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A Insurreição do Queimado

Senzala e o local onde era colocada a comida dos escravos - praticamente um cocho

A escravidão no Espírito Santo, à luz dos cronistas e historiadores provinciais, não foi mais severa do que nas demais unidades brasileiras. Somos levados a admitir até que houve mais cordura, porque na Província não houve propriamente dito o fenômeno "Casa Grande", onde a escravatura numerosa exigia fiscalização atenta, quase sempre exercida por homens de valentia e crueldade. No período de formação dos poucos latifúndios trabalhados que tivemos, justamente no auge da densidade escrava, nas quatro dezenas de anos, antes da lei áurea, a Província oferece documentação para se inferir que o regime escravo não diferia do das demais unidades do Império. Não há notícias de que grandes fazendeiros, como Joaquim Marcelino da Silva Lima, Antônio Rodrigues da Cunha, Capitão Souza, proprietários de grandes senzalas, tivessem exorbitado das prerrogativas de "senhores". Os proprietários de pequeno número de escravos, via de regra, os tratavam como domésticos. Os sacerdotes de nomeada, literatos e políticos dominantes que foram, tais como Marcelino Duarte, João Climaco, Azambuja Meireles, Madalena Duarte, Fraga Loureiro, Wanzeler e muitos outros, tiveram seus escravos tratados com humanidade. Eram exemplos salutares aos vizinhos e correligionários. As irmandades de "homens pretos" gozavam de prestígio na sociedade. Não significa, porém, que os negros, no Espírito Santo, vivessem no seio de Abraão. Eram escravos e como tais se lhes exigia trabalho pesado e obediência cega. E qual fosse o tratamento dado ao cativo, a liberdade seria sempre sua máxima e justa aspiração. A senzala era o curral, o escarmento, o atentado aos sentimentos cristãos. O ódio surdo e recalcado devia brilhar em todos os olhos dos pobres miseráveis qual senha, aprazando a revolta a cada instante.

Os quilombos iam-se enquistando nas taperas vizinhas. O governo temia, mas não os provocava à luta. Desde 1840 os presidentes da Província queixavam-se ao Ministro do Império, fazendo-lhe ver os perigos em perspectiva. Silva Couto informa ter armado vinte e quatro homens para auxiliar a polícia na captura dos fugitivos. Siqueira atribui o "definhamento da agricultura" à formação de pequenos arraiais de negros.

Chama-se Insurreição do Queimado ao levante de escravos, em busca de alforria, havido em 19 de março de 1840. Foi teatro do acontecimento o acidente orográfico da margem esquerda do Rio Santa Maria, do nome Queimado, na sede do distrito de S. José, próximo à Estação de Alfredo Maia, da Estrada de Ferro Vitória a Minas.

Dois frades franciscanos, de província italiana, pregavam nos arredores de Vitória e Frei Civitelo de Trento em Cariacica, onde não encontrou dificuldades. Em Queimado, Frei Gregório José Maria de Bene não teve a mesma fortuna. A nova freguesia, pobre de clima e de moradores, não passava de pouso de canteiros do Rio Santa Maria. Mas tenaz, como sabem ser os franciscanos, entendeu de construir uma igreja de noventa palmos por vinte, cuja pedra fundamental cimentou em 15 de agosto de 1845. Associaram-se os moradores do pequeno povoado à mão escrava, mas o trabalho progredia lentamente com periódicos mutirões. Em meados de 1848, Frei Gregório de Bene marcou a inauguração da igreja para o dia 19 de março próximo, festa de São José, a cujo patrocínio dedicava o templo. Em seus sermões, pregava o franciscano o temor de Deus e a caridade entre os homens, todos irmãos em Cristo. Como europeu e sacerdote, o servilismo humano o deveria escandalizar. É provável que, em seus arroubos oratórios, condenasse, com inflamada imprudência, a situação dos escravos visando à comiseração dos "senhores". Talvez tenha feito sentir o merecimento à liberdade dos que trabalhavam na construção do templo. São hipóteses cabíveis dentro do estudo elaborado pelo historiador da "Insurreição do Queimado", Desembargador Afonso Claudio. Mas afirmar-se que Frei Gregório José Maria de Bene prometera alforriá-los é arriscar-se no escuro e condenar o frade como perjuro, sem apoio em prova substancial. Quantos escravos teriam trabalhado na construção da igreja? Dez, quinze, vinte no máximo. E o levante somou mais de duzentos homens, na maioria armados.

A insurreição foi cautelosamente premeditada. Não transpirou em nenhuma fazenda. A surpresa foi absoluta.

Amanhecera o dia 19 de março de 1849. O povoado reunia os habitantes da redondeza, larga de mais de seis léguas. Os escravos, de fatiota nova, misturavam-se com os devotos ansiosos pela festa, sempre alegre e oportuna para os que labutam nas lides rurais. A solenidade da bênção do novo templo começou pela missa votiva. Em meio ao ato religioso e solene rompeu o vozeiro dos escravos sob o comando do cativo Elisiário, pertencente ao Sr. Faustino Antônio de Alvarenga Rangel, proprietário do "Perau", próximo do Una de Santa Maria. O mangote maior de sublevados ocultava-se no capoeirão vizinho. Gritavam por liberdade! Frei Gregório atônito interrompe a missa. Era a insurreição, que rompia em pleno templo de Deus. Sem muitas dificuldades os assistentes livres acompanharam o padre à sua residência e por precaução fecharam-se por dentro. Eram pelo menos o escravo João, da fazenda do Una, pertencente a Maria da Penha Pereira, o sacristão, o Juiz de Paz e os mais notáveis presentes à solenidade. Perceberam os amotinados o perigo do malogro e as conseqüências da rebeldia. Coagiram a que lhes abrissem a porta da residência e intimaram Frei Gregório de Bene a dar-lhes o que ele não tinha poderes para dar: liberdade!

Aos gritos, respondeu-lhe o franciscano ofendido, dirigindo-se ao cabeça dos rebeldes Elisiário que "não podia, não devia nem queria dar-lhes cartas de alforria" e ainda "que obedecessem aos seus senhores e voltassem para suas casas, que era pronto para patrociná-los". São palavras do juramento escrito pelo padre, com invocação de testemunhas presenciais. No meio ao desacato que recebia, o humilde religioso aconselhava obediência e se propunha a interceder junto aos senhores para justificá-los.

Passados os instantes de estupefação, o professor Manuel Pinto de Alvarenga Rosa aconselhou o padre a não fechar as portas da igreja e dar por encerrada a cerimônia. Não podiam parecer covardes diante dos escravos. Reiniciou Frei Gregório a missa, mas não a pôde terminar.  Agora, a grita era acompanhada de ameaças físicas. O povo debandou contrito e apreensivo. Em grupos os escravos percorreram as fazendas ribeirinhas, exigindo que lhes assinassem cartas de alforria. Findava a festa como vigília de luto, de sangue e brutalidade.

Entretanto, um estafeta, despachado para a Capital, pedia socorro ao governo. Os insurgentes, à noite, reuniram-se em Pendiuca, capão que esconde o pequeno afluente do Santa Maria, sob o comando de "Chico Prego", autor da propaganda entre Queimado e Mangaraí. O desembargador Antônio Joaquim de Siqueira, Presidente da Província, no mesmo dia providenciou socorros e repressão. Aprestou-se o chefe de Polícia, Dr. José Inácio Acióli de Vasconcelos, com soldados da milícia sob o comando do Alferes Varela da França. No dia 20 a tropa fez alto no Queimado. Inquerido Frei Gregório e seus amigos, o destacamento militar procurou contato com os escravos amotinados. O choque se deu na "Ladeira de João Santos". Os rebeldes disparam suas espingardas e ferem o corneteiro e o oficial. A tropa investe enfurecida, porém, os inimigos batem em retirada. Elisiário e companheiros, escravos dos Alvarengas, nadaram o Santa Maria. Duas vítimas inermes foram o troféu da luta inglória, conquistado pelos milicianos. Frustrada a insurreição, começou a caçada humana. Ao Capitão Antônio Teixeira Pinto, delegado da Vila da Serra, coube a inglória tarefa de limpar os matos de Queimado. Trinta escravos presos foram entregues aos proprietários depois de supliciados. A maioria dos pobres insurgentes procurara suas senzalas como abrigo.

O delegado serrano praticou toda a sorte de atrocidades, prendeu trinta e seis fugitivos e os responsáveis, "Chico Prego", João da "Viúva", Elisiário e seu irmão Carlos, na fazenda do padre Dr. João Clímaco do Alvarenga Rangel. A Côrte foi informada e por precaução mandou o navio "Paquete do Sul" com reforços do exército. Foram rápidas as providências monárquicas. Chegaram a 30 de março, dez dias depois do levante. Nada tinham a fazer. A calma e a paz reinavam em Abrantes!

O processo criminal correu célere. Em 31 de maio instalou-se o júri. A acusação foi feita pelo provisionado Manoel Morais Coutinho. Ao padre bacharel João Clímaco coube a defesa. Três dias durou o júri terminando pela absolvição de seis, cinco condenados à pena capital e os demais acusados ao pelourinho para receberem de trezentos a mil açoites. Baldados os recursos oratórios do famoso advogado eclesiástico, recorreu ao patético pedido de prisão de Frei Gregório de Bene como autor intelectual do levante. O Juiz José Antônio Acióli de Vasconcelos recorreu da sentença inutilmente. Os maus tratos praticados pelos esbirros policiais abreviaram, para muitos, os sofrimentos e a o suplicio da força na Serra e João, escravo de Jacui, escravo de Jacuí frente à igreja que ajudara a erguer. Ambos os galés tiveram os corpos mutilados pelo carrasco, inábil e perverso. Encerrava-se o capítulo trágico da Insurreição do Queimado.

MANUMISSÃO

Não foi inútil, porém, o sacrifício das vítimas do Queimado. Passados os primeiros anos da funesta ocorrência, o sentimento de comiseração para os escravos tomou sentido humano. A Lei número 25, de 1869, autorizou, ao Presidente Francisco Correa, a despesa de seis contos de réis, pelo prazo de cinco anos, para alforriar meninas de cinco a dez anos de idade. No decurso do período, 78 criaturas se beneficiaram do favor provincial. O levantamento democráfico do Império, em 1875, acusava um total de 1.476.567 escravos. Mais de vinte por cento da população brasileira era cativa.

Eis um quadro elucidativo do número de escravos em algumas Províncias:

Minas Gerais   366.574

Rio de Janeiro   270.726

Bahia   162.295

São Paulo   156.612

Pernambuco   89.022

Município Neutro   48.932

Espírito Santo   22.732

 

A Província conta pouco mais de 72.000 habitantes. A doutrina abolicionista ganha adeptos fervorosos. A Assembléia aprova nova lei manumitente, em 1871, beneficiando escravos de doze a trinta e cinco anos de idade. Os deputados atendem aos sentimentos do povo.

Entre os legisladores figuram proprietários de terra e homens, cujo prestígio político dependia dos fazendeiros, donos de escravos. Substimavam o interesse próprio em benefício da solidariedade humana. Deputados foram Constantino Gomes da Cunha, José Francisco de Andrade e Almeida Monjardim, Torquato Caetano Simões, Luiz Rosa Loureiro, Alfeu Adolfo Monjardim, João Alberto do Couto Teixeira, militares e proprietários, Leopoldo Augusto de Melo Cunha, engenheiro e fazendeiro, Joaquim Pires do Amorim, advogado e dono de terras e tantos outros que subscreveram a lei.

Em janeiro de 1874 funda-se a "Associação Emancipadora Primeiro de Janeiro". No mesmo mês a Irmandade de S. Benedito se constitui também manumitente. Generalizava-se pouco a pouco, sempre em ritmo apreciável, o interesse e o entusiasmo em benefício da libertação dos escravos, causa que iria ser apanágio da carreira de Joaquim Nabuco e do Visconde do Rio Branco, no Parlamento Nacional.

 

Fonte: Biografia de uma ilha, 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2017

História do ES

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