restaurante Mar e Terra, na Volta de Caratoira. Esperamos que a cerveja fosse servida depois de os pedidos feitos. Então, meu velho companheiro de tantas histórias na redação de A Gazeta, disse:

- Precisamos conversar...

- Agora... emendei eu.

E ele simplesmente começou a rir. E eu simplesmente comecei a rir também. Daí em diante, ninguém conseguia entender porque, naquela mesa mais ou menos no centro do salão do restaurante, dois homens, um de meia idade e outro jovem e cabeludo, davam gargalhadas sem parar. Como isso - o riso - é contagioso, a maioria dos demais riu também.

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-Santense de Letras, volume 25 – AEL, 2020
Autor: Álvaro José Silva
Jornalista e Escritor. Pertence à Cadeira 14 da AEL
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2021

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