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Amores de Tropeiros – Por Ormando Moraes

Ranchos de tropas no Município de Santa Teresa, 1917

Como já ficou definido, o arrieiro, que podia ser o proprietário, era quem dirigia a tropa, mas ele e seus auxiliares eram chamados genericamente de tropeiros, o que em nada os desmerecia, posto que todos desfrutavam, em seu tempo, de muita importância e prestígio, que procuravam corresponder com uma conduta digna e séria. Além disso, o arrieiro e/ou proprietário zelava muito por sua aparência. Montava mulas sempre bem tratadas e arriadas e se vestia com certo esmero, dentro dos padrões da época e da necessidade do serviço. Quando o arrieiro ou tropeiro chefe, à frente de sua tropa, entrava em uma cidade ou povoação, com seu chapéu de abas largas, camisa colorida, lenço vermelho no pescoço, cabo do revólver aparecendo, despertava a atenção de qualquer um e fazia bater o coração das mocinhas em flor e também das mulheres mais maduras e experientes.

O ex-arrieiro Manoel Lopes conta que, aos 21 anos, com seu porte atlético, bem vestido e bem montado, em cada lugar ou rancho a que chegava, tinha uma namorada, não raro tão ousada quanto as mulheres de hoje, não para mostrar sua nudez publicamente, no que era extremamente recatada, mas para o amor a dois.

Como sempre houve discriminação racial, certos pais, na época, se mostravam muito rigorosos, evitando a aproximação de suas filhas com os tropeiros, cuja maioria era da raça negra, mas nem sempre conseguiam conter seus arroubos amorosos. Paulo José do Carmo, proprietário de tropas em Piaçu e Castelo, nas décadas de 20 e 30, conta que José Gomes, um mulato escuro, forte e vistoso, arrieiro de 5 lotes de burros dos Irmãos Vivacqua, dos quais era homem de absoluta confiança em Castelo e Muniz Freire, certa ocasião se engraçou por uma mocinha de seus 15/16 anos filha de um italiano plantador de café e, como o pai se opusesse, ele raptou a garota e levou-a para Castelo. Pedro Vivacqua soube do caso e foi procurá-lo:

— Zé Gomes, você hoje vai dormir na cadeia, porque praticou um grande erro, raptando a moça de menor idade.

— Mas, Seu Pedro, o senhor vai prender um governador?

— Que governador?

— Uai! Governador de 5 lotes de burros, que não podem ficar por aí abandonados.

Pedro Vivacqua achou graça da resposta e deixou José Gomes em paz, e este, por sua vez, logo que pôde, tratou de se casar com a moça e com ela formou uma família numerosa e feliz.

Nos lugares do interior por onde passavam as tropas, havia também aqueles que, a seu jeito, defendiam a dignidade das moças e senhoras da tradicional família do interior do Espírito Santo, muito semelhante à tradicional família mineira. João Cola (irmão de Camilo Cola) conta que, em Povoação, município de Castelo, ponto de rancho e de muito movimento, havia um fazendeiro que mandava seus três tocadores de burro, um preto e dois mulatos fortes e destemidos, surrar (com recomendação de não matar) os tropeiros e rapazes de fora que tentavam namorar as moças do local. Só não apanhava quem corresse ao menor sinal do extravagante castigo, ou então o próprio João Cola, porque era afilhado do fazendeiro.

O escritor alegrense Manoel P. Ferraz, que conheceu muito bem o movimento das tropas em seu município, produziu uma página muito interessante sobre amor de tropeiro, que vai, a seguir, transcrita na íntegra:

Nesse ir e vir de quase o ano inteiro, nasciam amores, fugazes uns e duradouros outros, enchendo de esperança os corações dos jovens enamorados.

Mas isto nem sempre dava certo. Os obstáculos mais comuns eram as objeções das famílias. E o tropeiro raramente se casava com a eleita de seu coração.

Um desses amores nasceu lá pelos lados da região de Arataca. Um jovem tropeiro despertou o coração da filha de um abastado fazendeiro. Este, como era de esperar-se, se opôs ao casamento. Havia uma disparidade social muito grande.

Não conseguindo vencer a intransigência paterna, os jovens namorados combinaram fugir. E uma noite se foram. Pela madrugada chegaram à fazenda de um conhecido, que os recebeu cordialmente.

No dia seguinte, cedo ainda, acompanhado de alguns capangas e espumando de raiva, apareceu o pai da moça. Acalmado o amigo, foi devolvida a filha, com a condição de perdoar o rapaz que a respeitara. E tudo acabou em paz.

Mas não parou ai. Na tarde do mesmo dia (fazendo vista grossa, por conveniência, da disparidade social), o fazendeiro falou com o tropeiro, ainda decepcionado com o fracasso da aventura:

— Se você quer mesmo casar-se, eu tenho duas filhas mais velhas; escolha uma e case-se com ela. O rapaz aceitou a proposta: era o costume da época.

Pouco tempo depois, casaram-se e foram muito felizes.

O tropeiro rejeitado por ser pobre, mas trabalhador e honesto, enriqueceu-se tornando-se um dos mais prestigiados chefes políticos da vila.

Para suas necessidades puramente sexuais, os tropeiros não tinham problema, pois, além das mulheres ousadas de beira de estrada e de rancho, em cidades como Alegre, Castelo, Santa Leopoldina e outras, havia ruas inteiras de pensões de prostitutas, não raro importadas de grandes centros que prestavam excelente serviço àqueles homens.

Contudo, segundo conta Fiorino Puppin, de Alfredo Chaves, havia tropeiros um tanto inibidos ou de pouco salário que preferiam satisfazer suas necessidades sexuais transando com bestas e mulas que entravam no cio (embora não reproduzissem) e ficavam muito viciadas. Devido a esse problema é que Fiorino preferia o burro macho em suas tropas.

Mas a história mais bonita sobre amores de tropeiros, não de amor entre homem e mulher e, sim, de amor paternal, é a narrada com toda mestria pelo escritor e Poeta Evandro Moreira, no conto extraído de seu livro "Pau D'Alho" que, com a devida vênia, a seguir se transcreve integralmente.

O Tropeiro

A paz da manhã é quebrada pelo som distante de um cincerro. A estradinha enche-se do ruído alegre e compassado de uma tropa que lá vem, elevando a poeira clara, quase amarela, afugentando as aves do caminho, os coelhos e preás que, desconfiados, espiam ainda uma vez sob os tufos de capim, fugindo ligeiros.

As mulas seguem o trote igual da madrinha, uma burra branca de pêlo escovado, pescoço longo e imponente com crina aparada a capricho, cônscia de seu papel. Na testa, pregada em pequena placa de couro escuro, brilha uma estrela de metal amarelo, bem polida. Os cabrestos estão enfeitados com pedaços de pano vermelho. O peitoral é uma faixa de couro, com pequenas estrelas iguais, intercaladas por cincerros também polidos. O rabicho, menos enfeitado, é embrulhado de panos, de modo a não ferir as intimidades do animal. A cangalha nova, encimada por uma bandeirola triangular, vermelha, que é o fiel de duas bruacas de couro cru, prenhes com os sacos de estopa cheios de milho ou café.

As outras alimárias, igualmente arriadas de cangalhas e bruacas, não têm os mesmos enfeites da madrinha, que, aos gritos de Ranulpho, acelera o passo, estaca ou muda de direção, guiando as outras.

— Alto, Cigana. Ôa Morena. ÔÔÔÔaaaa! Pera aí menina!

Toda a tropa, acompanhando Cigana, muda o trote em passo e vai parando. Uma leve pancada no pau da cangalha ou na carga faz com que Cigana se afaste da estrada, na direção oposta ao grito de comando. As azêmolas caminham, sem ordem, agora, mordendo os brotos verdes, adentrando o pastinho que circunda a capela.

Ranulpho senta numa pedra à beira do caminho, enxuga o suor do rosto com as mãos grossas e um lenço roto. Bate a poeira do grande chapéu. Marchando desde a madrugada mais escura, aproveita para encolher as pernas, no rápido descanso. São apenas 10 horas, comprova pela posição do sol.

— Aqui, Cigana! Vem cá!

A madrinha aproxima-se, bufando e mastigando: Com o focinho empurra a perna do velho condutor, que se levanta e retira, de sobre as bruacas, uma tríplice e delgada barra de ferro. Puxa as duas hastes móveis que se prendem à barra maior, fincando-as no chão, sobre o fogo improvisado. Nos ganchinhos pendentes da vara horizontal, pendura um pequeno caldeirão de ferro, onde mistura o feijão com torresmos e farinha. Ao lado, num bule com água fresca do regato, prepara o café. A "cozinha" do tropeiro funciona rapidamente. Em pouco tempo estão prontos o almoço e o café, quentinhos, cheirando longe.

Os animais se dessedentam na água limpa que divide o pasto e atravessa o caminho sob a tosca ponte de madeira lascada. Ranulpho palita os poucos dentes com um graveto qualquer. Depois, corta um retângulo de palha, pica o fumo e, com dedos hábeis, prepara o cigarro, enrolando-o e colando a palha com saliva. Pita e desmonta o ranchinho, já resfriado, guardando-o na cangalha de Cigana, que se impacienta em retomar o trote.

— Péra Cigana. Ê mula adiantada. Me deixa mijar primeiro, só. Agora só vamo pará no Salim, lá em Rio Novo.

O velho afasta-se para trás da capela, a fim de urinar despreocupado. É quando um ruído diferente chama-lhe a atenção. Num gesto imitativo da tropa, levanta a cabeça e aguça os ouvidos. É um animal desconfiado.

— Parece um choro de criança. Eu, hein? Isso não é hora de assombração...

Espicha mais a orelha, buscando localizar o som. Não tem mais dúvida.

— É uma criancinha sim, por Deus!  E sai a procurar. Cautelosamente, anda em volta, investigando as moitas de capim e as pedras escassas. Ante as duas pedra gêmeas, estaca, mal acreditando nos velhos olhos vermelho: de poeira.

— Minha Nossa Senhora! Que judiação!...

Abaixa-se rápido. As mãos calosas e ainda engorduradas pegam, sem jeito, a pequena criatura que chora, um cheiro fraco e desesperado. Os olhos do velho tropeiro, olhos acostumados a ver assombrações e crimes, se enchem de lágrimas. Nunca, em sua dura vida de andarilho, de vira-mundo e cheirapeido de burros, vira tão grande maldade. As manoplas acariciam a pele sensível da criança, livrando-a das formigas que já se multiplicavam. Tira a velha camisa surrada remendada, de cores imprecisáveis, e embrulha o seu achado, aconchegando-o ao peito, num carinho sem prática.

De quem seria o garoto? Um meninão forte e bonito. Impossível saber, nem havia condições para indagar, que o pirralho chorava sempre. Por fim, sentindo-se embalado, livre das picadas dos insetos, vai cessando o choro e dorme nos braços nus e empoeirados do tocador de burros.

Ranulpho esquecera o mundo e volta à realidade com um relincho impaciente de Cigana, que agita os guizos, querendo aliviar-se da carga pesada.

Ainda com os olhos embaciados, o cigarro apagado e esquecido, apenas mordido, no canto da boca, o velho comanda a tropa, rumo a Rio Novo.

O sol queima-lhe as costas nuas, já curtidas. Mas ele está feliz, levando nos braços um presente que sempre sonhara e jamais esperara receber.

Ele e Leocádia nunca tiveram um filho. A casa po-bre, sempre triste, nunca ouvira risos de criança.

— Minha velha vai ficar contente!

Em seu íntimo vai murmurando velhas preces mal aprendidas faz tanto tempo. Volta a acreditar na bondade de Deus. E cruza as ruas encaibradas de Rio Novo, em triunfo, precedido pelo bimbalhar de Cigana, pequenos sinos de um natal tão tardio.

Nos braços molhados de suor, apertado com usura o prêmio fabuloso de toda uma vida de andanças e sustos."

 

Fonte: Por Serras e Vales do Espírito Santo – A epopéia das Tropas e dos Tropeiros, 1989
Autor: Ormando Moraes
Acervo: Edward Athayde D’ Alcantara
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2016

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