Morro do Moreno: Desde 1535
Site: Divulgando desde 2000 a Cultura e História Capixaba

Berredo de Menezes, o encantador de palavras - Por Drumond

O Poeta Berredo de Menezes

Ferdinand Berredo de Menezes, ex-ocupante da cadeira n°1, da Academia Espírito-santense de Letras, veio ao mundo predestinado à literatura. Além de ser filho de poeta, nasceu na casa onde havia morado um dos escritores brasileiros mais lidos no início do século XX, seu conterrâneo Coelho Neto (1864/1934), eleito em 1928 como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”. Maranhense, nascido em Caxias e criado em Coroatá, Berredo foi amigo de infância do imortal da ABL José Sarney, ex-Presidente da República, cuja mãe era sua madrinha. Na juventude, no Rio, dividiu uma quitinete com um poeta iniciante chamado Ferreira Gullar. Mais tarde, quando bolsista, em Paris, chegou a ter contatos com Sartre e Simone de Beauvoir, no famoso Café de Flore, frequentado pela intelectualidade da época.

Advogado, professor, político e poeta, dedicou-se voluntariamente ao direito trabalhista, tendo inclusive recebido honrarias da Federação dos Trabalhadores na Indústria do ES, pelo fato de jamais haver cobrado honorários nas causas trabalhistas em que atuou. Exerceu posteriormente a advocacia criminal, tendo sido considerado, na época, o maior criminalista do Estado.

Foi professor universitário durante 32 anos, ocupando a cátedra de Direito Constitucional e, posteriormente, a de Direito Processual Penal, na Ufes. Foi Prefeito de Vitória entre 1982 e 1985. Eleito por duas vezes vereador, cumpriu os mandatos no município de Vitória.

Seu pai, grande admirador de Camões e Bocage, fez questão de passar ao filho o gosto pela poesia, propiciando-lhe a leitura dos grandes poetas e escritores. Influenciado pelo pai, Berredo escreveu seu primeiro soneto aos 13 anos.

Já idoso, o poeta resgatou, num velho caderno perdido havia duas décadas, um pungente soneto que havia feito dentro do cemitério de Santo Antônio, no dia de finados, ao visitar o túmulo de sua mãe. Trata-se de um poema feito de improviso, ao sabor do momento, sem preocupação versificatória mas, por incrível que pareça, estruturado exatamente dentro das normas clássicas, ou seja, 14 versos decassílabos, métrica preferida pelos sonetistas. Sabe-se que um soneto bem estruturado se parece com uma canção. Neste, abaixo, o poeta fez a marcação rítmica com sílabas tônicas nas 6ª e 10ª sílabas poéticas (decassílabos heroicos), com rimas entrelaçadas (ABBA) nas duas quadras, e com rimas em CCD nos dois tercetos.

SINGRADURA

(Para minha mãe)

 

Quando te trago flores, e a esperança

de um dia estarmos juntos, no Infinito,

carrego no meu corpo, como um grito,

o teu olhar de amor, com segurança.

 

E velejo o silêncio da lembrança

como quem perde a rota e encontra o mito

que eu tinha à tua sombra, em som e rito,

no acalanto dos sonhos de criança.

 

E fico ouvindo a luz do teu perfume

que estas flores exalam, como o lume

que me dá forças para caminhar,

levando, entre os destroços da tristeza,

o sol que emana da feliz certeza

de um dia a Eternidade nos juntar.

(02-11-1989)

 

Quem já enveredou pelo labor poético rimado e metrificado conhece as agruras do ofício. O fato de fazer espontaneamente a tessitura de um soneto sem nenhuma preocupação formal e perceber posteriormente que ele se encaixa perfeitamente dentro dos rigores da forma fixa é uma proeza que só acontece com grandes bardos que têm a poesia introjetada na alma. Berredo de Menezes foi capaz de ir muito além. Descobriu casualmente, alguns anos após ter escrito o livro de contos Pelo chão dos sonhos, que, com exceção de um, todos os demais haviam sido escritos em versos decassílabos. Ele próprio não conseguia acreditar em tal façanha. Meio místico, acreditava que, no momento da concepção poética, seu pai, grande versejador, lhe tivesse soprado os versos, do além-túmulo.

No prólogo de Vozes do meu silêncio (1996), Berredo de Menezes lastima o fato de ter jogado cem sonetos de sua autoria nas águas do rio Sena, em Paris, em 1952. Isso aconteceu num período de agruras financeiras, devido ao término de sua bolsa de estudos. Tentava ganhar uns trocados, com prestação de pequenos serviços.

 

[...] compreendi, após mais de um dia de fome, por falta de dinheiro, a inutilidade do sofrimento estético, rimado e metrificado, com a habilidade de um caramujo que se esconde, na própria casca, para fingir que é noite a sua aurora [...] peguei o meu calhamaço e reduzi-o a escombros.

Receando arrepender-me, ao amanhecer, e ao tentar recompor os meus destroços, corri às margens do Sena, quase em frente ao Louvre, e fui jogando, aos montes, os fragmentos de um tempo morto que eu retirava, como um coveiro da luz, de uma mochila [...] o Sena havia bebido, com implacável serenidade, todos os meus sonetos, me diluindo, docemente, nas suas margens noturnas de solidão e silêncio [...] Voltei a Paris, depois daquela noite, quase vinte vezes e não perdi o hábito doloroso de rever o Sena, como se procurasse, sempre, reencontrar o sonho, entre os destroços do dia.

 

Foi em Paris também que escreveu seu primeiro livro, Catedral dos vácuos, em prosa poética, premiado com publicação pelo Ministério da Educação e Cultura no Rio de Janeiro, em 1955.

Certa vez, em visita à região de Domingos Martins, o poeta apaixonou-se pela paisagem do Parque das Hortênsias. Acabou adquirindo uma quinta no local mais elevado, com vista de um lado para a Pedra Azul, e de outro para a Praia da Costa. Ali, deve ter concebido pelo menos a metade de seus livros, que ultrapassam duas dezenas.

Leitor contumaz desde jovem, o que Berredo mais lamentava na velhice, após ter tido dois AVCs, era a impossibilidade de ler um livro, assim como de ouvir a leitura feita por outrem. Esses dois incidentes reduziram-lhe a memória, a audição e a visão. Teve que parar de escrever contos. Só conseguia alinhavar o que denominava “poemetos”, compostos de 10 tercetos, todos em decassílabos, geralmente sem rimas, que constituem seus últimos livros ainda inéditos. Seis décadas após o “afogamento” dos sonetos no rio Sena, acabou emergindo nele, o gosto pelos decassílabos.

Mesmo como prosador, Berredo nunca deixou de ser poeta. Enveredou por um gênero híbrido de prosa poética que ele denominava “cônticos” ou “prosopoemas”. Não ousaria rotulá-lo nem encaixá-lo em nenhuma corrente estética, pois em consonância com l’air du temps ou zeitgeist, ele “bebeu água de várias fontes”, assim como seus contemporâneos pós-modernos. Sua prosa prima pelo alto grau de literariedade, com traços neomaneiristas, neobarrocos, neoimpressionistas, neossimbolistas e, às vezes, neossurrealistas. Para evitar possíveis confusões conceituais, a acepção do prefixo “neo” surge aqui como reafloramento, na contemporaneidade, do gosto pela estética de outras épocas. A obra berrediana é um caso exemplar de emersão da plurissecular tendência anticlassicista, antinormativa e antiautoritária. Não estamos considerando aqui, evidentemente, sua fase de sonetista, pois, como ele mesmo declarou, desiludido da inutilidade do sofrimento estético, rimado e metrificado, picou e jogou água abaixo todos os seus sonetos, juntamente com o racionalismo clássico.

Há quem diga que não existe propriamente uma linguagem verbal impressionista.

Na literatura, chama-se de impressionista o escritor que prefere a indefinição do detalhe ou do objeto. Como na pintura e na música, ele estabelece impressões sensoriais de um incidente ou de uma cena. Passa a lidar com “estados de espírito” e, por meio da sinestesia faz, a partir da associação de palavras ou expressões, um cruzamento de diferentes sensações numa só impressão.

Suas imagens literárias são muitas vezes criadas para ser sentidas, para provocar uma experiência estética (esthésis), não para ser entendidas. Essa característica era tão marcante, que ele mesmo pedia que não lhe perguntassem o sentido daquilo que havia escrito, pois não saberia explicar. Tentava expressar da melhor maneira possível o que sentia num determinado instante. Passado o enlevo quase epifânico, não conseguiria descrever novamente a sensação daquele momento. Era exatamente isso que os pintores impressionistas faziam. Retratavam o instante. Monet, por exemplo, fez cerca de 30 telas da Catedral de Rouen explorando a luminosidade instantânea em diferentes momentos do dia, nas quatro estações do ano.

Extraímos do 4º conto de Sob a luz dos sonhos, intitulado “Mohara”, alguns exemplos de sinestesia, em que olfato, gosto, paladar, visão e tato se interpenetram: “ouvir o brilho”; “sentir o perfume da sombra”; “o perfume dos olhos”; “o perfume do sorriso”... A visão é o mais abrangente dos sentidos, pois o olhar tem o poder de tocar as coisas: “luz aveludada” (olhar/tato); “olhos que bebem a palidez de um rosto [...] sabor da pele” (olhar/paladar)

 

[...]O silêncio, inebriado por um céu em chamas, já dava mostras de acordar para ouvir o brilho das primeiras estrelas [...] era impossível caminhar no pôr do sol e não sentir a sombra de Mohara perfumando-me as lembranças [...] Sentado no banco onde me achava, na esperança de rever Mohara – quem sabe até embriagar-me no perfume de sândalo dos seus olhos [...] Mohara sorria, sempre; e era fácil sentir, na luz aveludada de seus olhos, o sabor de tâmara de sua pele que o sal das pedras bebia para fazer mais doce a maresia [...]ficou lívido como se estivesse bebendo pelos olhos, a palidez dinâmica daquele rosto de mulher [...] aquele sorriso enigmático que ainda hoje perfuma o sol das minhas lembranças mais felizes.

 

Como traço neossimbolista pode-se detectar, na obra berrediana, o caráter obscuro e emotivo da linguagem por meio de novas imagens literárias, de metáforas originais e de símbolos. O poeta não se contenta em cantar e evocar suas emoções; quer senti-las em sua plenitude. Na obra Sob a luz dos sonhos, realidade e fantasia se entrelaçam numa linguagem repleta de figuras de harmonia. Como foi dito, traços maneiristas, barrocos, impressionistas e simbolistas se imbricam em uma urdidura verbal eclética e sincrética. Tal livro, último a ser publicado, foi, por ironia do destino, seu primeiro livro em prosa, cujos contos haviam se dissipado no baú do esquecimento durante quinze anos. Certo dia o autor me telefonou, eufórico, dizendo que, ao revirar gavetas do passado, havia encontrado um disquete desaparecido havia quinze anos, contendo seu primeiro livro de contos, ainda inédito.

Em Sob a luz dos sonhos, há um feliz entrelace de realidade e ficção. Os personagens que povoam a mente do autor “pelos meandros incandescentes da saudade” são seus conterrâneos de Coroatá, cidade maranhense na qual foi criado. Todavia, poderiam habitar em qualquer tempo e em qualquer lugar, pois são seres com as mesmas alegrias, apreensões, angústias e reflexões inerentes à espécie humana. Coroatá é o mundo em geral, e, ao mesmo tempo, é um mundo particular, que gira em torno da praça da igreja, cujo guia espiritual tem o sugestivo nome de Estrela.

A cada leitura, seus escritos dão margem a novas experiências estéticas e a novas possibilidades interpretativas. Cada incursão pelo texto berrediano é uma viagem singular, que varia segundo a bagagem e o contexto cultural de cada viajor. Seu requinte literário pode ser percebido nos próprios títulos dos livros:

LIVROS EM PROSA POÉTICA: Catedral dos vácuos (1955); O inventor de Assombros (2001); O velejador de abismos (2003); Pelo chão dos sonhos (2005); O dialeto das sombras (2007); Sob a luz dos sonhos (2011).

LIVROS DE POEMAS

A surdez dos clarões (1993); Clarividências do nunca (1993); Vozes do meu silêncio (1996); Sobras do absoluto (1997); O Vento do Bambuzal (1997); Ladainha do exílio (1997); Além do sonho (1997); O sol das águas (1998); Entre o sonho e o delírio (1998); Flauta do azul (1999); Ente o sonho e o delírio (2000); A flauta sonhâmbula (2007); Sobras do absoluto (2007); Usina de silêncios (2008); Pelos olhos da infância (2008);

LIVROS INÉDITOS

Sob o clarão das metáforas; Vagaluminuras; Onde o silêncio perde as asas; Nas muralhas da China; Pássaros da briga; O pescador de outrora; Hóspedes do silêncio.

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-santense de Letras / 100 anos – Vol 26. (2021) - Vitória
Autor: Jô Drumond
Pertence à cadeira 32 da AEL e à AFEL
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2022

 

Literatura e Crônicas

Ele era o Professor, nós as Maducas – Por Marilena Soneghet

Ele era o Professor, nós as Maducas – Por Marilena Soneghet

O método do Prof. Guilherme, menos gramático: estimulava a leitura como o ideal para introjetar o aprendizado, melhorar a redação, adquirir estilo

Pesquisa

Facebook

Leia Mais

Ano Novo - Ano Velho - Por Nelson Abel de Almeida

O ano que passou, o ano que está chegando ao seu fim já não desperta mais interesse; ele é água passada e água passada não toca moinho, lá diz o ditado

Ver Artigo
Ano Novo - Por Eugênio Sette

Papai Noel só me trouxe avisos bancários anunciando próximos vencimentos e o meu Dever está maior do que o meu Haver

Ver Artigo
Cronistas - Os 10 mais antigos de ES

4) Areobaldo Lelis Horta. Médico, jornalista e historiador. Escreveu: “Vitória de meu tempo” (Crônicas históricas). 1951

Ver Artigo
Cariocas X Capixabas - Por Sérgio Figueira Sarkis

Estava programado um jogo de futebol, no campo do Fluminense, entre as seleções dos Cariocas e a dos Capixabas

Ver Artigo
Vitória Cidade Presépio – Por Ester Abreu

Logo, nele pode existir povo, cidade e tudo o que haja mister para a realização do sonho do artista

Ver Artigo