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Descobrindo Massena - Por Kleber Galvêas

Capa do Livro - Homero Massena, 2007

Cresci em casas que tinham pinturas a óleo penduradas nas paredes e a pintora morava ali também, era a minha mãe. Meu pai gostava de recortar cascas de laranja formando objetos muito curiosos. Com cartas de baralhos, dominós e palitos de fósforos montavam torres e labirintos que desafiavam a gravidade e se desfaziam ao menor toque. Isto em Dores do Rio Preto e São Mateus, no Espírito Santo.

Com cinco anos, fomos morar no Flamengo, Rio de Janeiro. Visitei pela primeira vez o Museu Nacional de Belas Artes, a Biblioteca Nacional e o Teatro Municipal. Nunca esqueci as maravilhas que vi. Com sete anos, em Vila Velha, fui matriculado no Colégio Marista. Naquele tempo, 1955, desenho era uma disciplina à parte desde o primeiro ano primário. Meu pai era amigo de Massena, e minha mãe, da sua terceira mulher, Dona Edy (Adelina Sanvitto).

Em 1960, era moda pintar as casas com cores primárias e duas cores para cada cômodo. Depois de uma reforma feita lá em casa, sobraram muitos restos de tinta com cores variadas. Arranquei o compensado de trás do meu camiseiro e ali pintei uma marinha. Minha mãe se entusiasmou e levou para o Massena ver. "Traga esse menino aqui! Quero conversar com ele", disse o mestre. Assim, passei a freqüentar o Atelier Massena, até a sua morte em 1974.

Massena era 62 anos mais velho do que eu e isso enriquecia nosso diálogo, cheio de diferenças. Tenho em meu acervo: as três páginas iniciais de sua autobiografia, que não quis continuar, cartas ilustradas que ele me escreveu, quando estudei em Portugal por dois anos. E também bilhetes que mandava lá para casa, dando notícias ou convidando para jogar baralho: "Dona Ester, hoje estamos em casa, se puder venha para o capote. Se puder traga o 'Cabeleira'. Está lindo sim, poderia ser pior. Um doutor de melenas e passa piolho. A Voz do Brasil, ontem andou inventando que eu sou o dono do Brasil' Gente chata, não? Só pelo fato de ter o presidente me dado o dedo, a ponta do dedo, para beijar causou inveja à multidão de deputados e senadores, e mais políticos que esperavam o 'beija’ na ante-sala. O negócio foi do barulho. Na espera da honra de revê-los mando meu abraço, do Massena".

Há também dedicatórias em telas que pintou, e em uma que pintou integralmente, mas assinou meu nome; pinturas que ele fez na parede da minha casa; fitas gravadas com ele tocando violão conversando sobre arte e ecologia. Em 18 de setembro de 1966, ele publicou em A Gazeta um texto falando sobre o Primeiro Salão Nacional de Artes Plásticas do Espírito Santo, do qual participou com três telas, e da minha pintura experimental, feita com asfalto retirado da Avenida Champagnat, em Vila Velha: "Entre os artistas que compareceram ao primeiro 'salão' de arte moderna, em nossa terra, foi incontestavelmente Kleber Galvêas um dos que mais se destacaram. Seu quadro Pescador está entre os quadros de maior valia que expôs. Foi adquirido por um americano que o transportou para Washington, onde reside. Temos assistido o desenvolvimento artístico quase genial do jovem capixaba, verdadeira revelação na arte contemporânea. Espontâneo criador de um estilo muito pessoal, não tem a preocupação de imitar ou inspirar-se em obras de outros artistas da escola que adotou; não decalca espiritualmente o já pintado pelos grandes mestres, não plageia como alguns que nos aparecem retumbando os guizos de seus feitos revelando mediocridade. Valendo-se da liberdade concedida ao abstracionismo, ao cubismo e a outras modalidades da arte contemporânea, apresenta verdadeiras aberrações confundindo o público sobre o que há de verdadeiro e valoroso na nobre arte que imortalizou Picasso, Albert Murett, Marquinni e, entre nós, o saudoso Portinari, que dignificou a cultura artística no Brasil, legando a glória do seu nome à terra de seu berço. Estamos certos que Kleber Galvêas em futuro próximo será uma glória nacional dado o seu amor ao trabalho e novas criações. Pena foi o não ter exposto algumas de suas telas que reputamos de grande valor, e que enchem o seu atelier. Além do mais, excelente alma de verdadeiro artista, modesto, aceita com acatamento a crítica que nós, os profissionais, mais velhos, por vezes tomamos a liberdade de apresentar-lhe. É com a maior satisfação que traçamos estas linhas com a finalidade de incentivar o nóvel artista e lhe desejar que continue com o mesmo valor, a mesma fé no destino glorioso que o espera. Os que nos lêem consideraram certamente estranho o nosso entusiasmo por uma arte oposta ao nosso estilo e por vezes maltratado, não pelos verdadeiros artistas, mas por aventureiros que invadem como bárbaros o sagrado país das artes. A próxima exposição pessoal que fará Kleber Galvêas será apreciada pelos nossos conterrâneos, momento em que verificarão a verdade do que aqui afirmamos. Massena". Esta foi a única crítica de Massena a uma exposição de pintura.

Certo dia, em sua casa, ele me pediu que levasse uma tela e uma carta para o General Darcy, em A Gazeta, lá na rua General Osório. Sobrinho de Guttmann Bicho (1888-1955), um dos maiores paisagistas brasileiros, e tendo morado em sua casa na Ilha do Governador enquanto estudava no Rio, o General Darcy havia apurado seu senso estético. Gostava muito de pintura e de conversar com os amigos pintores. Costumava dizer que seus primeiros soldos do Exército no Rio Grande do Sul, havia convertido em uma tela. Foi um dos melhores compradores da obra de Massena no Espírito Santo. Formou uma bela coleção dos trabalhos do mestre. Quando entreguei a carta, ele a abriu e começou a ler imediatamente, antes que lhe entregasse a tela. Fiquei esperando. Ao terminar a leitura, me olhou e perguntou se era eu o pintor do qual Massena falava na crítica. Respondi prontamente que não, que eu era seu vizinho, embora não soubesse do que se tratava. Não havia lido a carta colada, mas logo imaginei que era uma de suas "peças" que me preparara. Ele se divertia com gozações. (Certa vez fomos almoçar na Lanchonete Atlântida, na Praia da Costa, em Vila Velha, e ao pedir a conta, o garçom me disse que era uma cortesia da casa. Isto por eu ter levado ali um artista do gabarito do Massena. Era uma honra para o estabelecimento receber figura tão proeminente da nossa cultura. Só anos depois, quando, esquecido, tentou repetir a cena, é que descobri a farsa. Ele havia pago a conta escondido e dado urna boa gorjeta ao garçom para fazer a louvação).

No domingo seguinte à entrega da carta, ela estava la, na última página do Primeiro Caderno de A Gazeta. Li, reli e entrei em pânico. Era consciente das minhas limitações, tinha-o como parâmetro, andava entusiasmado com a perspectiva de ir estudar Medicina em Lisboa, e vencera a tentação da musa da pintura. Senti que ele havia colocado no meu ombro uma carga para a qual não estava preparado. Fui imediatamente à sua casa para protestar. Recebeu-me sorrindo e eu fui logo dizendo: "Professor, como o senhor me faz entregar ao carrasco a minha sentença de morte? Isto é traição! Já esqueci a pintura, não dá para sobreviver, o senhor sabe. Vou viajar..." E ele me respondeu "Calma, rapaz! Conheço seu espírito. Nós somos como imigrantes que chegaram a uma terra inculta. A primeira geração limpa o terreno, a segunda planta e a terceira é que poderá colher. Eu fiz a primeira parte, a mais difícil... E você? Você não está pintando hoje, mas vai pintar e me agradecer. Percebo sua vontade grande em aprender."

Arenguei mais um pouco e depois jogamos inúmeras partidas de "buraco". Muito envergonhado, só de noite tive coragem de ir para casa. Dezessete anos depois, em 1983, numa exposição na Capela Santa Luzia, patrocinada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), usei despudoradamente este texto do Massena, como apresentação no catálogo. Desde 1977, após passar pela Medicina, Economia e Licenciatura em Ciências, já não tinha mais trauma. Os cupidos Massena e Peniche Galveias haviam me conquistado definitivamente para a musa das Artes. Desde então, vivo do meu trabalho como pintor.

O primeiro quadro pintado sob sua orientação foi uma marinha que ele desenhou com carvão, para me explicar técnicas de composição, claro-escuro, e proporções. Pintei esta tela. O tema era a entrada da Escola de Aprendizes-marinheiros, em frente à sua casa. As primeiras aulas formais versaram principalmente sobre fabricação e conservação dos materiais de trabalho e o máximo rendimento que se podia obter com seu uso correto Ele sempre mencionava os colegas pintores que conheceu na Europa, Rio e cidades por onde passou. Falava sobre as características técnicas de cada um deles, destacando os aspectos positivos que admirava em determinados trabalhos.

Os artistas que ele mais citou foram Hélios Seelinger (pela amizade e simbolismo irreverente); Almeida Junior (autor do quadro que mais apreciava, Partida das Monções), Belmiro de Almeida (pela obra-prima Dame à la Rose); Batista da Costa, Zeferino da Costa, Pedro Alexandrino e Parreiras (seus mestres); Oswaldo Teixeira (por ter aberto a Escola Nacional de Belas Artes a todos que a procuravam); Gastão Formenti (pela combinação de pintura e música), os irmãos Arthur e João Thimóteo da Costa, e Carlos e Rodolfo Chambelland (pela convivência em Paris); os irmãos Rodolfo e Henrique Bernardelli (pelo muito que fizeram na Escola Nacional de Belas Artes) Pedro Américo e Vitor Meireles (pelos gigantescos quadros de batalha — Avaí e Guararapes — que admirava muito); Jorge Grimm (por ser precursor da pintura ao ar livre no Brasil); Rodolfo Amoedo, Fanzeres, Elizeu Visconti, Presciliano Silva, Reis Junior, Castagneto, Marques Junior, Teles Junior, Oscar Pereira da Silva, Carlos Oswaldo, Guignard (ótimos pintores) e Vitório Gobbis (por ter se recusado a assumir a nossa Escola de Belas Artes, por achar o salário muito baixo). Gobbis tem duas telas no Espírito Santo: uma no Palácio Anchieta, outra no Centro de Artes da UFES, esta segunda tela, um retrato de sua mãe, Massena dizia ter sido pintada, na verdade, por seu amigo Portinari.

Na Praia da Costa, sentado nos bares (Atlântica e Saloon) tive aulas: eu tomando cerveja e ele fanta-uva sem gelo. Aproveitava para me mostrar as cambiantes cores do entardecer, quando o sol parece acelerar sua marcha na direção do horizonte.  Ali eu aprendi que cor de rosa não podia ser uma só cor e que o azul, branco e púrpuro são as cores da nossa bandeira: nosso céu de outono e primavera.

Massena misturava as tintas na palheta usando solvente e girando o pincel infinitas vezes. A cor obtida era aplicada em aguadas. O tema era encarado como um todo nas sucessivas camadas de veladuras. A cena ganhava foco, apenas nas últimas sessões de retoques. Intercalavam-se as sessões períodos de secagem das tintas. Todas as suas telas foram precedidas de cuidadoso desenho a carvão, lápis ou bistre. As primeiras tintas lançadas na tela eram as complementares das últimas: vermelhos e carmins para finalizar com verde; laranja para dar profundidade a um céu azul. No processo das veladuras que ele desenvolveu tão bem em sua obra, o resultado final apresentado ao público se constitui no somatório das diversas camadas de tintas, bem diluídas (véus), que ele sobrepunha numa mesma área. Isso por sugestão da riqueza cromática que se constata apreciando diretamente a natureza. É fácil notar a variedade de verde em suas telas. Do glacial quase azul ao temperado com carmim, cheio de vigor. Ele dizia, se referindo às suas Subidas da Penha: "Há quem sinta esta mata fria, outros percebem um calor tropical. Eu a pintei em diferentes estações do ano".

Massena renegava o preto, o branco puro e linhas, quando pintava paisagens: "Isto não existe na natureza”. Ensinava que mistura de tintas deveria ocorrer sempre na palheta e jamais na tela, o que provocaria áreas embaçadas. Insistia na paciência para esperarmos as tintas secarem bem e só assim reiniciar ou corrigir um trabalho. Finalizando a pintura, ele não assinava. Só quando alguém se interessava pelo quadro é que ele dizia faltar uns retoques finais e a assinatura. O verniz era deixado para depois, por dois motivos: esperar que as tintas secassem completamente, e motivar a volta do freguês. Massena usou freqüentemente um verniz fabricado pela Casa Cavalieri, do Rio de Janeiro. Ao longo dos anos, esse verniz tem mostrado pouca resistência à luz e escurecido, apresentando manchas castanhas sobre a pintura.

Ele sempre fazia as telas onde pintava, sozinho na carpintaria e ajudado por Dona Edy na hora de esticar o pano nos chassis. Aos 88 anos, desdobrava tábuas em ripas na serra circular; montava o chassis e preparava o fundo com alvaiade, ultimamente com tinta PVA solúvel em água. Muitas vezes fez molduras: eram toscas, de ripas e tábuas, pintadas de branco. De certa feita, em Campos, Estado do Rio, pediu a uma doceira que fizesse rosas de enfeitar bolo usando papier maché e com elas decorou suas molduras.

Sempre dizia para quem queria pintar: "Observe a natureza não tem melhor professor. Aprenda a ver sem preconceito. A técnica da pintura é simples e fácil, se aprende rápido; o difícil é aprender a ver”.

Restaurar suas pinturas (tivemos experiência com algumas dezenas) é muito difícil, dado à fatura (resultado) fina que obtinha. Quase não há tinta sobre a tela e, ao menor toque desastrado, lá se vão as veladuras. É quase uma especialidade na restauração, exigindo delicadeza e persistência no trabalho e conhecimento da sua palheta (cores que o artista prepara).

Em 1966, com recursos obtidos em um trabalho artístico desenvolvido em Guarapari para o XIII Congresso Brasileiro de Anestesiologia, embarquei para estudar Medicina em Portugal e esquecer a pintura como profissão. Ao mesmo tempo em que o Massena era, tecnicamente, um forte estímulo positivo para alguém se dedicar à arte, ele era o exemplo de que a arte não podia ser abraçada, como profissão, no nosso Estado. Um pintor magnífico como ele, com uma capacidade de produção extraordinária, vivendo em condições precárias, era referência que matava qualquer vocação. A mão do destino fez com que em Lisboa fosse morar na casa de um parente distante, José Maria Peniche Galveias, que havia sido pintor abstrato nas décadas de 40 e 50. Logo o curso de Medicina foi esquecido e eu passei a freqüentar a Sociedade Nacional dos Gravadores Portugueses.

Peniche Galveias me apresentou a Manoel Cargaleiro, Navarro Hogan e outros artistas da vanguarda em Portugal. As visitas que fizemos a museus eram aulas que soube aproveitar. Quando voltei em 69, julgava que a minha missão era transformar o Massena em pintor abstrato. Tivemos várias discussões. Após uma destas, fui para casa aborrecido e no dia seguinte fui acordado por palmas de um garoto, seu vizinho, que tinha numa mão um bilhete que me esculhambava terminando assim: "Veja se está bom. Posso fazer um desses por noite. Fique com esta porcaria para você". Na outra mão vinha um belo quadro abstrato, que conservo.

 

Fonte: Coleção Grandes Nomes do Espírito Santo - Homero Massena, 2007
Texto: Kleber Galvêas
Coordenação: Antônio de Pádua Gurgel/ 27-9864-3566 
Onde comprar o livro: Editora Pro Texto - E-mail: pro_texto@hotmail.com - fone: (27) 3225-9400 ou na Banca do Alemão - Praça Duque de Caxias, Centro Vila Velha
 

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