Morro do Moreno: Desde 1535
Site: Divulgando desde 2000 a Cultura e História Capixaba

Folclore, cinema e teatro - Por Luiz Buaiz com texto de Sandra Medeiros

O Carlos Gomes recebe Procópio Ferreira

Num tempo em que os homens se barbeavam com navalha e as mulheres usavam meia de seda e cinta-liga, a capital se alegrava com fatos e pessoas sui generis. Entre os anos 30 e 60, figuras folclóricas marcaram a vida de Vitória, e ainda hoje povoam o imaginário. Mané Cocô, Rainha das Flores, Meio-Fio, Maria Tomba Homem, Aurora Gorda, Otinho, Manoel Diabo, Américo Rosa...

Luiz Buaiz lembra-se muito bem de todos eles e de suas histórias. Às vezes histórias tristes, às vezes engraçadas, outras vezes apenas curiosas.

De Rainha das Flores, ele recorda, o que se sabia é que era filha de família conhecida, tradicional na ilha. Uma mulher elegante que foi perdendo o juízo, mas não chegou a ser confinada junto com os alienados que iam para o asilo de Cachoeiro. Apenas andava pelas ruas da cidade, sem horário e sem lugar certo, numa época em que as mulheres eram muito reservadas. Vestia-se elegantemente, mas aos poucos foi carregando no uso do pó-de-arroz e acrescentando, ao vestido branco e à sombrinha que compunham a toillete, mais e mais flores, traduzindo alguma coisa de errado em sua mente.

As especulações sobre a causa de sua loucura foram muitas: do noivado terminado pela imposição da família ao amor platônico por um rapaz de classe social diferente. Ninguém se lembra, nem mesmo Luiz Buaiz, com sua memória prodigiosa, do fim de Rainha das Flores.

Luiz conta, em tom de piedade, a história de Mané Cocô, que é narrada do mesmo jeito por outros contemporâneos. Ninguém tem dúvida de que foi uma das vítimas de um período em que a infraestrutura da cidade era precária, o saneamento difícil e o serviço de águas e esgotos inexistente. Os dejetos humanos não eram lançados nas ruas, como na Idade Média europeia, quando era preciso muitas vezes recorrer a andas – pernas de pau – para sair de casa ou passar por vielas. Os dejetos, aqui, eram transportados em barricas e lançados ao mar. Acontece que as barricas tinham resistência limitada. Com o uso se desgastavam e aconteciam acidentes, como o que vitimou Manoel: o fundo da barrica se rompeu e o conteúdo se espalhou sobre ele.

Isso só iria mudar com a subida de Jerônimo Monteiro ao poder. O seu governo foi tão bem sucedido, como lembra Maria Lindenberg, contemporânea e amiga de Luiz Buaiz, que as pessoas levantavam as mãos aos céus pedindo pela sua saúde. Maria Lindenberg diz que em sua família os adultos se perguntavam como ele conseguira fazer tantas coisas, e em tão pouco tempo, numa época em que tudo era tão difícil. Uma possível explicação é o grande prestígio que tinha na Capital Federal, no Governo central, além do seu próprio prestígio político no Espírito Santo. Quando Jerônimo Monteiro ia deixar o Governo uma multidão foi às ruas, e reuniu-se no Cais do Imperador para pedir por sua permanência.

Meio-Fio era elegante, estava sempre de paletó e gravata, bengala e fumando cigarro com piteira. Sistemático, ele só andava na beirada da calçada, no meio-fio, daí o apelido.

Maria Tomba Homem e Aurora Gorda foram personagens de um mundo estritamente masculino. Ambas sobreviviam da prostituição e estiveram sob vigilância do serviço médico comandado por Buaiz. Uma na Ilha do Príncipe, a outra em Caratoíra. Da primeira diz-se que era preta e tinha grande força física. Da segunda que, além de muito gorda, era loura e dona de invejável patrimônio pecuniário. De certo, uma coisa: ninguém se atrevia a mexer com nenhuma das duas.

Maria Tomba Homem gerenciava uma casa muito freqüentada. Aurora Gorda era de família conhecida, prima de um importante político capixaba, Eurico Rezende, que foi governador e senador da República, e gostava de conforto e ostentação. Quando comprou carro, escolheu um vistoso Ford Landau. Tinha choffeur e, conta-se, desfilava com uma minitelevisão instalada no lugar do rádio do carro.

Luiz Buaiz conta, aos risos, um episódio constrangedor, que lhe marcou a memória: um dia um conhecido passa por ele e diz: “Dr. Luiz, acabei de ver sua mãe, Dona Maria, passando de carro na Jerônimo Monteiro...” Não era Dona Maria, sua mãe. Esta estava em casa, de onde ele acabara de sair. Por coincidência, Dona Maria estava acima do peso e tinha um carro igualzinho ao de Aurora Gorda, o Ford Landau verde visto pelo seu amigo.

Mané Cocô, Rainha das Flores, Maria Tomba Homem e Aurora Gorda são do tempo do Bonde Circular subindo a Rua 7 – antiga Rua da Várzea – até a Convertedora (dizia-se Convertidora). Manoel Diabo, Otinho e Américo Rosa, como Luiz Buaiz, viram a transformação que tirou o bonde do Centro e de Vitória inteira, substituindo os trilhos por paralelepípedos ou, em alguns lugares, por asfalto.

Otinho era jornalista e poeta. Foi assim até perder o juízo. Perambulava pelas ruas declamando poemas para sua musa, Rosa. Ninguém que tenha vivido os anos 50, 60 e início dos 70 pode dizer que não conheceu Otinho, de quem Buaiz tem vívida e carinhosa lembrança.

O atlético, simpático, alto e louro Manoel Diabo era conhecido num círculo mais restrito, em que todos comentavam o seu noivado interminável, num tempo em que ou a moça noivava e em seguida se casava; ou noivava e o casamento era desfeito, ainda que à frente do altar. No caso de Manoel Diabo, não. Ele era fiel e cavalheiro, mas casar, não.

Américo Rosa, muito franzino, escuro, simpático e irritante, subia e descia a Rua 7, todos os dias, a toda hora, com a mão direita fechada e encostada ao ouvido, como se segurasse um rádio, cantando “Os peixinhos do mar/ vêm na areia sambar/ ontem eu fui a um baile/ na Praia de Itamaracá/ uma lagosta sapeca/ vinha tocando rabeca/ com os peixinhos do mar/ que vinham na areia sambar...” A meninada não perdia tempo: corria atrás de Américo, que parava e revidava com um bom número de palavras impublicáveis.

O célebre incêndio que destruiu parte da oficina de O Diário, jornal que ficava bem próximo à subida do Morro da Fonte Grande, é atribuído a Américo Rosa. Ele, volta e meia, ajudava um dos linotipistas da casa, Dequinha, a caçar gatos: era um tempo em que alguns moradores do morro próximo se divertiam fazendo, literalmente, churrasco de gato. A suposição é que Américo foi preparar o prato sozinho, de madrugada, e não conseguiu controlar o fogo.

Manoel Diabo, Otinho e Américo Rosa estavam sempre pela Rua 7, Britz Bar e Teatro Carlos Gomes. Manoel Diabo, porque morava na Rua 7, no Edifício Manhães, e ao buscar a sua eterna noiva, Doris Marshall, na Aristides Freire, para ir ao Britz (bar de Antônio Parú, que ficava atrás da Prefeitura, entre a Gama Rosa e a Rua 7), às vezes estendia a caminhada até a porta do Carlos Gomes. Otinho, porque andava principalmente nesse circuito, frequentado por intelectuais e jornalistas. E Américo, porque, apesar de alienado, era contínuo do jornal O Diário, com redação e oficina instaladas no alto da Rua 7, e fazia diariamente o trajeto dali até a direção do jornal, logo na Graciano Neves, bem perto da Praça Costa Pereira, onde está o teatro.

Teatro hoje, em Vitória, dos velhos tempos, existem apenas dois: o Carlos Gomes e o Glória, este desativado para restauração. Mas antes havia o Melpômene. A história do Melpômene confirma uma das queixas de Luiz Buaiz, de que é grande a proporção de coisas que têm perdido qualidade, ao longo dos anos.

O mitológico e monumental Melpômene funcionou durante 26 anos e acabou pouco mais de dois anos após o nascimento de Luiz Buaiz. O belo teatro, projetado pelo arquiteto italiano Felipe Santoro, exigiu apenas dois anos para ficar pronto. Começou a ser erguido em 1895, ano em que Santoro foi condecorado Cavaleiro da Coroa pelo Rei Humberto I, da Itália, e em 1896 já estava funcionando.

Para construir o Melpômene foi preciso demolir a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e ocupar quase todo o largo em que esta ficava. Com 1.200 lugares, todo construído com pinho-de-riga importado da Suécia, terminou com um incêndio que destruiu parte da estrutura da casa. Ficou três anos interditado, depois foi demolido.

O Melpômene era uma casa tão prestigiada que em 1922 o governo municipal contratou um profissional de São Paulo, o compositor e pianista José Aimberê de Almeida, para lá atuar. Ele veio para dirigir a orquestra do teatro. Não pôde fazer muito entre os capixabas, porque 22 dias depois de sua posse aconteceria o incêndio destruidor.

Aimberê, que quando chegou a Vitória estava começando carreira como pianista, ganhou vulto nacional. Escreveria roteiros para revistas de teatro, sambas e toadas. Seria parceiro de Pixinguinha e Lamartine Babo. E teria composições gravadas por Francisco Alves, Aracy de Almeida e Sílvio Caldas (que Luiz Buaiz tanto admira), nas gravadoras que disputavam os artistas de então: a Parlophon, a Odeon, a RCA Victor e a Columbia.

Santoro, que projetou o Melpômene, faria mais, no Espírito Santo: iniciou a construção do Hospital da Praia do Suá, o Hospital São Pedro ou Hospital dos Pescadores, ainda de pé, mas como Posto de Atendimento municipal; construiu a Estrada de Ferro Sul; e concluiu o Quartel da Polícia Militar. Aqui, chegou a Diretor-Geral das Obras Públicas e Empreendimentos Gerais.

O teatro que sucedeu o Melpômene foi o Carlos Gomes, inaugurado em 1927, seis anos depois do nascimento de Luiz Buaiz. O Carlos Gomes não foi construído exatamente onde ficava o Melpômene, mas um pouco mais à direita. No lugar exato do Melpômene seria construído o Hotel Canaan, prédio que depois viria a ser a sede do INPS, hoje INSS e na Avenida Beira-Mar.

O Carlos Gomes foi projetado por André Carloni, em estilo neorenascentista, e inspirado no Teatro Alla Scala, de Milão, Itália. Carloni era italiano, mas viveu a maior parte de sua vida em Vitória. Além de construtor, foi o primeiro administrador do Carlos Gomes. A estreia da casa aconteceu com a peça Verde e Amarelo, de José do Patrocínio e Ruy Pavão. Os atores eram da Companhia de Revista Tam-Tam. Repercutiu muito, mas iniciava um curto período – dois anos – que logo daria lugar a outro, de maior modernidade, como cinema.

Em 1929 o Carlos Gomes foi arrendado por uma empresa particular, a Santos & Cia., e passou a exibir filmes. Peças, esporadicamente. Só nos anos 50 deixaria o cinema e voltaria a receber companhias de teatro, como as de Procópio Ferreira, Eva Tudor e Flodoaldo Viana.

Muitos saraus de piano e de poesia aconteciam no Carlos Gomes: Áurea Adnet e Edith Bulhões foram pianistas que marcaram época nos seus palcos. As declamações de Maria Filina Salles de Sá de Miranda também enchiam a casa. Maria Filina fez um sucesso imenso: a fina flor da sociedade local queria ver suas filhas provocando igual comoção e foram muitas as moças que, em suas aulas, se apaixonaram pela poesia e participaram de audições. A maioria delas, registre-se, apenas até o instante do casamento.

Áurea Adnet, de tradicional família de pianistas, além de concertista, foi professora da Escola de Música. Edith Bulhões veio do Rio para Vitória e, concertista de sucesso, construiria um teatro, já nos anos 80, que recebeu o seu nome. O teatro ficava na Avenida Beira-Mar, próximo ao Ginásio Dom Bosco, e hoje está desativado.

Em 1931 foi inaugurado o Cine-Teatro Glória, da firma Santos & Companhia. Não foi projetado por italianos, mas pelo arquiteto alemão Ricardo Wright. Com sacadas, balaústres e cúpula, o prédio foi construído com concreto armado feito com cimento inglês e brita local. A edificação teve acabamento não com emboço de areia, mas de pó de pedra. Os fundos do Glória, construído no lugar onde funcionou o Éden Parque, davam para o mar. Não existia ainda a Avenida Princesa Isabel. O Glória, palco de encenação de peças, exibição de filmes e vernissages de festivais de cinema, já recebeu Fernanda Montenegro e outros grandes nomes. Breve abrigará um centro cultural.

 

PRODUÇÃO

 

Copyright by © Luiz Buaiz – 2012

 

Coordenação do Projeto: Angela Buaiz

 

Captação de Recursos: ABZ Projetos

 

Texto e Edição: Sandra Medeiros

 

Colaboraram nas entrevistas:

Leonardo Quarto

Angela Buaiz

Ruth Vieira Gabriel

 

Revisão: Herbert Farias

 

Projeto e Edição Gráfica: Sandra Medeiros

 

Editoração Eletrônica: Rafael Teixeira e Sandra Medeiros

 

Digitalização: Shan Med

 

Tratamento de Imagens: TrioStudio; Shan Med

 

 

Fonte: Luiz Buaiz, biografia de um homem incomum – Vitória, ES – 2012.
Autora: Sandra Medeiros
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2020

Folclore e Lendas Capixabas

O Chafariz da Capixaba – Por Adelpho Monjardim

O Chafariz da Capixaba – Por Adelpho Monjardim

Quem a bebe não mais deixa Vitória. Quantas mocinhas casadoiras lançaram mão dela? Que digam os mineiros

Pesquisa

Facebook

Leia Mais

O Frade e a Freira - A Lenda por Estêvão Zizzi

Essa é a versão mais próxima da realidade...

Ver Artigo
O Caparaó e a lenda – Por Adelpho Monjardim

Como judiciosamente observou Funchal Garcia, a realidade vem sempre acabar “com o que existe de melhor na nossa vida: a fantasia”

Ver Artigo
A Igreja de São Tiago e a lenda do tesouro dos Jesuítas

Um edifício como o Palácio Anchieta devia apresentar-se cheio de lendas, com os fantasmas dos jesuítas passeando à meia-noite pelos corredores

Ver Artigo
Alcunhas e Apelidos - Os 10 mais conhecidos de origem capixaba

Edifício Nicoletti. É um prédio que fica na Avenida Jerônimo Monteiro, em Vitória. Aparenta uma fachada de três andares mas na realidade tem apenas dois. O último é falso e ...

Ver Artigo
A Academia de Seu Antenor - Por Nelson Abel de Almeida

Era a firma Antenor Guimarães a que explorava, em geral, esse comércio de transporte aqui nesta santa terrinha

Ver Artigo