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O Nosso Orgulho Maior - Por Mário Gurgel

Médico Schariff Moyses

Marcado o dia da operação da nossa menina de apenas seis anos, depois de andarmos peregrinando pelos consultórios de quase todos os especialistas do Rio, em busca de uma esperança e de uma negativa, fomos levá-la, nós e a mãe dela, ao quarto de uma enfermaria na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. A pobre criança cantava baixinho uma música indefinível e cheia de estranha melancolia. Via todas as vitrines, olhava todas as pessoas, perguntava todas as coisas, lascava-nos o coração aos poucos, dois duendes, caminhando como sonâmbulos nas ruas agitadas do povo, no meio da multidão que falava e sorria, que trocava cumprimentos alegres e festivos. Nunca a euforia dos outros nos soou tão injusta, jamais aos nossos ouvidos acostumados a tantas invectivas, disciplinados ante tantos doestos, nunca a vibração alheia nos feriu tanto e tão profundamente.

A pobre criatura que ia entregar sua filhinha às incertezas da intervenção cirúrgica, macerada pela dor, estrangulada pela indecisão, arrastava-se pelas ruas da cidade mais bela do mundo, como um ser insensível e inquieto. Quando nos despedimos da garota, esquisitamente tristonha, a mãe desatou num pranto de desalento, cá fora, que mortificava e endoidecia. — Alguns minutos antes da despedida o médico trouxera uma espécie de autorização para se assinada por nós, tirando a responsabilidade dos operadores, por qualquer insucesso ou surpresa advindas, de fatores inesperados. A princípio recusamos e reclamamos a devolução da criança. Advertidos pelos presentes de nossa impropriedade de comportamento, serenamos e atendemos à solicitação hospitalar.

Na manhã seguinte, sem termos ainda pregado os olhos, batemos à porta da instituição hospitalar antes da hora marcada. Já se haviam iniciado os preparativos para a melindrosa atividade e foi proibida a nossa entrada. Soubemos pelas enfermeiras que a menina sempre gentil recebera a anestesia com espontaneidade, avisando aos preparadores que, se era para dormir ela já estava pronta... Detalhes emocionais nos desolaram. Foi permitida a sua entrada já inconsciente, com uma mimosa fita nos cabelos, o que não era comum. O médico dissera, talvez um tanto comovido "— Deixe a fita". E a maca deslizou pelo ladrilho claro, conduzindo a pequena inanimada rumo ao desconhecido.

Marcelo Aboudib Camargo e Schariff Moisés, estudantes capixabas, estavam na equipe que o Dr. Jesse Pandolpho Teixeira conduzira para a sala de operação. Nós sabíamos, pelos doentes, que eles vinham quase todas as noites, revezando-se no plantão voluntário; deixando as diversões, os repousos e os livros, para estarem perto dos enfermos. Nossa menina, entre todos, pelas razões talvez fortes de sermos todos amigos e de amarmos a sua gente, de devermos tantas finezas e tantas obrigações sem preço, talvez por tudo, era ela a mais visitada pelos dois rapazes. Pelos meninos que nós víramos ainda ontem andando pelo ginásio, marchando nas paradas, jogando bola pelos campos improvisados das ruas perigosas, numa cidade como Vitória, que não reconhece direito algum em qualquer criança para os folguedos próprios de sua idade. Foram eles dois, passadas quatro horas, que assomaram na parede de vidro, para fazerem o gesto típico de braços cruzando-se para o alto na frente do corpo, a dizer que tudo tinha corrido bem.

São esses dois meninos, homens agora, médicos cuja responsabilidade e cuja competência acabam de submeter aos testes mais exigentes, no coração da América, entre sumidades arrebanhadas nos quatro cantos do globo, são eles, que dentro em breve estarão dirigindo e trabalhando nos serviços especializados de Cardiologia no Hospital Infantil de Vitória... Nós nos alegramos pelo progresso que os homens públicos trazem a sua terra, instalando uma providência das mais reclamadas pela ciência em favor da salvação pública, no campo da assistência a Criança.

Os que patrocinaram, os que reclamaram, os que insistiram nesse sentido, constituem motivo de alegria e tranquilidade para os seus conterrâneos. A presença deles, contudo, na direção desse trabalho, constitui o nosso orgulho maior ...

(1965)

 

Nota do Site: Não conseguimos uma imagem do Dr Marcelo Aboudib Camargo. Quem tiver, favor enviá-la para: https://www.facebook.com/MorrodoMoreno/

 

Fonte: Crônicas de Vitória - 1991
Autor: Mário Gurgel
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2019

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