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Então Vitória era assim (1908-1912) – Era Jerônimo

Um bonde a tração animal trafegava pela cidade baixa, de Vila Rubim ao Forte São João, passando pelo Largo da Conceição, Ruas do Rosário, Cristóvão Colombo e Barão de Monjardim. Na Rua do Comércio flutuam ao largo saveiros e "pontões" da casa Hard & Cia., carregados de café a espera de navios. As pequenas pontes, construídas sobre estacas de coqueiro, dos clubes Álvaro Cabral e Saldanha da Gama, serviam de amarração às lanchas, iates e barcaças à vela, de cabotagem, dos municípios litorâneos. Botes com nomes sugestivos e guarnecidos de tapetes esperavam palmeiras a tostão para Argolas, São Carlos, Porto-Velho ou visitas a bordo. Carregadores de toalhas barradas de crochê, enroladas ao pescoço, charlavam nos quiosques à espera de carretos. Canoas do "Marinho", de Cariacica e do "Lamarão" vendiam lenha, frutas, caranguejos, cal, tijolos, areia e água.

As "bananas da terra" de Cariacica e Mangaraí eram famosas. Nas esquinas da Av. da República e Presidente Pedreira, estacionavam os tabuleiros de doces feitos por Maria Tagarro e Maria Saraiva, esmerando-se cada uma na melhor apresentação e capricho de suas guloseimas. O preço das unidades variavam de um a dois vinténs. A Rua Primeiro de Março, enladeirada, com seu comércio forte, tinha o prédio mais alto da cidade, residência do Sr. Augusto Cruz, (1) com três pavimentos em frente à sua casa comercial. Aqui afluíam as damas ricas e elegantes da cidade para compras de sedas, veludos, cambraias, perfumes, calçados, etc. A escolha era demorada e as freguesas faziam-na sentadas em cadeiras austríacas. No Cais do Imperador, havia os Telégrafos, a Saúde do Porto, a charutaria de Flávio de Jesus, que vendia músicas e fumo turco.

Daqui à Rua Pereira Pinto, lá, na esquina do Nicoletti, onde, em diagonal, os Correios recebiam cartas a cem réis, estendia-se a Rua da Alfândega. Era a melhor rua. Um tanto estreita, com as fachadas das casas mal alinhadas, apresentava-se suficientemente reta.

O lado par começava com a repartição dos Telégrafos e, fronteiro, com fundos para o morro do palácio, a casa "Morgado Horta", especializada em calçados e camisas para remadores.

Era rua de futuro, central, plana, com a Praça Santos Dumont a dividí-la ao meio. (2)

As firmas importadoras, Manoel Evaristo Pessoa, Viana Leal, "Casa Garantia" e representantes comerciais preferiam-na por ter o mar a bater-lhe nas portas dos fundos, por onde recebiam as cargas desembarcadas dos saveiros e alvarengas. J. Zinzen, principalmente, com sua casa de café e artigos europeus, ocupava grande frente, com edifício majestoso anexo ao armazém. Ostentava, nas janelas do sobrado, os escudos consulares da Alemanha, da Áustria-Hungria e da Bélgica.

Foi firma de capital e grandes transações com os colonos de Santa Isabel e Santa Leopoldina. As farmácias, que se escreviam com ph, situavam-se, quase todas, nesta rua: "Aguirre", "Pessoa", "Wlademiro" e "Juvenal Ramos". Eram homens letrados e todos diplomados pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Nelas faziam ponto os médicos, dividindo-se de acordo com as cores políticas comuns.

A Praça Santos Dumont, ajardinada, alegrava-se às quintas-feiras com a retreta da banda da Polícia e, de quando em vez, as filarmônicas do Rosário e São Francisco, em notórios desafios, porfiavam em superar-se cada vez mais.

O ponto preferido para os "mata-bichos" era o "Café Globo", dos irmãos Trixet, invadindo a calçada com mesas e cadeiras de ferro, ao ar livre. A Alfaiataria Resemini oferecia cadeiras de palhinha aos seus fregueses e amigos. Era o ponto do Barão de Monjardim e de Graciano Neves, quando de passagem pela cidade. Dois joalheiros: Gastão Rouback e Rafael Bianco vendiam jóias finas e introduziam os "Pateck Philippe", sob forma de sorteios semanais.

O Mercado, (3) velho, sujo, com botequins e café-caneca, era ponto de vagabundos à espera de carretos.

La no fim, Antenor Guimarães, (4) dinâmico e entusiasmado, dirigia agência de transportes terrestres e marítimos e supria, na canícula, a cidade com água a duzentos réis a lata, distribuída em pipas sabre carroções.

Terminava a rua com a casa Nicoletti, (5) cujo proprietário, refeito de seus vinte balaços, recebidos em Matilde, num assalto à sua filial, contemplava o armazém entupido de mercadorias italianas.

O jardim Municipal, agora chamado Eden Parque, reúne à tarde famílias do Rosário, da Capixaba e da Fonte Grande. Bebe-se. Vez por outra, assistem-se a espetáculos de variedades, de "Troupes", que não podem alcançar o Melpômene. Sessões de Café-Cantante muito em voga na época. Joga-se bilhares, "sargento", "pires", "bagatela" e, à medida que a noite vai ficando madrugada, o pano verde congrega os parceiros, que, ao se despedirem, juram não mais jogar. (*)

O Largo da Conceição não tem forma geométrica; mal nivelado guarda paços de águas verdoengas, viveiros de mosquitos ensurdecedores. Os urubus, empoleirados na cobertura do teatro, espreitam o lixo exposto à vista, nas marés baixas, quando se descobrem os fundos das Ruas do Rosário, General Câmara e São Manoel. A fedentina era a mesma descrita pelo Inspetor da Saúde Pública dezoito anos atrás.

O crescimento da cidade, em relação ao observado pelo sábio naturalista Saint-Hilaire, cem anos passados, foi de pouca monta. Espremera-se no velho perímetro. Vamos percorrê-la mais Um pouco.

O morro do Moscoso ainda com belíssima mata, o de Santa Clara, desnudo aqui e acolá, com seus granitos musgosos, além do reservatório frustrado, só tem pequena chácara, onde se acolheu o orfanato São José, no período da reconstrução feita em 1910. Nestor Gomes adquiriu-a depois para edificar a residência do Governo, num horrível estilo de janelas curvas e colunas gregas. A Rua do Comércio, deflexionando para a esquerda, alongara-se para o mar com o nome de Avenida Gustavo Schimidt, homenageando o fundador da primeira fábrica de cerveja na ilha, fabricada com água do Moscoso.  A Avenida Cleto Nunes, em formação, tem a balisá-la apenas as esquinas das Ruas General Osório e Presidente Pedreira.

De Caratoíra seguia-se por uma trilha, meio em pasto, meio em capoeira, para Inhaguetá e ilha das Caieiras, onde os Jantornos formavam hortas e pomares. Em Vila Rubim brotavam os primeiros ranchos. No Campinho, brejo e mangue, o quartel de Polícia (6) mostrava-se imponente.

As cabeceiras da Fonte Grande eram chácaras dos Serrat, de Aristides Navarro, dos Bastos e de pequenos posseiros. A maior área pertencia ao Madeira, que descia até a atual usina de Força. A Praça Paula Matos, com algumas amendoeiras e papoulas, marejava águas vindas do Carmo e do morro da Matriz. Os fundos da Rua do Rosário e São Bento eram ocupadas por uma vivenda do Dr. Maninho e pela belíssima chácara do Moniz, onde residia o Conde Beverini, cônsul de S.M., o Rei da Itália.

A Avenida Cristóvão Colombo, tortuosa, seguindo o terreno enxuto, tinha poucas casas, térreas e pobres. No local do novo mercado, um alargamento chamava-se Praça Marechal Floriano.

No fim da Capixaba, a residência do Barão, dentro dum pomar viçoso. Volteavam-na as residências de seus filhos, em palacetes confortáveis e de preço. (7) A Rua Barão de Monjardim, outrora São João, não diferia da de hoje. Casas simples contra o morro ensombrado de espesso capoeirão bravio. O chafariz emprestava bem-estar privilegiado ao bairro, quase todo habitado por funcionários. A rua era um lameiro constante. Foi calçada pelo prefeito Octávio Peixoto (1927). Seguia-se a chácara do Azevedo, (8) engolfando o forte S. João, em ruivas. Dominava-o  velho sobrado construído pelo pai do Dr. Moniz Freire. O Bispo D. Fernando adquiriu essa propriedade e por isso passou a se chamar "Chácara do Bispado". D. Benedito, terceiro bispo do Espírito Santo, transferiu, em 1924, a propriedade ao Sr. Jeremias Sandoval. Está dividida em lotes e pessimamente urbanizada. O Colégio Estadual ocupa hoje os fundos do velho pomar. O "Sítio do Rumão", numa bela escarpada, rodeado de árvores frutíferas, dividia-se com outra propriedade do Barão de Monjardim: Jucutuquara, velho feudo construído pelo Capitão Francisco Pinto Homem de Azevedo, Capitão-mor, tantas vezes à testa da Capitania. Essa paisagem está estereotipada na obra esplêndida do Príncipe Wied Neuwied!

Jucutuquara foi fazenda importante na época colonial. Pelos fins de mil e setecentos passou a pertencer ao capitão-mor Francisco Pinto Homem de Azevedo, que lhe deu sede faustoso para os costumes da época. É hoje museu e está tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional. É conhecido sob o nome de Solar dos Monjardins.

Saint-Hilaire, (9) em 1818, visitou-a para se credenciar, no sua memorável excursão de naturalista, junto a Pinto Homem, que substituía a Rubim, licenciado do governo. O sábio francês, na volta de sua viagem, visitou o governador em Palácio, inteirando-se da administração do ilustre oficial de marinha. O padre Diogo Feijó e o senador Nicolau Vergueiro, (10) presos como revolucionários, chefes do movimento de 1842, tiveram o solar como menagem, a convite do Cel. José Francisco de Andrade Monjardim, governador da província, genro do capitão-mor e pai do Barão. (11)

Conheci Jucutuquara em 1909. Morei em pequena casa de telha, pintada de cor de rosa, única no morro fronteiro ao estádio. Era aluno do professor Arnulfo Matos, na Escola-Modelo.

Para encurtar caminho, eu passava pelos Fradinhos, subia c vertente do Bastos e descia para a Fonte Grande. O trajeto principal era em mata, com grande cópia de cajás e tabuás.

Na atual Praça Asdrúbal Soares havia um barracão, construído de pedra e coberto de zinco. Nele o Carvalhinho, tirador de paralelepípedos, tinha um botequim. Era o ponto de seção dos bondes. Para a esquerda se vê um montículo de pedra, resíduo de ilha em meio ao mangue, visível na gravura do príncipe Neuwied.

Começa então o pomar do Barão, que o córrego serpejava. Mangueiras, fruta-pão, cajueiros, coqueiros, jaqueiras e laranjeiras. A estrada, hoje Rua Jucutuquara, tortuosa em meios a grandes blocos de granito, dividia-se em dois ramos: a esquerda para Fradinhos, para a direita, vencendo o riacho, com ponte de madeira, sare os pegões da fracassada Estrada de Ferro Vitória a Peçanha, atingia-se a "Passagem" (12) por caminho lindeiro com as propriedades do Figueiredo, (13) do Barão, e de Maruípe. (14)

As marés de março transpunham a estrada da Praia. As enchentes do Jucutuquara, por sua vez, causavam surpresas desagradáveis. A reta, que demanda a Praia, trecho da Av. Vitória, chamou-se "Reta do Cruzamento", porque nela cruzavam os bondes e as locomotivas se abasteciam de água. (15)

O atual bairro de Jucutuquara é obra de Nestor Gomes e Florentino Ávidos. Aquele desapropriou os terrenos do Barão, construiu as estradas do Fradinho e Maruípe, canalizou o córrego e aterrou grande parte da área. O segundo concluiu a terraplenagem e construiu a Avenida 15 de Novembro, hoje Paulino Muller. Carlos Justiniano de Matos, com sacrifício, ergue a Igreja São Sebastião, com auxílios do povo.

Jucutuquara hoje é dos melhores bairros da capital. Não se devem esquecer os grandes benfeitores da zona: Barão de Monjardim, Lizandro Nicoletti, o implantador da indústria têxtil no Espírito Santo, Agenor Santos, o "China", benemérito do Rio Branco Futebol Club, o governador Bley, possibilitando recursos ao General Carlos Marciano de Medeiros, deputado estadual e presidente do famoso grêmio esportivo, para construção do Estádio.

 

NOTAS

(1) Fronteiro ao Hotel Estoril. Foi demolido em 1964 e foi sede do Juízo Federal.

(2) Praça Oito de Setembro.

(3) Demolido no Governo Avidos, quando se construía o da Capixaba.

(4) Firma fundada em 1888 e hoje em grande progresso.

(5) Pioneiro da indústria no Espírito Santo.

(*) João Freitas era o "banqueiro".

(6) Infelizmente demolido em 1956.

(7) Argêo Hortêncio, José Francisco, Manoel Silvino, o Dr. Duquinha. Em sua ex-residência está hoje a Capitania dos Portos. Em cima, no morro, ensombrado de mangueiras frondosas a residência do General Guaraná, onde está a escola de Comércio, ex-ginásio do Espírito Santo.

(8) Jeremias Sandoval transformou o velho Forte São João em "Cassino Trianon", de curta existência. Hoje é a sede do Club de Regatas Saldanha da Gama.

(9) Augusto Saint-Hilaire. "Segunda viagem". Trad. Carlos Madeira.

(10) Elpídio Pimentel - "Respingos Históricos".

(11) Daemon.

(12) Esta ponte, construída por Silva Pontes (1801, com pegões de alvenaria, o Príncipe achou-a, em 20 de dezembro de 1815, fechada a porteira. Foi substituída pelo Eng. Ormando Borges de Aguiar, quando secretário de Viação, 1929, pela atual, de concreto armado.

(13) Montou fábrica de gelo, por volta de 1910, dando origem aos sorvetes de máquinas manuais em Vitória. Situava-se na Rua 1º de Março. A primeira (1895 ou 1896) foi a do João Pedro de Freitas, na Rua Duque de Caxias.

(14) Propriedade de Brian Bary - gerente de Hard, Rand.

(15) Denominava-se também "Reta do Constantino" por se iniciar na ombreira do botequim do "Constantino". Foi a primeira estrada para a Praia, projetada e construída parcialmente por Saturnino de Brito. Jerônimo Monteiro levantou-lhe o nível acima da influência das marés. Nestor Gomes alargou-a. Florentino Avidos macadamizou-a. Aristeu Aguiar fez-lhe o pavimento em concreto armado, com 1.800 metros de comprimento. Foi a primeira tentativa de pavimentação em concreto armado no Brasil. Seu construtor foi Serafim Derenzi. Inaugurada em 1930. Em 1949, Carlos Lindemberg mandou alargá-la, sendo os trabalhos concluídos pelo Governador Santos Neves, em 1954. O asfaltamento foi executado pelo D.E.R. do Estado, sob a chefia do autor dessas notas, o mesmo que em 1937, quando diretor de Obras da Prefeitura, propôs substituir os nomes, sem significado, de Rua S. João, Reta do Romão, Reta do Constantino, pelo nome único de Avenida Vitória.


Fonte: Biografia de uma ilha, 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2016

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