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As Políticas de Ação Afirmativa e o Movimento Pelas Cotas na UFES

Movimento pelas cotas na UFES

Resistência e reivindicações por ações afirmativas

 

Este texto abordará o contexto de implementação das ações afirmativas no Brasil, contextualizando tal movimento no Espírito Santo, especificamente a luta por cotas na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

A escravidão oficial brasileira constituiu-se como mecanismo social e ideológico de produção de um imaginário social da inferiorização dos negros e fortaleceu-se como instrumento prático de manutenção dos negros na base da estratificação social mesmo após abolição. A pobreza seria uma das condições resultantes dessa organização social originada no início do século XVI, ao passo que uma das dimensões promotoras da exclusão social do negro foi a negação histórica do trabalho, terra e educação.

Nessa direção, o Estado brasileiro promulga a Lei 1, de 4 de janeiro de 1837, cujo artigo 3° estabelecia a proibição de frequentar as escolas públicas de “todas as pessoas que padecem de moléstias contagiosas” e todos “os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”. Assim, a educação foi distanciada socialmente dos negros por ser estratégica para o processo de conscientização e mobilidade social e de reconhecimento de um grupo social enquanto formado por sujeitos políticos de direitos.

A lógica da exclusão social da escravidão se manteve após a abolição, cujas marcas perversamente racistas e classistas se ressignificam constante e quotidianamente na sociedade brasileira, principalmente nos espaços de poder, riqueza e privilégio. A potencialização de uma política de branqueamento da população brasileira, a eugenia, a ideologia da miscigenação e a imigração, em consonância com as ideias racialistas europeias do século XIX, permitiram a exacerbação da desconstrução da identidade negra, o alijamento dos negros do trabalho e, evidentemente, a não-consideração dos negros enquanto detentores de direitos.

A ideia de identidade nacional pulveriza mecanismos simbólicos e culturais identificadores da cultura negra, como a capoeira, as religiões de matrizes africanas, a culinária e os variados saberes peculiares aos negros. Assim, diante de um distanciamento social e oficial de um reconhecimento da negritude e a tudo que lhe pertencia, tanto na dimensão material, quanto na simbólica, os negros sempre reivindicaram direitos e resistiram a um sistema atroz como a escravidão e os mecanismos contemporâneos de desigualdades no Brasil. Essas reivindicações, em seu início, não tiveram o nome estritamente de cotas, mas sempre explicitaram a afirmação de clamor por justiça social e por uma igualdade que se distanciasse da mera formalidade jurídica e que se aproximava da materialidade concreta de ganhos sociais que possibilitasse a garantia efetiva de uma proteção social que preenchesse as condições mínimas de produção da vida.

A Frente Negra Brasileira (FNB), já na década de 1930, reivindicava junto ao Estado escolas primárias e de ensino profissionalizante para os negros brasileiros, assim como organizava e instalava vários cursos pra suprir a negação da educação formal para a negritude do País (SISS, 2003). De forma bastante evidente e específica, os membros do Teatro Experimental do Negro (TEN) reivindicam nos anos 40, principalmente Abdias do Nascimento, junto ao Estado brasileiro, o direito ao ensino universal e gratuito e a “admissão subvencionada de estudantes negros nas instituições de ensino [...] universitário” (SISS, 2003, p. 51). E isso é prova histórica de que políticas de ações afirmativas para a população brasileira são genuinamente nacionais, considerando as especificidades da exclusão dos negros no Brasil e que o movimento negro teve papel singular nesse processo de reivindicação de direitos sociais.

Na década de 1970, com o Movimento Negro Unificado (MNU), dentre várias demandas reivindicadas, a educação constitui-se uma das mais visadas na luta do movimento negro. Em 1983, o então deputado federal Abdias do Nascimento propõe o Projeto de Lei n. 1.332, de “ação compensatória”, que estabeleceria mecanismos políticos de reparação para os negros após várias décadas de exclusão social e discriminação racial no País. Apesar de não serem aprovadas pelo Congresso Nacional, as pautas reivindicativas continuaram no âmbito das esferas oficiais públicas (TELLES, 2003; MOEHLECKE, 2002).

Outro marco das ações afirmativas demandadas pelo movimento negro foi a “Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo pela cidadania e a vida”, ocorrida em novembro de 1995, quando existiu uma pressão política por direitos da população negra. Nessa marcha foi apresentado o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, que inclui, dentre outras solicitações, o estabelecimento e a adoção, por parte do Estado, de programas de promoção da igualdade racial no mercado de trabalho e na educação. O governo de Fernando Henrique Cardoso recebeu o documento no final de 1995 e instituiu, em fevereiro de 1996, o Grupo de Trabalho Ministerial (GTI), com objetivo de desenvolver políticas de valorização e promoção da população negra. Para isso, foram realizados dois seminários para debater o tema, um em Salvador (BA) e outro em Vitória (ES), de onde foram elaboradas 46 propostas de ações afirmativas abrangendo as áreas do trabalho, educação, saúde e comunicação (MOEHLECKE, 2002).

Em 1996, foi criado, pela Secretaria de Direitos Humanos, o Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), que tem o objetivo de formular e desenvolver medidas de ações afirmativas para os negros no Brasil. Um grande marco para o debate das ações afirmativas no Brasil foi a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerância, realizada no ano de 2001 em Durban, cujo documento legitima e propõe medidas de reparação e de inclusão para os negros no Brasil.

A luta por cotas na Universidade Federal do Espírito Santo

A Ufes foi fundada em 5 de maio de 1954 e é a única universidade no Espírito Santo. Há que se considerar que a educação brasileira, desde tempos coloniais, ou foi mecanismo de dominação para com os grupos socialmente excluídos, ou foi instrumento de privilégio e prestígio para a elite branca. No Espírito Santo, historicamente, o grupo que mais se beneficiou das vagas da Ufes, principalmente nos cursos socialmente mais valorizados, como Medicina, Engenharia e Direito, foi a elite capixaba oriunda de cursos pagos, em sua maioria.

Em consonância ao contexto brasileiro, a universidade capixaba foi se embranquecendo e se elitizando, e a lógica meritocrática, reiterada na Constituição de 1988 e na LDB 9.394 de 1996, no que tange ao acesso universitário, permitiu a formação de um verdadeiro “confinamento racial” na universidade brasileira, como bem destacou Carvalho (2005-2006). Assim, por ser limitado o número de oferta de vagas no ensino superior espírito-santense, a luta pelo acesso à instituição sempre foi presente, principalmente por grupos socialmente excluídos, como negros, pobres e indígenas, cuja presença no Estado é de extrema relevância e significância para a formação social capixaba, ao mesmo tempo em que ocupam infimamente espaços de poder, riqueza e privilégio.

Algumas instituições capixabas do movimento negro, já no final da década de 1970, articuladas ao movimento negro nacional, começam, de forma institucional e informal, a debater demandas de acesso ao ensino superior público na universidade capixaba. Por volta de 1982, o movimento negro do Espírito Santo alimenta fortemente a discussão acerca da ausência de negros na Ufes. Os poucos negros que lá estudavam timidamente verificavam e manifestavam indignação sobre o espaço acadêmico “selecionado” apenas, na maior parte dos cursos, para brancos e pessoas de grande poder aquisitivo. No final da década de 1990 o Centro da Cultura Negra (Cecun) protocola na Ufes uma proposição de cotas para negros na universidade capixaba.

A Ufes, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça e a Secretaria de Cidadania e Segurança Pública da Prefeitura de Vitória/ES realizaram na universidade o seminário Cotas para Negros nas Universidades Brasileiras, nos dias 13 e 14 de dezembro de 2004. Um dos propósitos desse evento era constituir a Comissão Pró-Cotas da Ufes, para propor e acompanhar a implantação de políticas afirmativas na universidade. A composição da comissão foi composta por representantes do Movimento Negro Capixaba, representantes da Ufes nos segmentos estudantil, docente e de servidores técnico-administrativos, e outras entidades da sociedade civil capixaba.

Para alimentar o intento de implementação de cotas na Ufes, a comissão, juntamente com entidades negras do Espírito Santo, em maio de 2005, realizou mais um debate em sessão especial da Assembleia Legislativa do Estado, tendo como conferencista o eminente jurista e secretário de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, professor Dr. Hédio Silva Jr. O evento reuniu várias entidades do Movimento negro, representantes da Ufes, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Governo de Estado do Espírito Santo e deputados capixabas, para uma reflexão sobre o tema “Cotas para negros nas Universidades: Aspectos Jurídicos”. Nesse debate foi deliberada uma proposta coletiva de implementação de cotas na Ufes.

A Comissão Pró-Cotas protocolou na universidade, em 4 de agosto de 2005, um documento para os conselhos superiores da Ufes. Tratava-se de uma proposta preliminar de cotas para o vestibular de 2006, contendo as seguintes reivindicações:

 

a) quanto ao percentual de vagas: percentual de 28% das vagas para negros (pardos e pretos), 24% para alunos oriundos de escolas públicas municipais e estaduais; e, 0,1% para indígenas; b) procedimento para identificação da etnia: autodeclaração do candidato no ato da inscrição; c) critério de aprovação: nota de corte diferenciada calculada dentro do respectivo grupo étnico, ou egresso de escolas públicas; d) mecanismo de permanência do aluno cotista na Instituição: programa de assistência financeira, material e acadêmica (DOCUMENTO PRÓ-COTAS, 2005, p.2).

 

O debate se dá internamente na Ufes. Passeatas, piquetes e enfrentamentos políticos deram o tom da tensão e do conflito que houve na universidade. Vieram representantes do movimento negro, de escolas públicas e outros setores do Estado favoráveis à implementação de cotas para negros, juntamente com representantes e alunos dos cursinhos pagos. Estes trouxeram trios elétricos para a universidade, num embate peculiar. A proposta de cotas para negros e indígenas na Ufes era extremamente rejeitada pelos cursinhos privados e grupos afins. Alguns intelectuais da época chegaram a falar que essa rejeição e embate dos dois grupos constituiu uma verdadeira “guerra civil”, simbolicamente representada por propostas a favor e contra o projeto do movimento negro e simpatizantes de inclusão étnico-racial na Ufes.

Depois de muito debate, a proposta da Comissão Pró-Cotas da Ufes foi vencida em 2006, principalmente na pauta que reivindicava o corte étnico-racial. Depois dos embates acadêmicos e políticos, a universidade, a partir do vestibular de 2008, adota um sistema de reserva de vagas de 40% de cada curso para alunos que estudaram em escolas públicas (ensino fundamental e médio) e possuem renda familiar inferior ou igual a sete salários mínimos. Mesmo com rejeição da proposta de cotas para negros e índios na Ufes, houve, por um lado, um avanço, quando a universidade adotou as cotas sociais, e, por outro, um retrocesso, quando não se contemplou o critério racial, como bem destaca um líder do movimento negro capixaba:

 

Nós não podemos falar que não houve avanço, houve avanço sim, mas esse tipo de avanço garante uma inserção socioeconômica que, por si só, não garante a representação negra e indígena. Os dados da universidade provam que essa política de cotas da Ufes [...] não está contemplando a população negra nem a população indígena (Representante do Movimento Negro Capixaba).

 

Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprova a constitucionalidade das cotas étnico-raciais, cujo embasamento jurídico deu fundamento para que a presidenta Dilma Rousseff aprovasse, em 29 de agosto de 2012, a Lei n. 12.711. Essa lei institui que “as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (BRASIL, 2012. p. 1), considerando também o recorte de um salário mínimo e meio per capita e o corte étnico-racial de acordo com a proporção de cada Estado da Federação Brasileira. Nesse contexto, a Ufes adota, a partir do vestibular de 2013, cotas em seus cursos para pessoas das camadas populares, negros, índios e alunos de escolas públicas.

Nesse sentido, a implementação das cotas étnico-raciais nas universidades brasileiras é e continua sendo um instrumento legítimo de luta pela educação, considerando-a como direito social dos grupos historicamente apartados de princípios constituidores da emancipação, da cidadania, dos direitos humanos, da justiça social e da diferença.

 

Sérgio Pereira dos Santos, autor do texto - É graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e Mestre e doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Ufes. Foi professor substituto na mesma Universidade nos períodos entre 2009 e 2012. Tem experiência com educação pré-universitária alternativa para os jovens negros e das camadas populares. A tese de doutorado analisou as categorias de raça, classe e cultura negra, considerando as interfaces com a educação e a implementação das cotas sociais da Ufes. É membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Ufes.

 

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Fonte: Negros no Espírito Santo / Cleber Maciel; organização por Sérgio Pereira dos Santos  – 2ª ed. – Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2022

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