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Aniversário do IHGES - Por Ceciliano Abel de Almeida

Monumento a Domingos Martins

Quem, com certa atenção, lê a carta de Pero Vaz de Caminha, verifica ressaltar de todas as informações minuciosas, amplas, complexas, dadas por ele ao soberano português, a liberdade absoluta, reinante entre os indígenas, que receberam a gente lusa da expedição de Pedro Álvares Cabral.

Não se notou na tribo um prisioneiro e o cronista registra "eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária, que costumada seja ao viver dos homens'. Não há, pois, animais domésticos. A flora é exuberante. A fauna é opulenta. Supre a natureza munificente as necessidades imediatas do gentio. Campeia altaneira a liberdade. E esta, desde logo se conclui da desenvoltura com que o aborígene se comunica com os visitantes. E Pero Vaz de Caminha presencia, testemunha a atitude dos pagãos imitando aos portugueses, beijando, com eles, a cruz, e ressalta, talvez sem intenção, a liberdade de que gozavam quando respinga: "parece-me gente de tal inocência, que se os homens entendessem a eles a nós, que seriam logo cristãos; porque eles não tem nem entendem em nenhuma crença".

E senhores, é este povo que não conhece grilhões, que não admite limites a sua liberdade que vai ser dominado, conquistado, pelo Rei de Portugal.

E o colono, o comerciante, o homem de negócios, o explorador das riquezas da terra, dela vai tudo tirar, e levar, e guardar, muito embora, fique o país devastado, arrasado, destruído.

Não encontra no correr do primeiro século do descobrimento metais nobres, gemas preciosas e, por isso, cultiva a terra, apossa-se de grandes áreas, e transforma-se de humilde homem de trabalho, aqui chegando, em senhor de engenho, em pecuarista latifundiário.

Mas faltam-lhe braços para o trabalho e esses só podem ser providos pelo africano e pelo indígena. Vem o primeiro, em levas, nos porões dos navios, morrendo de nostalgia e de moléstias, que vão ser disseminados no imenso continente que está sendo conquistado e que, mais tarde, será considerado um 'vasto hospital', e cujo saneamento é, ainda, um problema, em tela, colocado diante do estadista. O segundo aqui está, mas, conquistá-lo, escravizá-lo, dominá-lo completamente, para ensinar-lhe a executar trabalhos rudimentares ou orifícios vulgares não é tarefa simples. Ele encarna a liberdade. Não se submete. Está em sua terra. Foge. Retira-se para longe. Embrenha-se.

E, com ele, meus senhores, está o jesuíta que lhe ministra os ensinamentos cristãos e que lhe defende a liberdade - a sua cara liberdade.

Cem anos depois de se haver iniciado o povoamento do Brasil pelo sistema de capitanias hereditárias é a colônia atacada de modo vigoroso pelos holandeses. Foi organizada e feita a defesa, com decisão, como já se havia procedido contra os franceses e os ingleses. Essas lutas, em que se derramou sangue dos colonos, africanos e índios, tão bem representados por André Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Felipe Camarão, imprimiram-lhes justo orgulho e exaltado entusiasmo pela pátria por lhes terem elas deixado a convicção do próprio valor e evidenciado o socorro deficiente, urgentemente reclamado, e quase sempre tardio do Governo Português. Surgiram acusações, descontentamentos, e começaram os colonos a compreender que seus interesses nem sempre se conjugavam em harmonia com os da Metrópole. Era o Brasil muito afastado de Portugal e os seus problemas palpitantes, as suas necessidades urgentes não eram lá bem avaliadas. Fundiam-se, dia a dia, as três raças. Eram três forças que iam compor a resultante. O colono, homem branco, auferia vantagens da escravidão em que vivia, mais ou menos conformado o africano, e a qual não era admitida pelo indígena, sempre cioso de sua plena liberdade, acabou por ter despertado, em sua consciência, o sentimento de autoridade. É, não há dúvida, uma reação que surge, pouco a pouco, ante a ação da Metrópole. E Rocha Pombo anota: "este sentimento (o mando) imperioso, que a escravidão pôs na alma do senhor, devia dar com efeito um grande impulso à índole da raça e valer-lhe por vigorosos estímulos".

Num meio físico em que as ondas despedaçando-se entre os rochedos ou contra as praias bramam liberdade; as serras temporizadas projetando-se no espaço simbolizam liberdade; as águas encachoeiradas correndo, em, disparada, vencem obstáculos e proclamam liberdade; os pássaros multicores voando, altaneiramente, cantam liberdade; a constelação do Cruzeiro do Sul, velando o esplêndido continente, aconselha liberdade; o homem brasileiro, fusão das três raças ou delas representante, grita alto, agitado, exaltado e resoluto liberdade. Porque esta é, de fato, a terra da liberdade.

Sim, meus senhores, só uma aspiração tem o negro - liberdade; só um pensamento tem o indígena a defesa de sua liberdade; e só um sentimento, realmente forte e violento, tem o branco, o homem do mando, o senhor - a liberdade - aqui, porque ele sabe que além, na Metrópole, não a tem.

E, por certo, é por amor desse sentimento de defesa da liberdade que "não houve - segundo um historiador - uma investida à soberania do domínio contra a qual as próprias populações não fossem as primeiras a insurgir-se e a levantar o seu indefectível protesto". Cria-se na alma do povo em formação a certeza de seu próprio valor e também "uma nova consciência jurídica" em choque com as "tradições da mãe-pátria". Assim surgem as divergências cada vez mais acentuadas entre os colonos e os portugueses, sendo a primeira, e de certa importância, a revolta do Maranhão em 1684.

Dominada a sublevação, pagam com a vida a ousadia de protestarem contra a tirania o ancião Jorge Sampaio, maior de setenta anos, e Manoel Beckman. Vão ambos ao cadafalso. Beckman, traído pelo seu afilhado Lázaro de Melo, é enforcado na praia do Armazém. Não tem tibiezas e "declarou que pelo povo do Maranhão morria contente".

Revela-se na guerra dos Mascates Bernardo Vieira de Melo, que não aceita a fuga e conserva bravamente o seu posto de honra.

No Maranhão, representa a prepotência do governo luso Gomes Freire de Andrade. Em Pernambuco, Sebastião de Castro Caldas e agora, em Minas, D. Pedro de Almeida, o Conde de Assumar, que manda, arbitrariamente, enforcar Felipe dos Santos, e depois arrastá-lo à cauda de um cavalo e fazendo-o, assim, em pedaços. Chega-se, enfim, à Inconfidência Mineira, em que os algozes de mão dadas - o Visconde de Barbacena e os Vice Reis Luis de Vasconcelos e Conde de Resende - instalam devassas, aplicam sentenças iníquas e, acabam condenando e enforcando Tiradentes em nome de "clementíssima e piedosíssima rainha".

Mas, senhores, as idéias livres caminham, a liberdade dá um passo à frente.

Pairam por todos os recantos do domínio tendências para sacudir o jogo de além mar. Corporizam-se, dia a dia, de norte a sul, as aspirações do povo que sente a necessidade de ter o seu governo, por ele escolhido, de sua confiança, com ele irmanado. Não se conformam os homens de cultura, os elementos de escol com o "regime opressivo e humilhante da colônia". Vai partir de Pernambuco um protesto formal.

Nos fins do século 18, encravado nas divisas de Pernambuco e Paraíba, cria-se um clube em Itambé. Sabia-se que era seu presidente o Dr. Manoel de Arruda Câmara, médico e naturalista de boa fama.

Tornou-se este clube conhecido pelo nome de Areópago de Itambé. Era uma sociedade secreta. Dela faziam parte personagens ilustres e das principais classes sociais. Dizia-se ainda que os componentes do Areópago eram protegidos por Napoleão Bonaparte. Houve denúncias, devassas e prisões. Mas o que dominava naqueles tempos, naquelas gerações do período colonial, era o sentimento de pátria, era a aspiração de independência, era o sonho de liberdade.

É possível, todavia, que a chegada da família real ao Brasil, em 1808, que trouxe como consequência imediata a abertura dos portos às nações estrangeiras e amigas e a declaração solene de que o rei levantava a sua voz do novo reino que ia criar, arrefecesse os ânimos por algum tempo. As ilusões, porém, de uma situação melhorada, para os brasileiros, cedo se dissiparam.

Recebera o Brasil, com a alma alvoroçada, a Família Real. Eram imensas as esperanças em benefício de toda ordem. Mas a verdade amarga é que rei e rainha eram esposos desavindos. Os vexames por que passaram famílias brasileiras no Rio de Janeiro com o célebre P.R., mandado sumário de despejo, lançado em suas portas foi o desencanto. Esparramaram-se pelo país essas notícias, desde logo consideradas como ato de prepotência. E se no Rio de Janeiro o tempo apagou, em parte, a má impressão do momento, outro tanto, é de se supor que não haja acontecido nas províncias afastadas como Pernambuco e outras em que a ação indesejável, arbitrária e violenta do "marinheiro, do mascate, do luso", enfim, era de sobra conhecida pelas suas vítimas que eram os brasileiros. Num crescendo ia, pois, a exacerbação dos ânimos, a ponto de nos banquetes se excluíram as "iguarias e bebidas da Europa" e os quais terminavam com brindes exaltados que mais eram gritos de guerra como: "Vivam os brasileiros e morram todos os marinheiros" ou, então, como aconteceu em casa do capitão José de Barros Lima que o secretário do seu regimento José Mariano de Albuquerque brindou a uma senhora brasileira, casada com português nos seguintes termos: "À saúde das senhoras brasileiras que não tiveram dúvida de matar os marinheiros seus maridos".

Clamores, protestos, nada valia. O Governo do Rio, com o Príncipe Regente à frente, era surdo aqui, como sempre foi surdo em Portugal. Estava muito aquém da ação que lhe reclamava o momento histórico. A alma resignada do brasileiro está saturada de tanto desalento, de tanto sofrimento. E por toda parte ele ouve a mesma palavra - liberdade. Tudo, pois, tinha caminhado para o desfecho, para a luta, para a guerra, para a revolução. E como isto não bastasse chega-lhe, ainda, aos ouvidos a atoarda dos povos, "da velha Europa rejuvenescida", que enfrentam os "despotismos alarmados e o exemplo dos vizinhos" que quebram os grilhões que lhes acorrentavam ao Governo da Espanha. Os Estados Unidos, muito antes da queda da Bastilha, muito antes da divisa francesa - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - já haviam conquistado sua independência. Lá foram treze colônias e aqui será a região nordestina que tem sua tradição de bravura, de amor à pátria, a partir da encarniçada luta com os holandeses.

Assim se chega ao limiar da revolução de 1817.

E aqui estamos, meus senhores, diante do busto de Domingos José Martins, espírito-santense patriota, que deu a vida por um ideal sacrossanto - pela liberdade do Brasil. E assim como o homenageou o saudoso e eminente presidente Bernardino de Souza Monteiro mandando erigir este bronze, por sugestão do presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, de boa memória, Dr. Antônio Francisco de Athayde, que tantas e tantas vezes o enalteceu com a sua palavra entusiasta e inflamada, também nós aqui estamos para render-lhe o tributo de reverência cívica por parte do Instituto de que é ele o seu patrono.

Trazemos-lhe uma singela braçada de flores, e sem atavios eloquentes ressaltaremos em bravíssimas pinceladas o sentir liberal, que foi constante apanágio do terrantez insigne que tanto sublimou a sua e a nossa terra estremecida - o Espírito Santo.

Depois do regresso de Domingos Martins da Europa, em 1815, tornaram-se em Recife as reuniões política tão frequentes que eram quase públicas. "Martins e outros esperavam pelo aviso dos seus mestres do sul, como estes dos da Europa". As ausências, naquela época, do Recife, de Martins e de seus companheiros não visavam outro objetivo senão um "acordo revolucionário". Cartas anônimas eram dirigidas a D. João VI e a seus ministros em que se falava de convite para entrar no infernal "conluio e plano de sublevação pernambucal e baianal". Caetano Pinto de Miranda Montenegro também tinha notícias e denúncias dos planos que se arquitetavam, que se combinavam, que se articulavam. E certo dia, Montenegro determinou medidas drásticas e a prisão de paisanos e militares.

A prisão destes seria efetuada pelos próprios chefes dos respectivos regimentos. Pelo Marechal José Roberto seriam detidos os paisanos. Domingos Martins foi preso. Culmina a luta entre os militares e a revolução triunfa. Montenegro chega ao Rio e é recolhido preso na Ilha das Cobras.

Constitui-se o governo revolucionário. A Domingos Martins coube a pasta do Comércio. É republicana a forma de governo. Seriam todos os atos do governo datados da "segunda era da liberdade pernambucana".

Por toda a parte se cantava a vitória e ouviam-se as exclamações deste teor: "Viva a Pátria" Vivam os patriotas, e acabe para sempre a tirania real!"

A liberdade, sonho daquela plêiade de patriotas, agora, está implantada fulgurantemente. A liberdade, pensamento constante de Domingos José Martins, triunfava, enfim, esplendorosamente, na terra da liberdade, no Brasil.

São liberais, são sábios os atos do Governo. Mas a reação organiza-se e o regime estabelecido ainda não consolidado vacila. Os patriotas vão para o campo da luta e vencidos, e presos, e humilhados, pagam muitos com a vida o horrendo crime de quererem a liberdade, de aspirarem à liberdade para a sua terra.

Preso Domingos José Martins é remetido com o Dr. José Luiz de Mendonça e o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro (padre Miguelino) para a Baía na corveta Carrasco e aí são condenados à morte.

A 12 de junho de 1817 é Domingos José Martins arcabuzado no Campo de Pólvora. Morre um herói com o pensamento na esposa querida e na pátria idolatrada.

É um apóstolo da liberdade. Elevou o Espírito Santo e honrou o Brasil.

"Ide dizei ao vosso sultão que morro pela liberdade". São suas últimas palavras.

Meus senhores, mocidade de minha terra, tomo dois pensamentos, de empréstimos, ao desembargador Carlos Xavier. Há mortos, diz Henri dex Houx, que falam do túmulo e cuja voz é preciso escutar.

Temos necessidade que esses mortos não morram e isso depende de nós, "porque a vida dos mortos consiste na memória dos vivos".

E Vitor Hugo, no centenário fúnebre de Voltaire, começou o seu discurso: "Há cem anos morria um grande imortal" e, meus senhores, agora termino exclamando: Há cento e trinta e um anos morria um grande imortal - Domingos José Martins - pela liberdade, pela Pátria!

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nº 65, ano 2011
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2013 

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