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Carta de Anchieta ao Capitão Miguel de Azevedo

Capa do Livro: Jesuítas e Governantes do Espírito Santo (1551 - 2008): O Palácio Anchieta de Vitória - 2013

(Trata da chegada de naus do Reino. - Padre João Pereira. - Congregação provincial. - Eleição do Padre Luiz da Fonseca para procurador a Roma. -Padre Fernão Cardim. - Negócios do Espírito Santo. - Atentado contra a vida do Inquisidor. - Partida do Padre Luiz da Fonseca para o Reino. - Padre Marçal Belliarte. - Padres Gabriel e Pedro Soares.)

Ao capitão Miguel de Azevedo, meu Senhor em Cristo, na Capitania do Espírito Santo. Intus vero.
Jesus
Pax Cristi
Senhor.

Este barco vai direto ao Rio de Janeiro e assim esta vai à ventura, se ele lá arribar à nossa terra, e será breve e quão extensa eu puder com poucas palavras. Chegamos a esta Bahia com boa viagem em oito dias. Logo a seguir entraram dez ou doze ou mais naus do Reino, mas nem por isso deixaram de valer as cousas o seu peso em dinheiro: a pipa de vinho a 24$, e daí a pouco aumentou tanto que agora nem a quarenta mil se acha e neste Colégio bebem água, e assim vão as mais mercadorias. Boa é lá a nossa terra, mas não o conhecemos.

Esperamos alguns dias pelo padre João Pereira, mas como tardou fez-se a congregação, e foi eleito Procurador para Roma o padre Afonseca por maioria de votos. Depois de sua eleição até agora, nem ele nem eu temos vida: ele com escrever e outros negócios, e eu com escrever para o que os dias me não bastam, nem descansarei até que ele se não embarque, digo se embarque. Contudo, furtei ou furtamos ele e eu alguns tempos para negociar com o Senhor Governador algumas cousas dessa Capitania, com favor do padre Fernão Cardim, Reitor e seu confessor. Mas é o vagar nisto imenso etc.

Temos negociadas duas provisões. Uma, que não vão ao sertão sem primeiro VV. EE. fazerem aqui saber, a qual ele passou de boa vontade e com zelo de não se deixar a terra sem gente em tempo que se esperam ingleses, etc. Outra, é confirmação do largo da senhora dona Luíza e vossa mercê com ela, que não foi pouco tirar-lha das mãos, porque se lhe ofereciam a ele muitas razões para duvidar e na verdade todos os letrados, que estimam muito isto, nos aconselharam que as ouvíssemos, porque se ele quiser pode nisso fazer o que quiser sem fazer injustiça contra ninguém, segundo eles dizem, por provisões novas que tem de El-Rei para isso e para dar as serventias dos ofícios, etc. E já ele oferecia o ofício de adjunto a N. dos Ilhéus como a cunhado (sic), mas ele foi tão bom que não quis aceitar.

As embrulhadas da eleição que lá houve andam agora na forja. Espero que tudo sairá acabado e apagado, e não se procederá na devassa, que lá se tirou, porque a todos os letrados e ao próprio ouvidor geral lhes pareceu bem e ajudaram nisso, e o Senhor Governador, que é muito amigo de pacificar o povo, tem já dito que assim será. A petição fiz eu de minha letra com ajuda do mesmo ouvidor geral: lá a tem para a despachar. Eu dizia que se podia lá dar largueza a Rodrigo Garcia e aos mais que por acaso tivessem alguma provisão, ou embaraço, porque tudo se há de consumir aqui e para isso irão provisões como espero de certeza.

Para Marcos de Azevedo negociamos outra sobre o caso do Rocha: já está passada. Neste negócio interveio Manuel de Freitas e Ambrósio Peixoto e eu; e foi o caso que o Rocha era favorecido do Mestre da Capela e lhe dava de comer, disse-nos isto Manuel de Freitas. Com isto Ambrósio Peixoto rogou ao Mestre da Capela que houvesse dele o perdão, isto é, não falar no caso. Eu apertei tanto como o Mestre da Capela que o não deixei descansar até que houve dele o necessário, e, ainda que ele lhe tinha prometido que faria disso termo por escrito, depois tornou atrás dizendo que somente de palavra o diria diante do senhor Governador. Perguntei a Peixoto se bastava e disse-me que sim. Trabalhei que se fizesse logo e assim se fez, tendo eu já prevenido o senhor Governador o qual me disse que o fizesse logo, como fez, e sobre isto passou a provisão para Marcos de Azevedo não ser mais molestado sobre o caso, pois Rocha não queria dele nada. A qual provisão tinha eu cá feita como o Padre Afonseca para ele a assinar, e, indo a mostrar a Peixoto para ver se estava boa, me mostrou ele outra que tinha já aviada, assinada e selada. De maneira que não faltaram cá servidores ao senhor Marcos de Azevedo.

Isto concluído, daí a muitos poucos dias o Rocha, que diziam estar agravado do Inquisidor, lhe atirou duas noites com um arcabuz à sua janela, foi preso e se os padres, que são adjuntos do Inquisidor, não trabalhavam muito nisso, ele não escapava de morte de fogo, conforme a bula do Papa. Mas eles a interpretaram de maneira que pareceu bem ao Inquisidor dar-lhe a vida. Mas contudo saiu com degredo para as galés por dois anos e primeiro cinco domingos na Sé com grilhão e baraço e cumprir um ano de cadeia e depois de degredo.

Quis Nosso Senhor que tínhamos já aviada a provisão; porque agora mal se houvera de aviar porque cuida ele que nós o perseguimos sendo nós os que lhe damos a vida. Este capítulo seja para o senhor Marcos de Azevedo para que entenda que nós não esquecemos dele. E não folgue ninguém com seu mal que bem grande é. Muito deve a Ambrósio Peixoto, posto que ficou muito sentido de tirar ele lá o ofício a Luiz Gomes e tomou como agravo feito a si mesmo, que o tinha provido dele segundo ele mesmo me disse ao cabo de três meses da nossa chegada, falando em outras cousas e rogando-me que lho estranhasse lá; e não quis aceitar escusas dele dizendo que, se viessem quaisquer papéis de Luiz Gomes, que logo o houvera a meter de posse dele. Deste derradeiro ponto dará vossa mercê a conta que lhe parecer a Marcos de Azevedo.

Também está queixoso Ambrósio Peixoto de vossa mercê lhe não escrever e eu digo que tem razão se assim é, porque de verdade é amigo de vossas mercês e portanto daqui por diante havendo ocasião não deixe de o fazer. Seu sogro Fernão Cabral saiu agora com sua sentença: foi misericordiosa, segundo todos afirmam, e ele mesmo o reconheceu dando graças ao Inquisidor e a todos os adjuntos da mesa pela mercê que lhe faziam merecendo muito mais suas culpas, e isto de joelhos com muita humildade.

O padre Afonseca partirá no fim deste mês para o Reino num galeão de Viana. Tem lá aviados muitos papéis da senhora Dona Luíza e anda aviando os de vossa mercê. Tudo creio irá bem aviado porque o senhor Governador tem prometido de escrever, bispo, provedor-mor, etc. Como se aviarem os papéis do caso da eleição, entenderei nos da tomada do livro da Câmara, que toca a banhos, e entendam vossas mercês que para isto é infinito vagar do Governador e ando espreitando para lhe falar em semelhantes cousas, e depois disso o padre Cardim, que o aperta. No caso da querela, não fará o Governador nada sem perdão da parte; agora espera que venha dos Ilhéus onde o mameluco Pedro Gonçalves está e, quando não vier, determino de abalroar com o ouvidor geral, o qual se mostra grande meu amigo, e do padre Afonseca muito mais, e creio ele buscará alguma boa saída. Ao menos não irão lá mais papéis sobre o caso enquanto não houver quem atice. Ao menos o Governador por sua parte os mandará e como lá está a provisão dos outros passados bastará. A querela não foi nula como lá cuidavam, ainda que foi dada por induzimento de inimigos porque a ordenação está clara nisso. Mas a justiça dos papéis, que cá vieram, do caso como passou bastava para tudo. Enfim, tudo se fará bem com a graça de Deus.

O padre Provincial partirá juntamente com o padre Afonseca para Pernambuco e de lá logo em chegando diz que mandará o navio para irem os que hão de ir para essa banda e parece que também irei eu pela promessa que o padre Provincial fez a vossa mercê; que a não ser isso muito puxaram por mim cá para Pernambuco, mas quererá o Senhor tornar-me a levar a esta terra para consolação de vossa mercê e desses senhores todos meus amigos, a quem cá mando mil encomendas, das quais vossa mercê há de dar em particular a Cândida com todo o mais que lhe toca e não falo, porque já isso é sabido. Para a senhora dona Luíza basta esta mesma carta, a letra da qual mostra bem o vagar que tenho. De não vir de lá... vários os sucessos do tempo. Haja a paz, saúde e amizade entre todos e principalmente com Deus, e isto basta; e não é necessário encomendar a vossa mercê em particular os padres, pois é irmão verdadeiro (e não me engano) e pai de todos. Vale interim et ora pro mecum tota familia.

Desta Bahia, o primeiro de dezembro de 1592.

Se vossa mercê quiser dar parte desta ao padre Gabriel e Pedro Soares; se aí estiver, será caridade, porque não lhes posso escrever senão breviter. Não há cá pólvora, poupem lá a que houver, e o padre Afonseca faz conta de levar ao Reino o dinheiro do açúcar da senhora Dona Luíza, que cá se vendeu, para prover de lá. Na Provisão que digo vai vossa mercê por capitão, se nas cousas de guerra, e que com a senhora Dona Luíza possa dar todas as liberdades que se dão em semelhantes tempos aos homiziados.

De vossa mercê servo em Cristo

 

Obs.:

Anchieta, que desde fins de 1587 se encontra no Espírito Santo, seguira para Bahia a fim de participar da congregação provincial que elegeu o padre Luiz da Fonseca procurador a Roma.

O capitão de ordenanças Miguel de Azeredo (ou Azevedo) exerceu o governo da Capitania, como adjunto de Dona Luíza Grimaldi, viúva de Vasco Fernandes Coutinho (filho), de 1589 a 1593. Retirando-se a viúva do Reino, Continuou Azeredo no governo da capitania, com o título de capitão-mor; durante o qual faleceu José de Anchieta, a 9 de junho de 1597.

 

Fonte: Jesuítas e Governantes do Espírito Santo (1551 – 2008): O Palácio Anchieta de Vitória – 2013
Autor: Gabriel Bittencourt
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2019

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