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Na borda do infinito – Por Luiz Carlos Almeida Lima

Bar Scandinave - Fonte: Memória Capixaba, Fábio Pirajá no FB

à samira challub

 

... absolutamente sem inspiração.., um homem que nunca percebeu a linha do horizonte... ou incorporou a reta no corpo dos olhos e fez dela sua linha-mestra... um quase homem linear que circundava em perpendiculares... não que a geografia não ajudasse... muito pelo contrário: a cidade era uma ilha, um porto, montanhas... a trajetória se repetia no circuito casa-trabalho... todo o dia o pé no acelerador acompanhando as paralelas no asfalto e, de repente, o mar... ponto de exclamação... flerte do azul e do verde... filho bastardo deixado ao largo, o olhar de esguelha... mas, apesar dele, a imensidão explodia frente à íris um universo de águas... um estupor contido pelas curvas da cidade... a areia, o lodo, a maresia... tanta luz cegava e reafirmava a máxima que a luz se propaga em linha reta... autômato, absolutamente não percebia outras óticas e continuava a percorrer seu caminho (sinuoso, como as mulheres)... e de olhos abertos não enxergava: entreolhava... há lugares de sentir inabitados pelos homens (mulheres bandeirantes) ou, se muito entrevistos na, essa sim, eterna repetição... e seguia equilibrando-se na linha, na borda, até... até que uma gota a mais precipitasse um maremoto que, de quando em vez, fazia estragos: o desejo... o pleno que tão tem lugar para a morte (ou para a precisão do freio no ponto ato da tangência das curvas)... então, abdicava, tudo virava névoa, redemoinho, abismo que despencava... de uma maneira que não sabia, sabendo... bebia num bar... SCANDINAVE... outro porto, outra terra a proteger caravelas... preso como âncora no lodaçal. o tempo, a paralela no horizonte fazia curva (descansava) e avançava até as hipérboles de Copérnico pontuando o ar... um ar de mulheres... mulheres de casco de navio (melhor dizer os nomes, repetir, repetir, repetir mil vezes a beleza dos nomes, até retirar-lhes todo o ranço, todo o pejo), prostitutas, putas, piranhas... à procura de picas, pênis, paus (aprendizado da língua do "p": partes da paixão)... esses peixes devoradores do cais impregnados pela lassidão, perfume barato, orgulho do sexo e pela modéstia da miséria... ele, o homem que não percebia a linha do horizonte, olhava-as de lado (os iguais se reconhecem de perfil) e iniciava o mais velho jogo do mundo... encaixe de curvas e retas em MONDRIAN... o risco da lua, a linha do mar: a confiança da isca certeira... elas sempre vinham sem asas, moscas envoltas pela fumaça dos cigarros no ritual da bebida, da ardência, calores e suores... babel de línguas do porto (pouco faladas, muito insinuadas) por marinheiros velhos de terra... o resto (juke-box), um rápido lero-lero, se resumia numa operação contábil, cifrões (o s do sujeito barrado duas vezes).., a madrugada ajudava a não revelar os gatos e o mar, acreditava, não tinha fim... embriagava-se e largava-se, ou alargava-se, no desejo... mas num afã queria tudo, e queria (principalmente) que tudo tivesse a brevidade de um clarão, relâmpago sem trovão... só que as águas das mulheres têm outro ritmo.., e por maior controle maior o descontrole... na verdade tinha nojo daquela cena de lua na sarjeta... ansiava pelo prazer, pelo gozo, cru, rápido e selvagem... sem meandros e melindres.., nessa hora, porém, não mais pensava... já arremessara todas as setas e elas voltavam na forma de mulheres-bumerangues (a maré alta, a praia ao longe, as ondas no vai e vem)... o roteiro seguia a forma do papel retangular (aspirar, expirar, inspirar) e seus olhos, boca, nariz, garganta tinham sede e a sede precisava ser saciada... um aceno, uma sereia sobe à tona num navio de quatro rodas... te(n)são de forças opostas... cruzam-se hemisférios ao mapear-se constelações, as sombras da noite estabelecem o marco zero... acelera-se... repete-se o percurso, ao contrário, as paralelas do asfalto refletem a ilusão do plural (par: uma vontade de não estar só — a paridade no sonho de um novo horizonte), do encontro, comunhão, acasalamento... e vai-se na infinda luta de esticar a corda, chegar a seu extremo (queremos tanto, precisamos de tão pouco... pobres de nós, seres de superfície: viciados na reiteração imagética do impossível, da divisão insolúvel, da testa (texto?) batendo na parede)... mas o carro seguia pontuando a orla na busca do refúgio, da gruta, fenda (o relógio parado, a brisa, o vento)... adrenalina... o oração batia descompassado... no contraponto o ato mudo do tato, do contato (pra que palavras se existem outras sonoridades pra coroar esse mergulho?) ativando vagalumes cerebrais: circunvoluções, reentrâncias, cavernas, trilhas desvirginadas, lampejos, hastes, halos de luz (céu e estrelas em outras órbitas)... vai-se às alturas, acachapa-se na terra e toda Via Láctea se apaga, nenhuma luz permanece (ponto de fuga)... o resto poderia ser lacunar, vazio, mas a vocação ao tango (samba-canção) falava mais alto na melodia da baixaria: taxa fixa, livre câmbio, concorrência pura ou monopólio, cifrões a mais, a menos (o mercado não se entende, "laissez-faire"), vale a lei do mais forte: bofetadas, arranhões, gritos, empurrões, porta batendo, sereia voltando ao mar, o pé no acelerador... solidão: ele e o mar esbarrando-se nas sombras, ele e a linha do horizonte que não percebia... ele e os outros olhos das águas que sequer entrevia: amigas, amantes, amadas (ah, amor)... tudo vinha à tona na pulsão que brotava da terra acelerando seu corpo de encontro ao mar: num átimo freou o carro... o mundo dava voltas, a cabeça pesava, o nó na garganta acentuava o mal estar: a boca escarrou o vômito como um tumor expelindo pus... a mureta traçava a linha divisória entre a terra e o mar, as luzes dos postes esvaneciam numa antecipada renúncia da luta com o sol... o homem que não percebia a linha do horizonte foi cambaleante até a mureta, aproximou-se fixando um ponto distante (talvez um porto)... "as imagens retinianas produzem excitações isoladas", relembrou ao acaso... e, num ímpeto, galgou a mureta, equilibrou-se numa linha invisível, de pé... olhava as nuvens rubras do alvorecer numa quase primeiridade... séculos nos segundos encarando uma baía insuspeitada: um gladiador na arena prestes a enfrentar leões... a água chamava... chamava... convite ancestral quase irrecusável, feito de círculos concêntricos numa voz que iludia a visão... boca enorme, o muro circundando a ilha tendo ao fundo um solitário monte: PENEDO... e a cabeça girando em interrogação (se eu não conseguir voar eu grito por quem?)... apagava os olhos... pra que tudo afinal?... por que, apesar de todo o som da cidade esse silêncio de águas?... o pé ante pé... o antes e o após... o infinito presente... à beira de... na borda... um momento epifânico: quase urrou... um macaco pré-histórico de olhos cerrados cheios d'água: lágrimas jorravam... ergueu os braços como um ícaro mas, num relance, percebeu a linha do horizonte, a linha curva do horizonte, e parou o salto (recusa do chamamento das águas), mantendo o estigma: um homem não cai de joelhos, de quatro... um homem só cai de pé.

 

(maré baixa, o porto alvorecia)

 

Fonte: Escritos de Vitória, 5 - Porto, 1994
Autor: Luiz Carlos Almeida Lima
Nascido em Vitória (ES)
Poeta e Dramaturgo
Autor do livro de poesia A Companhia das Palavras e da peça teatral O Monstro Mais Monstruosamente Monstro do Mundo.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2020

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