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A mata virgem - François Augusto Biard, 1858

Igreja de Santa Cruz - Ilustração de Augusto François de Biard

A mata virgem, Vitória, Nova Almeida e Rio Doce, 1858.

O Desenhista e aventureiro francês, François Auguste Biard passou grande parte de sua existência percorrendo o mundo; no Brasil esteve em 1858 e 1859, tendo viajado por várias regiões do Rio de Janeiro, do Espírito Santo e da Amazônia.

Era nossa intento deixar as bagagens em Vitória e ao atingirmos Santa Cruz mandar buscá-las em canoas. E como não tivéssemos de partir logo, fui dar uma volta pela cidade e seus arredores; foi ali que vi pela primeira vez um grupo de índios formando uma espécie de bairro. São bem numerosos esses indígenas: a sua habitação, sem que se possa chamar uma casa, não é, contudo mais uma taba. Eles já tinham certos hábitos civilizados. Entrei em uma dessas habitações: em quase todas, mulheres faziam rendas de almofada e se via um periquito empoleirado em um pau. Vi também, alguns papagaios soltos.

No dia seguinte os cavalos estavam à nossa porta; os portadores foram em busca das selas, o que demorou bastante, porquanto as ruas são ladeirosas e não se pode com facilidade galgá-las sem perigo de escorregar. Caminhamos, à procura dessas selas, abaixo e acima, sem resultado; de uma casa nos mandavam à outra e nada! Ouvíamos repetir inúmeras vezes esta frase desesperada: "Um cavalo sem sela!" E, como consolo, todos nos diziam (como se diz  goddem na Inglaterra e dam na França): "Tenha paciência!". Esse contratempo que nos atingia tornara-se quase urna calamidade pública; pessoas obsequiosas se esforçaram em nos ser gentis e em breve traziam-nos dois arreios completos, com ares de triunfo. E pudemos afinal partir em paz.

A região que de início percorremos não tinha nada daquela com que eu sonhara. Nada de virgem tinha a natureza; ao contrário, já sofrera muitas modificações. Atravessamos campos outrora cultivados e agora em abandono. De quando em quando era necessário aos animais meterem-se na água dos rios; por mais precauções que tomássemos, ficávamos molhados e, de outras vezes, tínhamos de nos ajoelhar em cima das selas. De certa feita o meu cavalo viu-se na contingência de nadar um bocado, pois eu errara o ponto mais conveniente para a travessia do curso d’água. O banho foi completo e, se a água não fosse salgada, teria gostado da oportunidade, pois fazia muito calor. Doíam-me bastante os pés porque os estribos, segundo o costume da terra, são muito apertados e mal cabem neles os bicos das botinas. Por mais de uma vez o cavalo do meu companheiro tropeçara e estivera a ponto de se atolar quando atravessávamos os charcos tão freqüentes nesta região; isto deu margem a que, após havermos descansado um pouco em uma barraca, o italiano, no intuito de me ser agradável, trocasse o seu cavalo comigo, estando, como me declarou, mais acostumado com esses estribos. Convém notar que meu animal tinha as pernas mais sólidas; contudo mostrei-me grato a esse gesto obsequioso que me dera uma ruim montaria em troca de uma boa.

Notara já lindos insetos ora voando em torno de nós, ora pousados nas folhas. Entretive-me, então, a caçá-los, aliás, frutuosamente, valendo-me do auxílio do negro. Íamos pegando não somente os que eu encontrava como os que o negro, com seu instinto de gente de cor, descobria entre os matos. A caminhada foi-se tornando mais distraída com o aumento da minha coleção. De quando em quando penetrávamos por veredas muito sombreadas e delas saíamos a percorrer trechos de praia. Íamos agarrando mais insetos não somente insetos, porém mariscos. Até da sede me esquecera um bocado.

Até que avistamos uma fumaça entre as árvores. Já era tempo de chegar. A custo pude descer do cavalo. O animal tão gentilmente cedido por meu companheiro tinha vários defeitos, provavelmente não percebidos por ele, o que me obrigara a manter bem seguras as rédeas durante a viagem. Tudo isso, e mais o sol, me deixara em um estado tal de fadiga e entorpecimento que mal conseguia me agüentar em pé. Tive acanhamento de pedir uma ajuda para me apear e fi-lo sabe Deus como, aproveitando-me do escuro para esconder minhas caretas de dor. Mas, afinal, ao cabo de alguns minutos caí redondamente no chão, sem me agüentar mais nas pernas. Achávamo-nos na aldeia indígena de Nova Almeida, outrora habitada por jesuítas. No centro da praça há ainda grande pedra na qual eles prendiam os índios acusados de algum delito. A influência dos jesuítas sare essas almas que deles beberam as primeiras noções do cristianismo se foi transmitindo de geração em geração e ainda hoje eles respeitam rigorosamente aos padres.

Logo que me pude reerguer, o que fiz logo, como era natural, foi ir a uma fonte beber água e também me banhar, satisfazendo, portanto, o grande desejo de me refrescar. Após o banho, pois foram um verdadeiro banho as repetidas Imersões que fiz naquela fonte, pensei em jantar. A hora própria já passara há muito, mas o apetite me voltara com a viagem. O resto do meu pão com salame eu o atirara a dois cachorros que encontrara. Meu companheiro, que tinha amizades no lugar, me dissera haver conseguido camas para dormirmos, porém quanto a comida nada pedira, por acanhamento, a quem nos ia agasalhar, por notar que se tratava de gente pobre. Ele falava nesse provável jejum com indiferença, porque comera toda sua ração de viagem e mesmo surpreendi-lhe um gesto de quem estivera a mastigar qualquer coisa. Dispus-me a dar uma volta pela povoação no intuito de pedir a esmola de um pedaço de pão; meu hóspede, entretanto, achou que eu faria mal, pois melindraria a pessoa que nos oferecera dormida, a qual era seu compatriota. — Não se importe com isso, disse-me, ao amanhecer e antes de partir, nós arranjaremos o que comer." Pareceu-me duro ir dormir assim com a barriga vazia. E já tinha motivos para supor que o homem a cujas mãos me confiara para essa jornada pelo interior, não manifestava a meu respeito as atenções que em caso semelhante eu teria tido para com ele. Mas, eu havia me comprometido e devia ir até o fim.

No dia seguinte, fiel à sua promessa, veio bater à minha porta às 3 da madrugada e, como não quisesse fazê-lo esperar, pulei logo da cama; fui selar meu cavalo e quando voltei à casa não vi mais o Sr. X... Procurei-o debalde. Por felicidade aprendera esta frase de uso na terra: "Tenha paciência". Esperei-o até 7 horas e como não o visse chegar, fui dar um giro pela povoação, onde, sem dúvida, encontraria quem dele me desse notícias, se é que não o encontrasse, distraído, às voltas com algum velho amigo. Nascia-me no cérebro uma suspeita qualquer, quando o foram descobrir na sua própria cama, pregado num profundo sono. É óbvio afirmar que cada vez lhe ia ficando mais reconhecido.

Como na véspera, a estrada a percorrermos desenrolava-se ora à beira-mar, ora por veredas entre árvores, mas à medida que avançávamos tomava-se de maior pitoresco o trajeto. Vi, nesse dia, pela primeira vez, orquídeas trepando pelos troncos. Passamos por uma espécie de alamedas debruadas de cactos gigantescos cujos caules têm trinta a quarenta pés de altura; substituem aqui a cortiça; nos mercados do Rio vendem essas plantas aos pedaços. Como ninguém me dissera isso ainda, levei comigo uma provisão desses cactos que, se eram leves, tomavam, entretanto, muito espaço. Meu companheiro ia, como no dia anterior, mais à frente e eu não fazia questão desse avanço, preferindo manter-me mais atrás com o meu negro, que virara, apaixonadamente, entomologista e conchiologista, consentindo-me aumentar minhas coleções sem descer do cavalo. Almoçamos, com satisfação, carne seca e feijão e, por precaução, conduzíamos não somente uma garrafa de vinho como também uma vasilha cheia d’água, muito a propósito dessa vez, porquanto encontramos várias nascentes de um líquido puro e bem frio. Por volta de meio-dia ninguém agüentava o calor e com muita pena saía da sombra das árvores para percorrer um trecho na praia. Eu não me achava de todo curado dos males que me haviam torturado no Rio, sintomas do início de uma doença que nas regiões quentes se torna quase sempre mortal. Ansiava pelo fim de jornada. O resto da viagem devia ser feito em canoa e me senti alegre ao avistar, do ponto em que nos achávamos, embora ainda distante, a torre de uma igreja desenhada no céu: só podia ser Santa Cruz. Ia descansar durante alguns dias; temamos de aguardar a chegada das embarcações condutoras de nossas bagagens. Não fora prevenido de ir conhecer uma vila de certa importância: imaginara Santa Cruz como uma outra aldeia de índios. Causou-me assim espanto deparar uma igreja aparentemente vistosa. O derradeiro trecho do caminho foi vencido por entre grandes árvores e ao desembocarmos na planície avistei logo palhoças cobertas de palhas de coqueiros, seguidas por algumas casinhas alegremente caiadas. Moviam-se pela povoação pescadores, mulheres queimadas de sol, com vestidos de (seres berrantes, e descalças. Raros senhores de roupas pretas, gravatas brancas e mãos sujas.

Não vi mais a torre. Desaparecera. Tinha certeza de tê-la visto. Era do tipo comum dos campanários espanhóis, portugueses e brasileiros. Percebera bem, de longe, com o auxílio dessa luz solar intensa que nos faz distinguir uma mosca a cem passos de distância, aquela torre branca, com ornatos, vasos esculpidos e sinos. E tanto mais certeza tinha dos sinos que não somente os avistara como os ouvira. Que sonho esquisito fora esse então que tivera! ... Intrigado com o desaparecimento da torre e ansioso por desvendar-lhe o mistério, perguntei a meu companheiro onde ficava a igreja da terra. Ele me mostrou uma parede com três pés de grossura que eu já notara pela sua altura, mas de que não falara ainda por ignorar o seu significado ou préstimo. Duvidei da resposta e ia emitir umas ponderações quando, ao nos aproximarmos mais da tal parede, todo um poema se desenrolou a nossos olhos e contemplei a obra-prima mais completa, no seu orgulhoso aspecto e na sua mais ingênua expressão. Essa parede era, de fato, a igreja, mas apenas a fachada; se de perfil não passava de um alto muro de três pés de espessura, de frente era mesmo uma fachada. Através das janelas superiores viam-se dois sinos. Grandes vasos e uma cruz ornavam, no alto, essa fachada grandiosa, prefácio das riquezas de arte que deveriam existir no seu interior. Supor-se-ia assim, vendo-a de frente; mas, a coisa seria bem outra. Esse muro tão enfeitado não passava de simples muro: andaimes, pela parte de detrás, protegiam-no das ventanias. Os que subiam os degraus exteriores para entrar na igreja tinham, do lado oposto, de descer outra escadaria, para entrar então no verdadeiro templo, uma pobre palhoça que só se distinguia das demais, na povoação, por ser um tanto maior. Quem tivesse divisado, pela frente, os sinos a aparecer nos seus nichos, vê-los-ia agora, por trás do muro, tangidos pelo sineiro trepado em uma escada de madeira. Tudo havia sido construído de tal maneira, para o êxito das aparências, que a própria parede monumental só recebera reboco e pintura da parte externa; na outra ainda estava nua. O orgulho dos habitantes, contudo, fora satisfeito.

Subimos, à força de remos, o Sangaçu, ainda sob a influência da maré, o que era fácil de se verificar, porquanto os mangues com suas raízes entrelaçadas se estendiam bem perto d’água. Meia hora depois da partida, aguaceiros repetidos de quarto em quarto de hora abateram-se sobre nós; meu guarda-chuva rompeu-se, minhas malas inundaram-se e a embarcação encheu-se tanto d’água que, se um índio não se apressasse em esgotá-la, teríamos ido ao fundo. O índio salvador, à falta de outro objeto apropriado ao caso, serviu-se de um copo, enquanto os companheiros empurravam a canoa para a margem do rio que, felizmente, foi alcançada, e onde aguardamos melhorasse o tempo. Não tendo mais a recear um banho forçado, aproveitei a meia hora que passamos agarrados a uma pedra, em calcular quantos dias teriam sido necessários para esvaziar nossa canoa com o auxílio do simples copo de que o selvagem se valera. Cheguei à conclusão de que três dias seriam suficientes.

Afinal o céu tornou a ficar azul e prosseguimos na nossa rota. Íamos nos aproximando das matas virgens; o rio se alargara; eu via ao longe grandes pássaros brancos; garças de bicos azuis e ornadas de penachos que pendiam de um lado e outro da cabeça, gaviões, etc. Passou por perto de nós uma pirogazinha tripulada por um jovem casal: o marido ao leme e a mulher ao centro da embarcação, segurando um ramo de árvore que servia de vela. Um motivo pitoresco para um desenho, essa pequena canoa que o vento impelia e depressa se sumiu de nossas vistas.

Eu ia afinal atingindo as matas virgens por que tanto suspirara; veria a essa natureza quase desconhecida dos outros homens, onde nunca o machado trabalhara. Tinha a impressão de ser o espectador de uma nova existência, de um outro mundo. Minha tendência de esmerilhar o lado cômico do que até então me fora dado ver, transformava-se em uma inclinação para os pensamentos sérios, para um recolhimento meio religioso. Cada remada que me ia colocando mais perto dessas florestas grandiosas apagava um pouco as recordações do passado. Estreitava-se sensivelmente o rio, como querendo juntar as duas margens; desapareciam os mangues, a água doce substituía a salgada; plantas aquáticas encobriam as praias; agora, árvores frondosas e gigantescas, cobertas de parasitas em flor, dessas orquídeas tão bem denominadas de filhas do espaço, pois vivem sem ter raízes, sem saberem bem por que, e como o acaso ali as colocou.

Torna-se o leito do rio de tal forma estreito que somos obrigados a nos abaixar para evitar os ramos das árvores que se debruçam sobre as águas. Atravessamos sob verdadeiras arcadas vegetais, debaixo dos leques de palmeiras de troncos tão frágeis, que parecem prestes a tombar ao menor sopro de vento. Meu companheiro não podia alcançar as razões de minha admiração, de meu êxtase diante das formas bizarras que essas trepadeiras floridas davam às árvores a que envolviam, a ponto de lhes emprestar todas as figuras criadas pela imaginação. Nesse trecho de mata cada árvore ostentava verdadeiro labirinto de cipós a se cruzarem por todos os lados, ora subindo, ora descendo, tecendo rendas caprichosas, sempre verdes, sempre floridas, de modo a despertar no cérebro humano idéias de templos, círculos, animais fantásticos, uma infinidade de imagens a se sucederem maravilhosamente. Das copas desses arvoredos caíam, como cordagens de navios, outros cipós de maneira tão regular que pareciam obras de arte. E deles se penduravam sagüis a nos olhar com curiosidade, soltando de quando em quando assovios.

 

Uma vez que não me fora dado pintar índios, tratei de pintar paisagens. E, para tal, esperava com impaciência que o tempo melhorasse, tanto mais que desejava também realizar estudos sobre as orquídeas, essas plantas parasitas que eu contava conservar até meu regresso à Europa. Era de meu intento, outrossim, colecionar mariscos terrestres. E nenhum desses propósitos me era dado pôr em prática. Todavia começara um segundo quadro, cujo assunto era um naturalista cercado dos frutos de suas explorações. Logo que se verificava uma trégua aos aguaceiros, corria a apanhar umas fiares para me servirem de tema a uma tela, à falta de coisa mais interessante, e, certa tarde, de volta de um passeio, trazia comigo um bocado delas para me serem úteis no dia seguinte. Daquela vez me afastara bastante da casa e a chuva me surpreendera quando descia uma encosta no momento transformada em cachoeira; a água batia-me pelo joelho e, como de costume, estava descalço. Rapidamente a noite caiu, pois nesta região tropical não existe crepúsculo: a claridade do sol é de golpe vencida pela escuridão noturna. Pulando de pedra em pedra, para evitar os detritos de toda espécie que as águas carreavam, pisei em qualquer coisa escorregadia e mole. Era um desses enormes batráquios a que os índios chamam sapo-boi. Familiarizado já com certos encontros, atirei-lhe meu paletó para cobri-lo e, pondo-lhe um dos pés em cima, consegui agarrá-lo, apesar de sua resistência, pelas costas, dominando-lhe as pernas e evitando-lhe as dentadas. Ao voltar à casa, os índios, após o serviço, repousavam à porta e o sapo constituiu um divertimento para todos eles, pois em um paroxismo de cólera o animal, ao se ver solto, no chão, avançou para mim com a goela escancarada e ganindo como um cachorro. Quisera bem conservar perfeito esse interessante sapo, mas ignorava a maneira de matá-lo sem o deformar. Valeu-me, porém, o feitor que se achava presente e tomara parte nas gargalhadas provocadas pelos esgares do sapo. Esse homem encontrou um meio simples para dar fim à existência do bicho e foi o de matá-lo com uma pedrada na cabeça. Tive ímpetos de bater-lhe; o miserável havia deitado a perder o meu sapo. Contudo, à força de mil cuidados, pude tornar a peça mais ou menos apresentável na minha coleção.

Cessara a chuva. Havia ainda um pouco de claridade e, tendo deixado o sapo protegido contra as formigas, fui observar o que estava fazendo um grupo de índios. Em uma espécie de cercado onde eram guardados os bois e, para evitar que eles nas suas brigas se ferissem mutuamente, estavam serrando-lhes os chifres. Fiquei admirado com a maneira de se efetuar esse trabalho, pois em vez de um serrote utilizavam um cordão. Tive ocasião de, posteriormente, assistir a cenas semelhantes e confesso que, se não a houvesse presenciado, teria duvidado da eficácia de tal operação, contada por terceiros. Tinham-me falado, várias vezes, desde que chegara ao Brasil, de uma terrível cobra, a maior das trigonocéfalas, conhecida pelo nome de surucucu, e quando manifestei desejo de matar uma delas, os cabelos de meu interlocutor ficaram em pé. "Que Deus o livre de um encontro desses, porque é morte certa. O bicho, além de um ferrão na boca, tem outro no rabo." Repetia uma coisa em que todo o mundo ali acreditava de boa-fé. Eu não duvidava de que essa cobra, mesmo sem o ferrão na cauda, era perigosa; que possuía um veneno terrível nos dentes, e jamais fugia de ninguém pois se fiava na virulência do tóxico destilado à menor dentada. Um dia, eu estava a tocaiar umas aves, metido até os joelhos em uma touceira, quando descobri uma cabeça com dois olhos brilhantes virados para mim. Como legítimo habitante da Europa, não pude dominar o arrepio que experimentamos ao ver um réptil por menor que seja. Ademais sempre ouvira afirmar que a surucucu dava botes contra as pessoas ao lhe passarem perto. Recuei precipitadamente para abrir entre nós uma conveniente distância, e quando me vi mais ou menos em segurança comecei a refletir sobre se deveria ir embora ou avançar de novo. Esta última hipótese era uma aventura de que poderia resultar bem ou mal. Tinham me prevenido: ao se atacar essa serpente a sorte dependia da certeza do golpe. Se esse falhasse, o da cobra não falharia. Ainda hesitante, carreguei minha espingarda com dois tiros. A cabeça escondera-se, mas percebia-se-lhe o corpo através dos movimentos por entre as plantas onde se metera. Depois de ter verificado qual o caminho a tomar no caso de uma súbita retirada de defesa, atirei visando a cabeça da serpente que reaparecera. A dificuldade, porém, era a de constatar se a bala a atingira mesmo; poderia estar apenas ferida e reagir. Esperei um quarto de hora. Nada mais se mexia. Tomei a carregar a arma e com cautela fui-me aproximando para conhecer de perto o inimigo com que me batera. Decididamente eu era um bravo; há tempos um manequim se vira vítima de meus socos e hoje eu matara um caranguejo! Mas que diabo estava esse caranguejo fazendo tão longe do rio e com um pedaço de pano amarrado a uma das patas? Sem demora achei explicação para o fenômeno: os índios haviam pescado na véspera um bocado de caranguejos e, como de costume, os amarraram pelas pernas; aquele certamente conseguira fugir e não soubera que caminho tomar ao se ver liberto. Deparou-se comigo. Ninguém foge ao seu destino. Inútil é acrescentar! Não me mostrei apressado em contar este meu novo feito.

Há uns dois meses vinha tentando penetrar pela mata virgem, que ainda não conhecia, mas não o pudera realizar até então, devido aos charcos que se haviam formado com as chuvas copiosas. Um verdadeiro lago. Tornava-se necessário esperar que ele secasse aos poucos à medida que os aguaceiros cessassem de todo. O que eu tinha visto, em matéria de matas, até aquela data — exceto a paisagem do dia de minha chegada — não me parecia muito interessante. Faltava-lhe o que quer que fosse de grandioso.

Afinal chegou o dia em que pude prosseguir nas minhas excursões; reuni provisões para a jornada. Meu livro de esboços, chumbo, pólvora, tudo em bom estado, e os frascos para guardar insetos. Uma sacola ia repleta do que me pudesse ser necessário. Pus-me a caminho ao nascer o sol. As águas tinham baixado sensivelmente e eu só as sentia até metade das coxas. Pela primeira vez, após dez meses de minha partida de Paris, via realizado completamente meu sonho.

Ao iniciar este livro fiz uma comparação entre a coragem que é mister ter para deixar os entes que nos são queridos e a que se precisa possuir diante dos riscos prováveis em certas viagens; deste modo, eu me senti bem mais isolado na ruas de Paris do que no meio dessas matas sem saída, sem caminhos traçados, onde a cada passo poderia me defrontar com um mau encontro, onde poderia me perder para sempre. Não me é nada fácil exprimir as emoções nas ruas de Paris do que no meio dessas matas sem saída, experimentadas nessa ocasião: era um misto de admiração, de espanto, talvez de tristeza. Como me reconhecia pequeno em face dessas árvores gigantescas que têm quase a idade do mundo! Assaltava-me uma ânsia de desenhar tudo aquilo defrontar com um mau encontro, onde poderia me perder e não me achava calmo bastante para iniciar a pintura. E ai de mim! Forçoso é confessá-lo: os mosquitos me atacavam por todos os lados, porque eles reinam despoticamente dentro dessas florestas em que os raios do sol mal penetram, favorecendo, assim, uma umidade perpétua.

Por ali não passa nenhuma criatura humana. Torna-se preciso abrir caminho a golpes de machado. Se  para um instante, por todos os lados se é assaltado. Deste primeiro dia de minhas grandes excursões pelas florestas do novo mundo guardarei eternamente recordações; como que ouço ainda o alarido dos papagaios trepados nos mais altos ramos das árvores, bem como o canto dos tucanos; apercebo-me do rastejar de um lindo réptil de um vermelho vivo, chamado cobra-coral e que com seu veneno mata com a virulência de uma víbora e de uma jararaca. A cortar cipós, ganhando terreno não pé a pé, mas polegada a polegada, alcancei uma espécie de clareira formada por um grupo de árvores derrubadas talvez pelo raio. O sol entrava na mata. Insetos esvoaçavam em torno de enormes flores que se vêem a cada passo, e delas fiz uma rica colheita apesar dos mosquitos. O mesmo não me aconteceu, porém, com um lindo pássaro que ia visar com a espingarda, certo de reuni-lo à minha coleção, mas me escapou por haver um danado de mosquito tentando me entrar em um olho no momento exato do tiro.

Eu não tomara as precauções indispensáveis, justamente por causa da defesa constante contra os insetos, para reconhecer a direção que ia seguindo dentro da mata, e, por isso, de repente, senti-me perdido e tive verdadeiro aperto no coração. Perder-se em sítios semelhantes é correr mil probabilidades de morte. Mas felizmente pude, com algum esforço de orientação, encontrar não somente o ponto de partida para penetrar na clareira a que aludi como, também, alguns passos adiante, uma vereda mais encoberta pela vegetação. E com o auxílio da luz solar consegui orientar-me de novo. Tinha tirado o dia para caminhar a esmo. Armara-me com uma boa faca que de um lado cortava e de outro servia de serra; a espingarda dispunha de balas ao alcance das mãos para a possível hipótese de um mau encontro, porque, se na América não existem tigres nem leões, os jaguares, os ursos e as onças são numerosos. Por muito tempo andei escoltado pelos meus inimigos mosquitos, sem poder, por sua causa, esboçar o menor desenho. Só se pode formar idéia de quanto essa luta com os mosquitos inutiliza qualquer atividade, experimentando-a. Alcancei, em uma descida, uma espécie de queda d’água, onde pude matar a sede e lavar os pés e as mãos. Essa água a correr à sombra das árvores era morna; vim a saber depois, constituía essa queda d’água um limite de certas terras concedidas pelo governo a uma pequena tribo de índios, os Puris. Encontrava-me, portanto, dentro da sua propriedade e divisei plantações de mamonas, laranjeiras, limoeiros e mandiocais.

Quando surgi em frente das habitações dos índios, mulheres e meninos fugiram de mim apressadamente; os homens, mais afoitos, esperaram que me aproximasse, embora espantados de me verem pegar insetos, o que para eles constituía uma esquisitice. Não descobri nenhum sinal de hostilidade por parte dos índios; ao contrário, ao notarem que eu, aproveitando-me da trégua que me davam os mosquitos, ia começar meu almoço, chupando umas laranjas que estavam caídas no chão, dois dos selvagens vieram ao meu encontro com umas varas e tiraram dos pés uma meia dúzia de frutas das mais bonitas, oferecendo-nas com o melhor sorriso deste mundo. A refeição que eu ia fazer tinha sido bem ganha. Sentei-me debaixo das laranjeiras e os meus dois novos amigos ousaram se avizinhar mais de mim, o que não o haviam feito tanto, mesmo quando me deram as laranjas. Minha faca de caçador, meus frascos cheios de insetos, minha arma, intrigavam um pouco esses homens.

Era já tarde; o sol percorrera dois terços de seu caminho e eu tinha ainda um longo trajeto a vencer no regresso a casa. Reentrei na mata onde, apesar das veredas e dos pontos de referência que eu ali deixara para orientação, tive trabalho em reconhecer meu caminho. Matei umas aves e um sagüi. Enquanto ia andando, procurava notar o que houvesse por ali de mais interessante para me servir de assunto aos quadros que pretendia pintar no dia seguinte.

Soube, ao chegar a casa, que um negro a quem eu dera um casaco de borracha, sem outro motivo, fugira, o que causara enorme desapontamento ao Sr. X. Não podia se consolar com esse prejuízo, tanto maior quanto o escravo, de magro e doente que era ao chegar ali, engordara e se tornara robusto. Essa fuga importava em uma perda de alguns mil francos. O Sr. X escreveu várias cartas de aviso e enviou vários servidores à procura do negro fujão, tão ingrato para com o dono que o engordara daquela maneira. Com meus botões eu desejava que todas as buscas resultassem inúteis, e já pensava que tal tivesse acontecido quando um dia o negro reaparece trazido por um índio e um mulato. O pobre do fugitivo vinha algemado e não ignorava haver incorrido em pena rigorosa: de cabeça baixa, as lágrimas escorrendo pelo rosto e pelas mãos cruzadas ao peito. Aguardei com ansiedade o que iam fazer com o infeliz, disposto a intervir em seu favor se o castigo fosse severo demais. Felizmente, porém, o culpado recorreu a tempo a um costume que permite ao senhor ser indulgente sem quebra da autoridade: ele se confiou à demência do feitor; este, tornando-se seu fiador, interessou-se pela causa do afilhado, que foi apenas punido com uns bolos de palmatória, uma espécie de férula destinada a castigos domésticos. Na pequena habitação a que me acolhera, cada dia dispunha de uma novidade para quebrar a monotonia de minha vida interior; quase sempre eram os animais que me ofereciam, representando o papel mais saliente. Ora, um rato que roia um sapato, ora um porco que entornara a panela, ora um cachorro que comera o jantar, quando não fossem galinhas a trepar nos móveis e quebrar objetos mais frágeis ou gatos de várias gerações e de ambos os sexos que, após terem cometido delitos de todas as qualidades, durante o dia, tomavam as noites para levar a efeito um barulho de todos os diabos pelos telhados. Perto do meu quarto três bacurinhos costumam vir grunhir, o que me era altamente desagradável, sobretudo quando se instalavam na minha porta. Eu me armara de uma espécie de ferrão com que os repelia de minha vizinhança, mas, ao fazê-lo, os porcos corriam, e, por sua vez, espantavam os bois que também se punham em debandada. Com barulho, os cachorros se punham a ladrar em coro e era então um concertante de mugidos, de grunhidos e de latidos. O Sr. X, supondo um assalto, punha prudentemente a cabeça à janela e eu, como não me envaidecesse aparecer como autor dessa algazarra, voltava logo, à minha cama sem dar nenhuma demonstração de incômodo. Limitava-me apenas a no outro dia ouvir com atenção as narrativas dos acontecimentos. Os bois estavam votados a constituir um papel de relevo nas minhas impressões de viagem. Certa vez, um desses bois recém-adquiridos e que ia partir para um curral do interior, comeu erva venenosa e morreu dentro de poucas horas. Os índios trouxeram-no em uma canoa e, desembarcando perto da casa, cortaram-lhe a cabeça, atirando-a em uma capoeira; depois esfolaram o corpo. O Sr. X. estava ausente, mas a mulata, que governava a casa, mandou meter em um barril os pedaços de carne do animal. Em menos de dois dias decorridos, os vermes tinham tomado conta de tudo; todavia, passada uma semana, ainda se comia desse boi.

Como se tratava de fazer economias e como meu hospedeiro falava sempre da carestia dos víveres, a mulata evitara me dizer de que morrera o tal boi. Durante quarenta e oito horas todos os outros bois levaram a urrar em torno do lugar onde haviam enterrado a cabeça do companheiro e, sem demora, os jaguares vieram também fazer coro com eles. Dali a pouco apareceram centenas de corvos pretos, chamados aqui urubus. E tudo isso fazia um estranho contraste com esta rica e brilhante natureza. Debaixo de umas laranjeiras eu visava com minha espingarda essas feiosas aves a se disputarem os restos de um boi que fizera as delícias de meu paladar, sem adivinhar de que modo ele morrera.

Todavia, ao cabo de três dias, apesar dos temperos, senti necessidade de mudar de alimentação. Desnecessário seria acrescentar que o dono da casa, ao voltar de sua viagem, não provou daquela carne de boi, prato esse destinado apenas aos hóspedes.

Pensei não ter mais ocasião de me envolver em casos de bois, vivos ou mortos que fossem, mas me enganava, porque, se um se perdera, outro fora comprado em Santa Cruz. No dia em que deviam tê-lo conduzido para entrega ao novo dono, chegaram somente os filhos do vendedor, com o propósito de devolverem o dinheiro já recebido, e trazendo as desculpas do pai por ter negociado o animal com um terceiro indivíduo, embora por motivo contrário à sua vontade. O meu hospitaleiro amigo ficou desapontado, porque o vendedor do boi era uma espécie de pesadelo para ele; no seu conceito tratava-se de um homem sem fé nem lei. Como nesse caso não havia razões para julgar de modo contrário, esqueci as minhas queixas, e animei o Sr. X. a não se deixar vencer nessa questão, reclamando energicamente a entrega do boi. Minha atitude tinha os seus méritos pois, a muito custo, com os pés feridos, pude calçar-me e, levando nossas pistolas, partimos. Em meio do caminho, uns cães fizeram medo a meu cavalo e ele se pôs em pé, recuando, até bater em um velho tronco e cair de lado. Percebi o perigo, mas, felizmente, já estivera na Lapônia! Parecerá esquisito que eu me rejubile de já ter andado na Lapônia a propósito de um cavalo que se assusta em uma mata brasileira e obriga o cavaleiro a se precaver para não ficar debaixo dele. E, no entanto, nada mais natural essa evocação. Certa vez o meu cavalo caiu em uma turfeira e, debatendo-se, deu comigo no chão: um dos seus pés prendeu minha mão esquerda e íamos ambos desaparecer, quando vieram em nosso socorro, e, com o auxílio de varas e de um mastro que servia para armar minha barraca, puderam nos tirar do buraco embora em lastimável estado. Desde esse dia, receoso de ser enterrado vivo, ao menor passo falso dado por um cavalo que eu montasse, levantava ràpidamente a perna e, fosse dentro d’água, em um espinheiro ou em cima de pedras, escorregava suavemente tal e qual um saco de trigo mal amarrado. E esse gesto se renovava cerca de quatrocentas vezes em um raio de cem léguas.

Meti-me um dia a visitar o sertão, na região do rio Doce onde vivem os botocudos. Não ignorava as dificuldades que teria de enfrentar, mas tomei precauções; caminhamos dois dias sempre dentro da mata, mas por veredas abertas pelos pés humanos. Antes que tudo, era preciso reunir os índios que deviam fazer a viagem comigo. Se de Vitória a Santa Cruz várias ocasiões tivemos de nos meter dentro d’água, desta vez era na lama que deveríamos andar; freqüentemente tínhamos de puxar os cavalos atolados até as barrigas... Quanto mais avançávamos, mais as árvores aumentavam de porte; atravessamos clareiras onde cada árvore tinha a sua copa inteiramente florida; de quando em quando me apeava para caçar alguns pássaros. Dormimos em uma barraca semelhante às que são armadas pelos trabalhadores de estradas, e apesar dos seus inconvenientes meu sono foi tranqüilo, embora perto houvesse uma estrepitosa cascata. No segundo dia de jornada atingimos uma cabana habitada por índios que procuravam por ali o jacarandá; os troncos dessa madeira eram arrastados por bois, até à beira do rio. Havia em redor dessa habitação baixas de capim para esses animais. Eles são de tal modo necessários ali para o trabalho que o meu amável hospedeiro preferia privar-se de beber leite a ter uma só vaca que comesse o capim reservado aos bois.

Como eu caminhava muitas vezes, a pé, confiara meu cavalo a um índio; ate seguira na frente e não se preocupou mais comigo, de modo que tive de me agüentar, assim, pela detestável estrada, até o fim do percurso, chegando todo enlameado, muito cansado; isto, todavia não me impediu de tratar logo do embalsamamento das aves que matara. Deitei-me numas tábuas. Os índios, não satisfeitos com o calor que fazia, atearam mais uma enorme fogueira perto da qual se deitaram. Quase morri abafado, e assaltaram-me pesadelos. Ao clarear partimos de novo; desta vez com o propósito de explorar matas mais impenetráveis do que aquelas por onde já tínhamos andado. Cada um de nós se armou de uma machadinha e golpeava, derrubando para um lado e para outro. As aranhas desalojadas caíam-nos em cima, e houve ocasiões de ficar com uma dúzia delas agarradas ao corpo e ao rosto. Após termos vencido longo trecho, desta maneira, vencendo ligeira ladeira, atingimos rampas tão íngremes que não as podíamos subir sem o auxílio das árvores e dos cipós. Enquanto realizávamos essa ascensão, os cães que nos acompanhavam faziam exercícios de caça; certa ocasião latiram de tal modo que julgamos terem feito algum sensacional encontro. Era um quati; antes de ser morto havia rasgado a barriga de dois dos seus agressores. A premência do tempo não permitiu que os índios derrubassem uma árvore onde havia uma colmeia; o fato os contrariou bastante pois contavam se aproveitar do mel. As abelhas tinham feito na árvore um buraco como a beca de uma cometa. À medida que avançávamos, mais áspero se ia tornando o caminho, retardando-nos os passos. Os braços sentiam-se cansados de manejar as machadinhas; vimo-nos dentro de um bambual cerradíssimo; abrimos uma passagem a muito custo, ferindo-nos bastante, sobretudo nos pés, porque tínhamos de caminhar sobre inúmeros galhos que cobriam o chão. Atingimos um riacho sem nome; ele corria muito embaixo do ponto em que nos encontrávamos. Para chegar-lhe perto era necessário nos suspendermos aos ramos das árvores com risco de nos arrebentarmos todos se os pontos de apoio falhassem. Eu já me acostumara com as contusões; meus pés estavam mais ou menos sarados; e, assim, pulei como vira os outros pularem. Quando chegamos lá embaixo, todos se encontravam estafados, sem poder dar um passo a mais; sentamo-nos em pleno sol em um monte de areia e ali descansamos e almoçamos. Resolveu-se, durante essa etapa, que, se não se conseguisse voltar à mata, tentar-se-ia subir o riacho, o que se fez. A princípio eu não tinha água senão até a cintura, mas ao cabo de mais algum tempo fui obrigado a me despir todo e a fazer da roupa um embrulho, que amarrei às costas com a espingarda. Não era comodo esse trambolho para viajar, tanto mais quando ia aumentando o peso com os meus utensílios de caçador; veio-me arrependimento de tê-los levado. Todos os esforços eram necessários para não molhar minha bagagem, o que nem sempre era fácil conseguir. Acompanhava de longe os companheiros e quando a água não me chegava ao pescoço, erguia os braços e fazia vagarosamente um esboço, lamentando não viesse atrás de mim um colega de pintura para apanhar minha figura, assim metido n’água, com a roupa e a espingarda penduradas às costas, e de braços no ar a desenhar.

Após algumas horas desse passeio aquático principiamos a encontrar obstáculos: troncos de árvores, grandes pedras. Era forçoso voltar às matas e como nessa época as enchentes encharcam as terras marginais, quando tentávamos um solo firme, atolávamo-nos na lama até as coxas. E bem de sorte nos julgávamos ao descobrir esses caminhozinhos feitos pelas antas para irem matar a sede nos rios. Percorríamos alguns quilômetros por dentro da mata, com dificuldades, pois nem podíamos manejar os machados, e, depois reentrávamos no rio. Como meu vestuário era dos mais rudimentares, meu corpo se enchia de arranhões. Mas, íamos caminhando por essa líquida estrada, como patos, enquanto as águas só nos atingiam os queixos. E o dia todo decorreu assim, a subir esse riozinho, com intervalos de caminhadas pela mata. Já quase no fim da jornada um índio que ia na minha frente fez-me parar, estendendo a mão: um enorme tronco barrava-nos a passagem. Esse índio só tinha o seu revólver a proteger da água, e sempre o conservava protegido; apontou a arma para qualquer coisa que eu não distinguira ainda e atirou. O que me apareceu então fez-me recuar tão precipitadamente que caí em um espinheiro. A dor fez com que me levantasse o mais rápido possível, tanto mais quanto eu estava em presença, pela primeira vez, de uma terrível surucucu, serpente venenosíssima. Porém ela se achava mortalmente ferida. Tinha bem uma dúzia de pés de comprimento; com a cauda quebrava tudo ao seu alcance; a cabeça, do tamanho de um focinho de porco, ainda se erguia e fazia esforços para se atirar contra nós, mas em vão, porque estava com a coluna vertebral partida. Ainda me lembro, como se fosse hoje, da impressão que me causou aquela goela escancarada, mostrando dois ferrões venenosos que uma vez atingindo alguém lhe dão morte quase instantânea. Debateu-se a cobra por espaço de meia hora. Os índios queriam esmagá-la, mas me opus por desejar levá-la comigo o mais perfeita possível. Quando a vimos inerte, cortei um cipó e me aproximei, pois não pensava sequer em pedir aos índios para me ajudar nesse trabalho; fiz-lo com todas as precauções, mexi-lhe com o cipó na cabeça e, certo de que se achava mesmo morta, amarrei-a pelo pescoço. Em silêncio, os índios me observavam. Pus-me a arrastar o monstro, o que não me era muito cômodo, porquanto já levava outras coisas pesadas às costas. Contudo o índio que matara a serpente e que, entre parênteses, fora o meu único modelo, me auxiliou um pouco, foi-me bem útil, pois talvez sozinho não conseguisse realizar o meu intento de conduzir o monstruoso animal. Afinal chegáramos a um sítio em que teríamos definitivamente de abandonar o rio. Eu tinha os pés de tal modo inchados que muito me custou enfiar as botinas. Não obstante as cautelas tomadas, a bagagem se molhara toda e a pólvora se inutilizara.

A caminhada pela mata foi longa; meti-me de novo nas roupas, embora encharcadas d’água; e recomeçamos a luta contra os cipós e os espinhos. Os índios, com seus instintos de bichos do mato, nos guiavam direito, apesar da escuridão; todavia, de quando em quando esbarrávamos em obstáculos. Animais quase invisíveis corriam diante de nossos passos; os cães mantinham-se ao nosso lado; por toda parte viam-se sombras aterrorizadoras; bem assim luzes erradias parecidas com os fogos-fátuos que metem medo aos viajantes. Tive a curiosidade de conhecer a razão dessas luzes; mexi nuns troncos apodrecidos e apanhei uma porção de vermes brilhantes. Mais tarde quando quis ver-lhes o efeito, o fósforo havia desaparecido. Ora sozinho, ora com o auxílio do índio, conseguira arrastar a surucucu, e ao darmos com uma clareira na mata, achando-nos perto de uma habitação, os outros indígenas me pediram para deixar ali a serpente a fim de não atrair, com o cheiro do sangue, outros animais da mesma espécie. Atendi ao pedido, mas na manhã seguinte, com meu escalpelo e meu canivete, entreguei-me ao trabalho pretendido. Amarrei a surucucu em um alto galho e, depois de lhe ter cortado a cabeça, coloquei-a em um grande frasco cheio de álcool. Quando os selvagens compreenderam o que eu ia fazer, meteram-se na mata e de longe acompanhavam com seus olhos assustados minha tarefa de arrancar o couro da cobra. Terminada a operação, todos voltaram à cabana e, apesar de lhes afirmar que não havia encontrado nenhum ferrão na cauda do réptil, ninguém acreditou em mim. Ao findar esse serviço, verifiquei, com tristeza, haver perdido meus óculos. Cometera a imprudência de não ter levado outros de sobressalentes, mas apenas vidros, e fiz esforços vãos para ajustá-los aos olhos. Minhas habilidades óticas estavam quase esgotadas, quando me trouxeram afinal os óculos que perdera.

(Tradução de Mário Sette)

 

Fonte:  Histórias e Paisagens do Brasil – A Cidade, o Mar e as Serras –
Organização: Diaulas Riedel
Tradução deste texto: Mário Sette
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro/2015

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