Exposição Online - O Capitão e o Santo
José de Anchieta! Padre Anchieta! O reconhecimento e a voz de seus contemporâneos, testemunhando e proclamando os seus trabalhos, suas virtudes e santidade ecoam ao longo de mais de quatro séculos e o colocam no pedestal de nossa admiração e de nosso comovido reconhecimento. O moço estudante e noviço da companhia de Jesus, que veio para o Brasil descoberto havia apenas meio século, trazia no íntimo uma ambição, como os colonizadores. Só que, enquanto navegadores, súditos do reino de Portugal, donatários, aventureiros, exilados se consumiam na febre da busca de riquezas, o moço débil de saúde, mas atleta de espírito ardia no ideal de plantar a semente do bem e conquistar almas para Cristo e sua igreja. "Os expedicionários devassavam matas e sertões em busca de ouro para as arcas do Rei e o padre em busca de almas para o tesouro do céu" escreve o padre Hélio Viotti, na magnífica biografia que dele escreveu, Anchieta, Apóstolo do Brasil, pág. 38.
Os singulares dotes de inteligência e de coração, os atos de virtude que o notabilizaram desde Coimbra, onde foi estudar aos 16 anos de idade, vieram esplender na terra nova achada por Cabral em 1.500. Quando, após 44 anos de fecundíssima e heróica atividade, fechou os olhos para seus amados curumins, na paisagem de sua predileta Reritiba, de planícies, de serras, de rio e de mar, a fama de suas virtudes, os sentimentos de gratidão, de veneração e de amor explodiram em manifestação de pesar, de dor, de carinho, reconhecimento e saudade. Com a notícia de sua morte, a população indígena aglomera-se diante do colégio e, em choro comovente, lamenta a perda de seu maior benfeitor e amigo.
O padre Fernão Cardim, seu contemporâneo, testemunha de sua omnímoda atividade, proclama em saborosa linguagem toda sua: "Este padre é um santo! Um Santo de grande exemplo e oração, cheio de toda a perfeição, desprezador de si e do mundo, uma coluna grande desta província e tem feito grande cristandade e conservado grande exemplo; de ordinário anda a pé, nem há de tirá-lo de andar, sendo muito enfermo. Enfim, sua vida é vere apostólica." (Ap. Jaime dos Santos Neves, A outra história da Companhia de Jesus, pág. 269).
Simão de Vasconcelos, também contemporâneo seu e colega da Companhia de Jesus, deixou esse lindo e singular testemunho: "José trazia o céu na boca, bastava ouvi-lo e via-se logo que Deus morava nele". Fala da glória de Tenerife, nas Canárias, sua terra de nascimento, com arroubo que se justifica, quando se quer e se deve gravar um retrato o mais possível fiel de uma personagem extraordinária, mas se depara com a palidez e a insuficiência da palavra: "De todas as fortunas podemos ter em canto como a primeira dar-nos Tenerife um José, alguém maior do que não cabe em nossa pena, pois no orbe todo não cabe." (Ap. Jaime dos Santos Neves, op. cit., pág. 182)
Esse mesmo Simão de Vasconcelos, que o conheceu pessoalmente e foi um dos seus primeiros biógrafos, assim reproduz o seu retrato físico: "Foi o padre José de Anchieta de estatura medíocre, diminuto em carnes, em vigor de espírito robusto e atuoso, em cor trigueiro, os olhos parte azulados, testa larga, nariz comprido, barba rara, mas no semblante inteiro, alegre e amável." (Op. cit., pág. 193). O próprio Anchieta diz de si mesmo com modéstia: "No gesto, o menos aprazível, humilde, roto, quebrado de costas." O seu verdadeiro retrato, porém, transparece de sua alma, da força interior que o animava e impelia a uma atividade miraculosa.
O publicista Brasílio Machado completa o quadro com esta síntese: "Anchieta foi o homem prodigioso, o escolhido de Deus, que se internava à busca das nações bravias, curvado sob o, aliás, minguado peso das alfaias que conduzia para o sacrifício dos altares, arrimado a um tosco bordão, rota e pobre roupeta, descalço a magoar os pés nas pedras do caminho, afrontando as chuvas e os sóis recebendo de mão esmoler o parco alimento com que subsistir, andando com tanta pressa pelas brenhas e matas que os mesmo brasis, curtidos por aquelas charnecas, acostumados a matejar, não podiam alcançá-lo." (Ap. Jaime, op. cit., pág. 197). Por isso, os índios lhe puseram o apelido de caraibebê homem de asas. Um índio de Iperoígue expressou seu assombro diante do jesuíta frágil, mirrado de corpo, mas nimbado de luz celestial, que com sinceridade e cordura lhes falava de Paz: "Ele é mais que homem".
No Processo informativo do Rio de Janeiro, em longo e histórico depoimento prestado no dia 10 de julho de 1610, 13 anos apenas após a morte de Anchieta, o padre Fernandes Gato da mesma Companhia de Jesus indagado pelo procurador do processo, padre Antônio de Matos, respondeu: "Digo que conheci ao padre José de Anchieta, em sua vida, por tempo de ano e meio, na Capitania do Espirito Santo, na vila de Vitória, na casa de São Tiago da Companhia e na aldeia dos índios de Reritiba, onde residi alguns meses" Fui companheiro em algumas missões e me confessava com o dito padre e o mesmo, comigo testemunha, algumas vezes. E o conheceram os mais religiosos da Companhia de Jesus e os moradores do Espírito Santo. E isto haverá 25 anos... Digo que sei que o dito padre resplandeceu muito na virtude da caridade para com os próximos, exercitando com eles as obras de misericórdia "espirituais e corporais, indo muitas léguas a pé, acudindo aos índios e brancos, a confessar, batizar e pregar. O que sei por ir algumas vezes com ele a estas coisas, indo descalço com um bordão na mão. E acudindo a pessoas pobres, com algumas coisas necessárias para sua sustentação. E, sendo superior, dava o que havia em casa, ainda que não ficasse nada; acrescentando Deus por essa via. O que sei pela razão que dito tenho e ser público e notório entre todos os religiosos da companhia e entre os moradores destas partes... Digo que sei que resplandeceu o dito padre na virtude da castidade e da pureza dela, guardando perfeitamente os votos e os sentidos, examinando a consciência muitas vezes no dia e noite, procurando evitar todas as más ocasiões. Estando cativo em refém, lhe vinham as Índias dizer como podia viver sem ter mulher, sendo moço. O dito padre lhes mostrava as disciplinas (com que tratava seu corpo com muito rigor e carne com jejuns, disciplinas, cilícios, abstinência e vigílias), dizendo que, com a graça de Deus e com aquelas, podia viver sem isso. O que foi público e notório entre todos; contando-me também o dito padre". (Op. cit., pág. 265). “Digo que sei que em vida do dito padre havia grande opinião da santidade dele e o tinham por Santo e bem-aventurados todos, comum e publicamente, ainda os menos infiéis. O que sei pelo tratar particularmente e ser pública voz e fama entre todos os moradores desta parte” Tamanho era esse sentimento e tão arraigada essa convicção que, Segundo o mesmo depoente "todos têm muita veneração e devoção ao dito padre, e se encomendam a ele em suas necessidades, pedindo-lhe a sua intercessão." (Op. cit., pág. 269).
O escritor português Júlio Dantas assim resume: "Anchieta foi um milagre de poesia, de bondade e amor".
Com apenas 19 anos de idade, José de Anchieta embarcou em Portugal, na frota do Governador Duarte da Costa, em 8 de maio de 1553, aportando à Bahia, depois de uma viagem de dois meses e cinco dias, em 13 de julho. Fazia parte do segundo grupo de missionários jesuítas chefiado pelo padre Luiz da Grã e Integrado pelos padres Braz Lourenço e Ambrósio Pires e pelos Irmãos estudantes Gregório Senão, Antônio Blásquez e João Gonçalves. Era o último na idade, diz o padre Hélio Viotti, não porém no talento, na cultura, nem nos invulgares dotes de espírito, que, fecundados por graças de eleição, o destinavam a ser por excelência o apóstolo do Brasil." (op. cit. pág. 20).
No ano de 1549, em companhia de Tomé de Souza, o primeiro Governador do Brasil, por mandado de El-Rei D. João III e por ordem do fundador Inácio de Loiola, chegaram os padres da companhia de Jesus: Manoel da Nóbrega, superior, João de Aspicuelta Navarro, Leonardo Nunes, Antônio Pires e dois Irmãos: Diogo Jácome e Vicente Rodrigues.
Com ânimo infatigável e sacrifício, com dificuldades e obstáculos tão grandes quanta a extensão das novas terras, perseguiam o duplo objetivo da reforma espiritual e moral da população dita civilizada e a conversão dos gentios.
Em 1550, tinham vindo outros tantos, chefiados pelo padre Afonso Braz, que assinalou sua presença e trabalho no Espírito Santo, iniciando a construção da igreja e colégio de São Tiago e perpetuou em carta de 1551 a sua admiração pela nova terra: "Esta onde ao presente estou é a melhor e mais fértil de redor o Brasil."
Para compreender o espírito e os acontecimentos do século XVI, o homem deste fim de milênio há de ter presente a importância e o papel que nele desempenhava a religião. Ela era a força que guiava as naus, inspirava e impelia aqueles homens que não tinham outra ambição senão a conquista de almas. Como Francisco Xavier e Matteo Ricci, na índia e no Japão, eles também imploravam: "Domine, da mihi animas, coetera tolle." (=Senhor, dai-me almas e tirai o resto).
Alfredo Bosi, professor de literatura na Universidade de São Paulo, anota em seu livro "A Dialética da Colonização": "No mundo arcaico, tudo é fundamentalmente religião". (pág. 15). Os colonizadores portugueses na América, na Ásia e na África desfraldaram a bandeira da dupla divisa: dilatar a fé e o império, desiderato que Camões imortalizou na 2ª estância do Canto I de "Os Lusíadas."
A fé cristã havia penetrado em todas as camadas sociais, do campo ao burgo, das casas modestas aos palácios e norteava todas as atividades. O catolicismo era a religião do Estado. Propagá-lo no mundo recém-descoberto era dever de consciência de reis, nobres, vassalos e colonos.
Esse fervor religioso, esse apelo à intervenção da divindade, onipresente na existência dos povos primitivos e nas velhas civilizações, se depara nas literaturas antigas como a responder a uma profunda e misteriosa exigência do homem, eterno insatisfeito das coisas criadas, por mais que a tecnologia o deslumbre e fascine com tantos bens e tantos recursos materializados numa vitória, as vezes falaz e incompleta, sobre a natureza.
No mundo antigo, pode-se dizer que nenhuma ação ou empresa se realizava sem o apelo ou a interferência das inumeráveis divindades.
Na Odisséia, celebra-se, no início do Canto VI, uma segunda assembléia dos deuses em que se rememoram as peripécias de Ulisses ao retornar à Ítaca: "Todos os deuses o levantavam, exceto um, Poséidon..." Agamenon, no Canto III da Ilíada, invoca a proteção de Júpiter na luta e entre Menelau e Páris, que disputam Helena: "Júpiter, pai supremo e a quem ninguém suplanta, deus grande, deus sem par e reinador augusto!"
Marte, Zeus, Apoio, Minerva são invocados pelos guerreiros, em cada transe.
Na Eneida, Juno, rainha dos deuses, irmã e esposa de Júpiter, prefere Cartago: "Urbs antiqua fuit... Carthago... quam Juno fertur terris magis omnibus unam posthabita coluisse Samo." (Uma cidade antiga existiu... Cartago, a qual conta-se que Juno amava mais do que todas as terras, preferindo mesmo a Samos).
Netuno, deus dos mares, aplaca a tempestade e invectiva os ventos: "Maturate fugam, regique haec dicite vestro: Non illi imperium pelagi saevumque tridentem, sed mihi sorte datum." (Apressai a fuga e dizei isto ao vosso rei: o domínio do mar e o poderoso tridente foi dado por sorte não a ele, mas a mim).
Vênus entende-se com Juno para propiciar o casamento de Enéas e Dido.
Na perfeita e vigorosa descrição do dilúvio, das "Quatuor Aetates", Ovídio, as vezes frívolo e licencioso, não prescinde da intervenção de Netuno: "ipse tridente suo ten-am percussit; at illa Intremuit motuque vias patefecit aquarium." (O próprio Netuno golpeou a terra com o seu tridente; e ela estremeceu e abriu com esse movimento o caminho das águas). O mesmo poeta compelido a deixar Roma, na angústia de separar-se dos que ele ama, impreca os deuses e lamenta não mais contemplar seus tempos: "Numina vicinis habitantia sedibus, inquam, iamque oculis nunquam templa videnda meis... este salutati tempus in omne mihi." (Ó divindades que habitais esses lugares vizinhos e que meus olhos nunca mais verão, eu vos saúdo para todo o sempre.)"
Cícero, da veemente apóstrofe de acusação a Catilina, passa a invocar as divindades protetoras de Roma: "O dii immortales! Ubinam gentium sumus; in qua urbe vivimus?" (Ó deuses imortais, em que terra estamos em que idade vivemos?).
Camões, o poeta maior da língua, após descerrar o grandioso cenário em que se aventuram os portugueses, canta, na 19ª estância do Canto I de "os Lusíadas":
"Já no largo oceano navegavam,
As inquietas ondas aportando,
os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando..."
quando Júpiter, o Tonante, convoca
"... os deuses do Olímpio luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em concílio glorioso
Sobre as cousas futuras do Oriente..." (Lus., 1,20)
não para pedir, mas para determinar
"Com um tom de voz grave e horrendo"
que os audazes navegadores
“... porque, como vistes, têm passados
Na viagem tão ásperos perigos,
Tantos climas e céus experimentados,
Tanto furor dos ventos inimigos
(Que) sejam, determino, agasalhados,
Nesta Costa africana como amigos,
E rondo guarnecida a lassa frota
Tornarão a seguir sua longa rota" (Lus., 1, 29)
Não trepidou o épico genial em entrelaçar o maravilhoso pagão e o maravilhoso cristão, como na estupenda narração da batalha do campo de Ourique, em que Cristo crucificado se mostra ao rei Afonso para o encorajar:
A matutina luz, serena e fria,
As estrelas do Polo já apartava,
Quando na cruz o Filho de Maria
Amostrando-se a Afonso o animava.
Ele adorando quem lhe aparecia,
Na fé todo Inflamado assim gritava:
“Aos infiéis, Senhor, aos infiéis,
E não a mim que creio o que podeis."
(Lus. III, 45)
Na rotina da existência individual ou familiar, como demonstrou Fustel de Coulanges em "La Citê Antique", ou por ocasião de eventos decisivos, o homem, nas sombras da crendice ou na luminosidade da fé, sempre recorreu à divindade.
Na Península Ibérica, invadida e ocupada durante 7 séculos pelos mouros, os inimigos políticos eram também inimigos religiosos, o Alcorão opunha-se ferreamente ao Evangelho, a luta plurissecular da cruz contra a cimitarra tinha deixado marcas indeléveis. A fé profunda alargara o poder temporal da Igreja.
Essas lutas, os dramas que elas suscitaram, ofereceram o amplo quadro onde se desenrola o belo romance de Alexandre Herculano "Eurico, o Presbítero", em que o amor proibido do gardingo e de Hermengarda inspirou as mais ardentes páginas do romantismo português.
O achamento das novas terras, extensas e ignotas, como não podiam aquilatar os descobridores lusos, incendiou-lhes o ânimo e a ambição. Precisavam ocupá-las, colonizá-las.
Na monumental multibiografia "Os jesuítas", o escritor francês Jean Lacouture, retoma os principais episódios da prodigiosa história da companhia de Jesus e dá uma visão da época em que Inácio de Loiola e seus companheiros preparavam seus fundamentos. Escreve o emérito biografo: "Nesse tempo, o universo se torna imenso e o homem primordial. O ano Mil fora dos grandes pavores. A metade do segundo milênio é a estação das grandes esperanças. A terra se infla de espaços novos, a história se retesa até as origens como para saltar melhor em direção ao futuro." (Pág. 10).
O profundo e arraigado sentimento religioso dos reis, dos nobres e da sociedade os incitava à difusão da fé católica, uma das finalidades da colonização. A ordem de Jesus aos discípulos, no instante soleníssimo de ascender aos céus - "Ide e ensinai todas as gentes..." consideravam-na como também a eles dirigida.
Colombo, após contemplar, feliz e fascinado, ao despontar daquela manhã de 12 de outubro de 1492 a ilhota de coral Guanahani (atual Bahamas), desceu à terra com os capitães Martim Pinzon e seu irmão Vicente e, diante da multidão de indígenas completamente nus e pintados com diferentes cores, os três se ajoelharam, beijaram-na com lágrimas de ação de graças e agradeceram a Deus que as recompensava, depois de do longa e estranha viagem. (cf. Marianne Mahn - Lot, Retrato histórico de Cristóvão Colombo, pág 53/54 - Jorge Zahar Editor-Rio)
O navegador registra em seu Diário a preocupação "de que os indígenas se afeiçoassem a nós (pois eu bem sabia que o amor mais do que a força os atrairia para a nossa Santa Fé (.)Op. cit, pág. 54). As expedições descobridoras levavam pela vastidão do mar indevessado o objetivo que o Almirante anotou de encontrar aura, mas também de reconhecer os lugares favoráveis a futuros estabelecimentos cristãos e de preparar o terreno para a evangelização que deseja... (op. cit, pág 57). Escrevendo aos reis de Castela, fala da esperança de que poderia haver nessas regiões um lugar de comércio para toda a cristandade e, principalmente, para a Espanha e que "só bons católicos cristãos (isto é, com exclusão dos conversos) devem poder estabelecer-se aqui, pois o objetivo inicial da empresa sempre foi o crescimento e a glória da religião cristã." (Op. cit., pág. 58).
Os homens de Colombo, porém, e até mesmo um capelão da frota se entregava à cata de ouro e não só não tratavam os índios com amor, como lhes determinara o Almirante, mas lhes infligiam maus tratos, escravizavam-nos, abusavam de suas mulheres e as raptavam como fariam povoadores portugueses nas terras de Santa Cruz.
Em qualquer época da história, as hordas; as legiões, os exércitos, os grupos antepuseram sempre a satisfação do instinto e a cobiça à ordem de seus chefes, insurgindo-se contra os preceitos da religião, da moral e do direito, que alicerçam, organizam e disciplinam a sociedade.
No Regimento de Tomé de Souza, assinado em 1548, primeira constituição com que se regeu o Brasil, declarava D. João III: "A principal causa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente delas se convertesse à fé católica. (Ap. Hélio Viotti, Anchieta, O Apóstolo do Brasil, pág. 77). Já Pero Vaz de Caminha, na carta encomiástica com que noticiava a El Rei a descoberta da Terra de Santo Cruz, dizia que a catequese dos gentios era "o melhor fruto" que se devia colher na nova terra.
Nóbrega, o extraordinário Manoel da Nóbrega, que aliava a visão de administrador à ação de infatigável missionário, registra em carta a Tomé de Souza, datada de 05 de julho de 1559, seu constante propósito 10 anos depois de iniciado o seu trabalho apostólico: "Dois desejos me atormentaram sempre: um, ver os cristãos reformados... e outro, ver disposição no gentio para se lhes pregar. Para isso fui com meus irmãos mandado a esta terra e esta foi a intenção de nosso rei tão cristianíssimo."
A finalidade da ação dos jesuítas "era puramente religiosa, mas de imensa repercussão para o progresso social e, indiretamente ao metros, para a expansão material da colônia, que surgia nesse mesmo momento como novo Estado de constituição e de governo central, por ato de D. João III." (Hélio Viotti, op. cit., pág. 19). O declarado objetivo do poder oficial de ensinar a doutrina aos gentios e fazê-los membros da igreja enredava-se nas dificuldades materiais da ocupação, do povoamento, da colonização. Os colonos para aqui vindos eram, em grande parte, degredados, náufragos, condenados, aventureiros que vislumbravam a liberdade e, em suas mentes rudes, faiscava a miragem do enriquecimento na vastidão destas terras sem fim. Escreve o historiador português Oliveira Martins que o Brasil era "asilo, couto, homizio, garantido a todos as criminosos que aqui quisessem vir morar..."
Anchieta, desde o princípio, considerava os portugueses os maiores entraves à catequese e dizia em uma de suas cartas: "os maiores impedimentos nascem dos portugueses e o primeiro é não haver neles zelo da salvação dos índios, antes os têm por selvagens."
Darcy Ribeiro, recentemente falecido, escreve na obra "O Povo Brasileiro"; "O mundo colonial era boçal, ínvio, ímpio e bruto." (pág. 62). Não surpreende que os colonos, em regiões remotas, sem a vigilância do poder central agissem livremente e tratassem os aborígenes como animais, quando, segundo observa Jean Lacouture, no início desse mesmo século XVI, na Europa da Renascença, bem perto da universidade de Paris," numa praça do Quartier Latin, uma cloaca, no dizer de Erasmo, se realizavam manifestações, trocava-se dinheiro, enforcavam-se os condenados, linchavam-se os bandidos e queimavam-se os hereges." (Os Jesuítas, pág. 54).
As motivações tão diversas dos colonos e dos jesuítas tinham que gerar o conflito que estalou entre eles. O mesmo Darcy Ribeiro, cuja obra de antropólogo e escritor foi exuberantemente festejada, não morria de amores pela ação dos jesuítas, menciona, entretanto, no mesmo livro "O Povo Brasileiro", "a oposição frontal dos povoadores portugueses a um projeto que lhes disputava a mão-de-obra indígena..." como outros autores, anota que "os jesuítas assumiram grandes riscos no resguardo e na defesa dos índios." (Pág 54). Coarctado pela verdade histórica, pela compreensão do espírito da época e do ideal missionário dos discípulos de Loiola, não rechaça a observação mesmo com uma ponta de ironia: "Eram uns santos homens, em sua alienação iluminada, continuaram crendo que cumpriam uma destinação cristã de construtores do reino de Deus no novo mundo, de soldados apostólicos da cristandade universal." (Pág. 58).
Esse conflito que a capacidade diplomática de Nóbrega e a infinita bondade de Anchieta, aliadas à firmeza e à autoridade moral de ambos, conseguiram atenuar, estendeu-se ao século XVII e se traduziu em atos de violência denunciados e verberados pela inigualável eloqüência do jesuíta padre Antônio Vieira, no sermão da Epifania pregado em 1662. Alfredo Bosi focaliza essa contradição: "Como poderia uma instituição (a Igreja), que vivia dentro do Estado monárquico, e à custa dos excedentes deste, desenvolver um projeto social coeso à revelia das forças que dominavam esse mesmo sistema?" (Op. cit., pág. 137).
Nesse panorama eriçado de obstáculos, de lonjuras imensuráveis, de matas densas e impenetráveis, habitadas pelos índios justificadamente desconfiados, arredios e hostis, sem casa, sem roupa, sem ferramentas, sem compreender e sem falar a língua deles, submetidos a muitos trabalhos, frios, fomes, cansaços, jejuns, mortificações, privações e outras mil incomodidades corporais, apoiados tão só no ideal de atrair os brasis para a civilização e para a fé, os jesuítas não foram só catequistas e colonizadores, mas, muito mais do que isso, foram patriotas, heróis e santos. Dentre eles destacou-se, por seus dotes de alma e inteligência excepcional, José de Anchieta, que, durante os 44 anos aqui vividos e trabalhados, foi o homem múltiplo, que deixou sua vida consumir-se num ato só de doação aos indígenas.
Só um ser verdadeiramente extraordinário, cuja debilidade orgânica e falta de meios foram superadas pela miraculosa força interior, que, em casos como este, só pode ser chamada de santidade, como nos exemplos de ontem e de hoje, de São Francisco de Assis, São Vicente de Paula, Madre Tereza de Calcutá e Irmã Dulce dos Alagados da Bahia, conseguiria multiplicar-se, ser tudo para todos e exercer atividades tão díspares, como de catequista, professor, filólogo, construtor, intérprete, enfermeiro, reitor, provincial, historiador, poeta, dramaturgo. “Silvio Romero, com a autoridade de grande crítico e historiador de nossa literatura, considera Anchieta ‘‘o mais antigo vulto de nossa história intelectual.”
Admira-se a capacidade de Anchieta de aproximar-se dos índios, de atraí-los com sua bondade falar-lhes em sua própria língua, desdobrar-se para protegê-los dos abusos, da exploração e dos maus tratos infligidos pelos colonos. O seu labor multiforme foi um milagre de tenuidade, de doação de si mesmo, de amor ao próximo, de altíssima importância para a formação da nacionalidade nascente, oferecendo a sua inteligência e a sua vida para evitar o sacrifício sangrento de dezenas de milhares de índios Tamoios e Tupinambás, aliados aos franceses, em confronto com os portugueses, no episódio histórico de Iperoígue. O historiador Robert Southey classificou a missão de Nóbrega e Anchieta, reféns voluntários dos Tamoios, como "a mais perigosa embaixada de que nunca ninguém se encarregou.”
A aliança de Tamoios e Franceses, sediados em ponto estratégico de nosso litoral, "constituía, escreve o padre Hélio Viotti, terrível ameaça à sobrevivência da colonização lusitana no sul do Brasil" e Podia acarretar mesmo a secessão do país. "A fé e o império periclitavam nesta parte da América portuguesa (Id., op. cit. pág 91). Não é, portanto, exagero afirmar com Jaime dos Santos Neves que "o armistício de Iperoígue foi para o Brasil o maior êxito diplomático de sua história." (A Outra História da Companhia de Jesus, pag 203).
O homem múltiplo, suave no aspecto e no trato, que irradiava e promovia a Paz naquele ambiente de ferocidade, mostrou, mais uma vez, que era habilíssimo pacificador, ao visitar, como Provincial, em 1583, a Capitania do Espírito Santo, onde conseguiu conciliar o povo com o segundo Donatário.
Na vida e na obra de Anchieta, tecidas de caridade e luz, não faltou quem pretendesse enxergar sombras e até desprezo pelo bem do próximo, como no episódio de Jean Coynta, mais conhecido como João de Bolés, urdido pelo preconceito e pelo fanatismo religioso, o qual a verdade histórica esclareceu e pulverizou. Por seu lado, a concepção materialista, incapaz de compreender as motivações do sobrenatural e ávida de vestir as exóticas roupagens de teorias modernas em acontecimentos do passado, censura à ação dos discípulos de Loiola não ter usado, nos séculos XVI e XVII, as práticas da inculturação. Segundo essas opiniões, "Anchieta e seus companheiros, na síntese de Hélio Viotti, são réus do crime de terem interrompido abruptamente uma cultura primitiva, digna de ser preservada." (Op. cit. pág 132). Nessa perspectiva de civilização, ainda hoje poderíamos estar vivendo à moda tapuia, ou dos Tupinambás, - a tal conseqüência leva o sofisma desses opositores.
Os abusos, os excessos, o aprisionamento e a escravização de indignas, postos em prática pelos primeiros povoadores, tangidos pela cobiça, pela singularidade do meio, a inoperância e a omissão da autoridade civil, foram sempre e veementemente profligados pelos jesuítas, atitude que os levou, mais de uma vez, ao confronto com os colonizadores e até à perseguição.
A idéia pré-romântica de Rousseau, no século XVII, de exaltação da natureza e de que o homem, no estado natural, é bom, mas a sociedade corrompe, não foi posta em prática em nenhum lugar, ao contrário, foi até ridicularizada pelos iluministas e pela verve de Voltaire, que troçou do autor do Emile: "Vous me donnez envie de marcher à quatre pattes" (Você me dá vontade de andar de quatro pés). O mito do bom selvagem não prosperou...
“A ação missionária dos jesuítas, de Anchieta, sobretudo, visava a propiciar aos índios os benefícios da civilização, instruí-los na doutrina cristã, integrá-los no grêmio da igreja. Atraíam-nos pela assistência, pela persuasão, pela bondade, ensinando-os a sobrepor-se aos azares da vida solta e nômade.
Castro Alves, no lindo e altissonante poema "Os Jesuítas", fixou o instante de magia e de caridade em que o missionário, à procura do índio, o surpreende no recesso da floresta:
"Um dia a taba do Tupi selvagem
Tocava alarma... em baixo da folhagem
Rangera estranho pé...
O caboclo da rode ao chão saltava,
A seta ervada o arco recurvava...
Estrugia o boré.
E o tacape brandindo, a tribo fera
De um tigre ou de um jaguar ficava à espera
Com gesto ameaçador...
Surgia então no meio do terreiro O padre calmo, santo, sobranceiro,
O plaga do amor.
Quantas vezes então sobre a fogueira,
Aos estalos sombrios da madeira,
Entre o fumo e a luz...
A voz do mártir murmurava ungida;
"Irmãos! Eu vim trazer-vos minha vida...
Vim trazer-vos Jesus!"
Um homem, por mais puro, experiente e santo, está condicionado às práticas e as limitações de seu tempo. O historiador Francisco Iglesias, em entrevista ao suplemento IDÉIAS/LIVROS do Jornal do Brasil, de 18 de Janeiro de 1997, mostra a importância do tempo para a compreensão do fato histórico: "A categoria essencial do conhecimento histórico é a temporariedade. Está voltado para o tempo, assim como geógrafo está voltado para o espaço. O espaço informa a geografia, o tempo informa a história."
É insensato, se não for preconceituoso, exigir dele mais do que lhe permitem as condições de seu tempo e de seu meio. Os jesuítas não poderiam ter feito mais do que fizeram. É necessário imaginar, dentro da perspectiva histórica, como se teria desenvolvido o relacionamento dos primeiros povoadores com os índios, não fora a ação benfazeja dos inacianos.
O papa João Paulo II, no discurso pronunciado por ocasião da visita oficial do presidente Fernando Henrique Cardoso à Santa Fé, em 16 de fevereiro de 1997, ressaltou "um glorioso passado de devotamento à causa de Cristo e da Igreja, e de benemérita ação evangelizadora” e que a Igreja, ontem como hoje, reivindica o “suficiente espaço de ação para desempenhar a sua missão no campo religioso para o bem comum, ao serviço do homem e da mulher, na plena verdade de sua existência, de seu ser pessoal, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social, situado em numerosos ligames, contatos, situações e estruturas que o unem a outros seres da própria terra."
Na encíclica "Redemptoris missio", conceitua a inculturação de que tanto se tem falado: "Inculturar o evangelho significa introduzir os princípios evangélicos nas várias culturas. No caso dos índios, por exemplo, sejam respeitados os autênticos valores humanos, mas não se lhes negue a possibilidade e o direito de auferir os benefícios do autêntico progresso humano alcançados por outras culturas; sobretudo no campo da evangelização, seria desumano e cruel negar-lhes os frutos da Redenção Divina, a pretexto de preservar-lhes a cultura primitiva."
Nenhuma civilização, nenhum governo, nenhum sistema filosófico, nenhum, chefe de família responsável deixa de proclamar e reconhecer os valores da educação e de propiciar às crianças e aos jovens os meios de adquirí-Ia. Com a catequese os jesuítas traziam os índios para a civilização e a fé cristã.
Montesquieu, precursor do espírito filosófico do século XVIII, que tão poderosamente contribuiu para o surgimento da sociedade moderna, externou a sua convicção de que "C' est en cherchant à instruire les hommes que l'on peut pratiquer cate vertu génerale qui comprend l'amour de tous." E particulariza: "Chose adnurablet La religion chrétienne, qui ne semble avoir d'objet que la félicité de l'autre vie, fait encore notre bonheur dans celle-ci.”
O Espírito Santo teve o privilégio de reaver os benefícios da múltipla atividade de Anchieta, (por que não dizer?), de sua preferência, ao escolher a aldeia de Reritiba, atual cidade de Anchieta, como cenário de seus últimos trabalhos, quando sentiu que lhe minguavam forças e cresciam seus padecimentos. Pelas terras do Espírito Santo transitou, pela primeira vez, em 1553, pouco tempo depois de ter chegado ao Brasil. Aqui retorna em 1555, como Visitador, em nome do padre Manoel da Nóbrega. Novel sacerdote, regressa da Bahia, na esquadra de Mem de Sá e aqui reza as missas de Natal, em 1566. Seus olhos de missionário, mas também de poeta, se embeberam nos recortes de nossa bela paisagem, nessas montanhas e baixadas, onde vagavam as tribos ainda assombradas com a presenças tantas vezes hostil dos povoadores, índios que eram a preocupação de seu missionário: "com eles, declarou; me dou melhor do que com as portugueses, porque aqueles vim buscar ao Brasil, e não a estes."
Durante 20 anos, de 1577 até sua morte, em 1597, desde sua nomeação para prepósito da Província do Brasil, não mais se interrompe a sua ação sobre a Capitania do Espírito Santo. De 1588 a 1592, por 5 anos, é Superior em Vitória, onde, segundo o excelente Hélio Viotti, "se reproduz o espetáculo outrora contemplado em São Vicente. É o pai dos índios e dos portugueses. Catequista incansável. Pregador zeloso. Conselheiro dos governantes Consolador dos que sofrem, a quem todos recorrem para as necessidades da alma e do corpo. Dessa época são algumas de suas cartas de mais rica substância espiritual Desse mesmo tempo, muitas de suas composições literárias em tupi, português e espanhol, para a instrução sobretudo dos nichos das aldeias." (Op. cit., pág. 216).
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Decorridos 444 anos que a Terra de Santa Cruz teve a aventura de receber José de Anchieta, cuja obra admirável, heróica e santa o Brasil inteiro e, em especial, o Estado do Espírito Santo rememoram e enaltecem, por ocasião do 4° centenário de sua morte, na expectativa de que o beato Anchieta seja proclamado Santo Anchieta, nas luzes dos altares e no reconhecimento dos brasileiros, compreendemos e repetimos o brado sincero e espontâneo do índio de Iperoígue: "Ele é mais do que homem" com verdade histórica, justiça e força poética, Jaime dos Santos Neves escreveu essa bela síntese, que é o julgamento da posteridade sobre a obra de Anchieta e de seus companheiros: “...não ele apenas, mas todos eles, os jesuítas que vieram ao Brasil eram mais que homens, mais que santos, pois, tão humildes, tão poucos e tão sós (sobre um escombro de vidas), esticaram horizontes, construíram uma pátria, inauguraram uma época." (Op cit., pág. 259)
No "Jardim d'Épicure" Anatole France, para simbolizar a imortalidade das obras de arte, como a Ilíada e a Odisséia e os monumentos da arquitetura helênica, imagina, em página de singular e amarga beleza, o fim da espécie humana, quando a terra submetida a temperaturas de um frio intensíssimo e de secura extrema, não mais tiver condição de comportar sobre o seu dorso a vida humana, quando o último homem exalar o seu derradeiro suspiro, o planeta continuará a rolar, levando através dos espaços silenciosos as cinzas da humanidade, os poemas de Homero, e os restos augustos dos mármores gregos, presos a seus flancos gelados.
Ouso dizer que, mais perenes e mais belos são os atos de devotamento e de amor ao próximo, a lição de cordura, de desapego próprio e de entrega a um ideal, como os de Anchieta.
A mais alta homenagem aos santos e aos grandes vultos da nacionalidade é, certamente com infinita distância, imitar-lhes os exemplos. Cada época tem os seus desafios à inteligência e à ação dos que trabalham para o bem da humanidade. Rubem Braga, na crônica em que fala sobre a dispersão dos despojos do Apóstolo do Brasil, lembra a perene lição de sua vida: "A relíquia verdadeira é o espírito de Anchieta, trilhando os caminhos humildes da terra do Brasil, ajudando seu país a acontecer."
Vitória-ES, 21 de março de 1997.
Autor: Aylton Rocha Bermudes (Da Academia Espírito Santense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo)
Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do ES - nº 49, 1997
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2014
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