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O Rio Doce – A Nova Colônia – A Lagoa Juparanã - Por Saint-Hilaire

A capela de Nossa Senhora da Conceição, (Igrejinha Velha), foi erguida em 1888, no mesmo local onde 1857 havia sido erguida a primeira igreja de Linhares

O Príncipe de Neuwied estima que o Rio Doce, pouco antes de se reunir ao mar, tem, durante a estação das chuvas, o dobro da largura do Reno, nos locais em que este mais se estende. Um banco de areia se alonga obliquamente, diante da embocadura do Rio Doce. O canal pelo qual suas águas se lançam no Oceano muda muitas vezes de lugar, mas, só é formado na parte sul do banco de areia; tem cerca de duas braças de largura e nunca mais de 5 a 6 pés de profundidade. Mesmo nas marés altas ou na estação das águas, apenas permite a entrada de pequenas embarcações. Numa distância de 22 léguas, da foz até o Riu Guandú, barcos de fundo chato podem subir o rio, navegando à vela; nesta mesma extensão, sua largura mais comum é de 1/4 de légua a 11/2, mas, seu leito, obstruído pelos resíduos das "lavagens" da Província de Minas, tem pouca profundidade, sobretudo no tempo da seca. Um pouco antes do Rio Guandú acha-se o posto militar chamado Posto do Sousa, o último pertencente à Província do Espírito Santo. Além desse ponto e até à confluência do Guandú, o Rio Doce, muito estreito, corre com violência e apenas pode ser vencido com a ajuda de reboque de terra.

Este Rio Guandú nasce na montanha chamada Serra da Costa; e, do lado do sul, lança-se no Rio Doce, servindo, com a Ilha da Esperança, de limite entre o Espírito Santo e Minas Gerais.

Acima do Guandú começam as famosas Escadinhas. É uma série de rápidos e de pequenas cascatas que estorvam completamente a navegação do rio. Prolongam-se numa extensão de 3/4 de légua. Diz-se que seria fácil fazer um canal lateral do lado do sul. Do mesmo lado e mais acima que as Escadinhas, se acha a confluência do Moemaçu ou Manhuaçu, que nasce nas montanhas desertas do Itapemirim, tão abundantes, dizem, em ouro em pó quanto as de Vila Rica, outrora o foram.

O senhor d'Eschwege julga que a diferença de nível entre o Oceano e um ponto tomado 10 léguas acima das Escadinhas seria de 1.165 pés ingleses, o que daria, em termo médio, uma queda de 28 pés por légua. Cinco léguas além do Manhuaçu estão os rápidos chamados Cachoeira do Inferno, que só deixam os barcos subirem com o auxílio de reboque de terra. Num espaço de 10 a 12 léguas, a navegação é ainda dificultada por pedras isoladas, mas, com um pouco de trabalho, poder-se-ia torná-la menos difícil. Mais acima acham-se os rápidos de Eme; devem eles seu nome às rochas que, formando no rio 3 ângulos agudos, apresentam, aproximadamente, a figura de um M; não se poderia fazê-las desaparecer sem muito trabalho. Entre o Eme e a confluência do Rio Cuiaté ou Cuité, que une suas águas às do Rio Doce, vindo do sul, existem também, numa média de 6 léguas, umas rochas de fácil destruição. Subindo sempre o rio, encontram-se, a 3 léguas de Cuiaté, os rápidos chamados Cachoeirinha, onde a navegação, ainda uma vez obstruída, poderia tornar-se fácil com certo trabalho. É de notar que desse lugar até o Oceano, nenhum rio vem do norte juntar suas águas às do Rio Doce. A três léguas de Cachoeirinha encontram-se os rápidos de Ibiturunas; eles não interrompem os canoeiros no tempo das enchentes, mas, nas secas, trazem alguns obstáculos. Subindo de Ibiturunas à confluência do Rio de Antônio Dias ou Santa Bárbara, distante 22 léguas, acham-se as cachoeiras dos Maguaris e Escura que apresentam muitas dificuldades e que os barcos só atravessarão com meios mecânicos.

Nessa extensão de 22 léguas, de que acabo de falar, é que as ribeiras chamadas Sussuí pequeno, Sussuí grande, Corrente e Santo Antônio se reúnem ao Rio Doce; vêm do norte, sendo navegáveis em parte de seu curso, e poderiam ser muito úteis à Comarca do Serro Frio, cujos campos fertilizam. Nove léguas acima da confluência do Rio Santa Bárbara acha-se Antônio Dias, a primeira vila da Província de Minas Gerais que se situa à margem do Rio. Esse intervalo de 9 léguas não ofereceria obstáculo algum à navegação se não fosse ainda o lugar chamado Cachoeirinha, onde bastaria romper um rochedo chato para dar passagem aos barcos. Calcula-se que, de Antônio Dias até o mar, o rio, que descreve muitas sinuosidades tenha um curso de cerca de 90 léguas; crê-se, contudo, que seria apenas de 40 léguas em linha reta.

Acima de Antônio Dias, o Rio Doce recebe as águas do Percicaba, que vi em São Miguel de Mato Dentro e cuja embocadura forma o limite da comarca de Sabará.

Disseram-me que, não obstante os obstáculos que muitas vezes retardam os canoeiros, pode-se, com pirogas, ir em 8 dias da foz do Percicaba ao oceano. Mais acima do Percicaba acha-se a confluência do Rio Bombassa, e ainda mais acima, a do Gualachos. Depois de receber as águas destes últimos é que o Rio Doce deixa a direção norte e nordeste, que vinha seguindo até então, e toma a de leste. Acima do Gualachos, as águas do Piranga se unem às suas e então ele toma o nome de Rio Doce, que conserva até o mar. Em Mariana, ele recebe o nome de Ribeirão do Carmo e em Vila Rica, quer dizer, algumas léguas mais acima, tinha o de Ribeirão do Ouro Preto. Aí, é apenas um riacho insignificante subdividido sem cessar pelos mineradores e, se seguirmos suas margens, chegaremos à sua nascente que se acha nas montanhas vizinhas da Capital de Minas Gerais. Quando nenhum filho de europeu habitava ainda o interior das terras e tribos de índios ferozes percorriam as vastas florestas da Província de Minas Gerais e as margens do Rio Doce, alguns homens empreendedores tentaram subir esse rio. Existiam, afirmava-se, minas de pedras preciosas entre o Território de Porto Seguro e a Província do Espírito Santo. O Governador Geral do Brasil, Luís de Brito d'Almeida, quis saber se essa opinião tinha algum fundamento e encarregou Sebastião Fernandes Tourinho de fazer pesquisas nos ermos onde a imaginação ardente dos portugueses colocava tantas riquezas. Tourinho viajou em 1572 no Rio Doce e, após alguns meses de penosa navegação, voltou, dizem, trazendo esmeraldas e safiras que, provavelmente, não passavam de cristais coloridos, turmalinas ou pedaços de enclases. Alguns aventureiros seguiram a trilha de Tourinho e, bem mais tarde, Marcos de Azeredo, ousando como ele navegar o Rio Doce, mostrou ao voltar prata e esmeraldas. Foi também depois de ter subido o mesmo rio que Rodrigues Arzão trouxe, em 1695, as primeiras amostras de ouro que foram encontradas em Minas Gerais.

De acordo com as instruções que Arzão havia deixado, seu sogro, Bartolomeu Bueno de Siqueira, conseguiu chegar onde é hoje Vila Rica, e os buscadores de ouro chegados depois de Bueno ao país das minas passaram, sem dúvida, igualmente pelo Rio Doce, pois tinham consigo, escravos aprisionados na vizinhança desse rio.

Comunicações mais fáceis foram, todavia, desde logo abertas entre as regiões auríferas e o litoral e parece que, durante muitos anos, ninguém pensou mais na navegação do Rio Doce, cujas margens continuaram a ser asilo de diversas tribos de índios selvagens. Mas já no fim do século 18 os mineiros lastimavam o esgotamento de suas minas e o de suas terras de cultivo. Dom Rodrigo José de Menezes, governador da província, se comoveu com os lamentos dos seus administrados e quis entregar-lhes novas florestas. Era homem corajoso e empreendedor; ele mesmo se internou, em 1781, nos desertos por onde correm os afluentes do Rio Doce e deu a seu ajudante de campo, José Joaquim de Siqueira e Almeida, ordem de descer esse Rio até aos rápidos chamados Escadinhas. Cerca de 25 anos mais tarde, o Rio Doce foi explorado de maneira mais regular pelo Governador Pontes, que, apesar de suas extravagâncias, prestou ao Brasil, sua pátria, relevantes serviços com seus sábios trabalhos.

Pontes afrontou todos os perigos, subiu o Rio Doce e começou o mapa desse rio, cuja continuação se deve a seu sobrinho e a Antônio Rodrigues Pereira Taborda, alferes do regimento das Minas. O Ministro de Estado, Dom Rodrigo Coutinho, Conde de Linhares, tinha muita instrução e imaginação muito ardente, para deixar de se interessar pela utilidade que podia existir no comércio da Província de Minas Gerais e o do litoral do Rio Doce, tornado afinal, navegável. Assim, fez esforços para afastar muitos dos obstáculos que se opunham a que se subisse esse rio; fundou, próxima à sua foz, a Vila de Linhares e publicou um decreto pelo qual o Governo isentava de tributos as mercadorias que passassem, por água, da Província do Espírito Santo para a de Minas Gerais. Encorajados por esse decreto, aventureiros audaciosos começaram a subir e a descer o Rio Doce; logo depois, entretanto, apareceu, às margens do rio, uma tropa de fiscais alfandegários. Estes homens, tomados como agentes de um poder desleal às suas promessas, não prejudicaram por muito tempo os canoeiros; atingidos pelas febres que causam tantas desgraças em regiões vizinhas ao Rio Doce, morreram e o rio ficou livre como antes era.

O governo muito louvara as vantagens que se extraíam, dizia, da navegação do Rio Doce e quando o sal, transportado no lombo de animais, na Província das Minas, se vendia ali sempre a preços excessivos, imprimia-se na Gazeta do Rio de Janeiro que essa substância; graças à navegação do Rio Doce, poderia afinal ser comprada pelos Mineiros por preços mais módicos.

O fato é que, na época da minha viagem, alguns mulatos de Minas Gerais apenas ousavam descer o Rio Doce, em pirogas, a fim de comprar sal na Vila de Linhares, deixando aí queijo, toucinho e outros gêneros de suas regiões. Em 1819, o Governo concedeu diversos privilégios a uma companhia que se havia fundado para tornar mais fáceis o comércio e navegação do Rio Doce. Mas esta sociedade não deu resultados e foi logo dissolvida, pois o francês Marlière, inspetor das divisões do Rio Doce e Diretor Geral da Civilização dos índios, me escrevia em Dezembro de 1824 que não existia realmente nenhuma companhia para a navegação do rio e que, provavelmente, nenhuma se criaria.

Os rochedos que se levantam no meio do Rio Doce opõem grande obstáculo à navegação deste rio, mas, como se viu, alguns desapareceriam com pouco trabalho e outros seriam evitados, cavando-se lateralmente canais de pouca extensão. Tornados amigos dos luso-brasileiros pelos cuidados do generoso Marlière, os botocudos não devem inspirar, hoje, mais inquietações aos navegadores. Mas, existe um perigo que só numerosos desbravamentos poderiam dominar ou diminuir e que, portanto, subsistirá muito tempo: é a insalubridade de várias regiões vizinhas do rio. Essa insalubridade é causada não só por suas águas como pelas de seus afluentes, que, nas estações de chuva, transbordam do leito, formando poças e infetando o ar com vapores perigosos. Raramente os que descem e sobem o Rio Doce não são atingidos por febres malignas ou intermitentes (malária) e estas podem deixar sinais duradouros, pois Manuel José Pires da Silva, que tive a felicidade de encontrar em Minas Gerais, se ressentia, ainda em 1818, de uma doença que havia contraído 8 ou 10 anos antes, ao descer o Rio Doce, sob o Governo de seu tio, Antônio Pires da Silva Pontes Leme. As margens do São Francisco não são em absoluto insalubres, num período de 2 a 3 anos, porque esse tempo basta para se evaporarem as águas do rio, transbordadas sobre terreno descoberto. No Rio Doce não é assim. As espessas florestas que sombreiam suas margens impedem a ação do sol; a evaporação das águas transbordadas se efetua lentamente, continuando de um ano para outro, e em qualquer estação é perigoso descer ou subir o rio. Para resguardar-se, tanto quanto possível, das febres a que estão sujeitos os navegadores do Rio Doce, é preciso não passar a noite nas pirogas, nem mesmo dormir nas margens do rio, sem precaução cuidadosa contra o sereno e a umidade; é preciso tomar cuidados e alimentação substancial, e não se expor ao ardor do sol nas vizinhanças do leito do rio.

Chegando ao Posto de Regência, eu mostrara ao comandante o desejo de embarcar no Rio Doce para ir à Vila de Linhares. No dia seguinte, uma piroga e dois remadores estavam às minhas ordens. Forçoso era fazer tal viagem por água, pois nenhuma estrada leva a Linhares ou pelo menos corre a margem esquerda do rio, exceto uma trilha mal aberta e embaraçada de galhos e espinhos. Deixei no posto algumas de minhas malas, com Manuel da Costa, que tinha função de tropeiro, e embarquei com Prégent e o botocudo Luís da Silva, que me servia de guia desde a Capital do Espírito Santo.

Toda a parte do rio que percorri, no primeiro dia de viagem, não tinha mais de 3 ou 4 pés de profundidade; mas esta, durante a estação das chuvas, aumenta de modo considerável. Quase na foz, suas águas são muito doces e podem ser bebidas; todavia, na época das águas, chegam carregadas de limo avermelhado, que é simplesmente o resíduo da mineração da Província de Minas.

Até onde parei, quer dizer, provavelmente pela extensão de um par de léguas, as margens do rio são perfeitamente planas, cobertas por inteiro de árvores, que são tanto mais robustas quanto mais se afastam da foz. Esta perfeita igualdade do solo sem dúvida se deve à diferença que observei entre o aspecto do Rio Doce e o do Jequitinhonha. As margens deste último são muitas vezes dominadas por montanhas; ora parecem um belo lago perfeitamente tranqüilo, ora rochedos negros, de forma muito variada, se erguem no meio de suas águas; nunca, porém, é bastante largo para que não se possa, ao atravessá-lo, distinguir perfeitamente os diversos efeitos da vegetação mostrados pelas árvores das margens. Não é assim no Rio Doce. As florestas que o margeiam me parecem menos elevadas que as do Jequitinhonha e, quando navegava no primeiro destes rios, nada via à direita e à esquerda além de uma massa de vegetação quase uniforme. Entre a embocadura do Rio Doce e o lugar onde eu estava, não notei junto ao rio, ao sul, qualquer sinal de desbravamento; e na margem esquerda só contei 4 miseráveis cabanas habitadas por índios civilizados, que haviam derrubado um pouco da mata para poder plantar mandioca, abóboras e melancias. Esses índios estavam retirados nesse lugar deserto para fugir às perseguições de que sua raça era vítima em Benevente, Vila de Nova Almeida e além. Os maridos iam à caça, pescavam no rio ou repousavam em casa de colonos luso-brasileiros, enquanto as mulheres cultivavam a terra para sustento da família. Assim, mesmo civilizados, os índios, ou muitos deles, conservaram, com seu caráter, muitos dos antigos hábitos. Hospedei-me na quarta dessas cabanas, construídas à margem esquerda do rio. Pertencia a um branco, o primeiro colono que se sabe contemporaneamente estabelecido nas margens do Rio Doce. Este homem, chamado Antônio Martins, fixara-se primeiramente um pouco mais abaixo; porém, casando seu filho, cedeu-lhe o primeiro estabelecimento e veio desbravar outro trato de terra mais perto de Linhares. As margens do Rio Doce são de tal modo férteis que quase três quartas de terra bastam para a vida da família de Martins, composta de 12 pessoas, e ainda sobra a essa boa gente abundância de farinha de mandioca para que a possa vender. Todos me asseguraram que se exageravam muito os perigos da insalubridade do rio, dizendo-me que nunca adoeceram. Quando cheguei à casa de Antônio Martins, sua mulher e seus filhos se apresentaram a mim, pois, como já disse, as mulheres em toda essa região do litoral não fogem ao estrangeiro. Perguntei à mulher do meu hospedeiro se não se aborrecia por viver em solidão tão profunda. Não tenho eu, respondeu-me, minha família, os cuidados de meu trabalho e esta companhia? Ajuntou, mostrando-me pequeno oratório, que encerrava a imagem da Virgem.

Nesse dia quase não pude distrair meus hospedeiros porque a longa jornada da véspera muito me tinha cansado. Os sofrimentos do pobre Prégent aumentavam os meus e comecei a achar que esta viagem estava acima de minhas forças. Depois de ter chegado à casa de Antônio Martins, notei que esquecera no Posto de Regência uma pasta de plantas que não estavam completamente secas. Não querendo perder essas plantas, deixei, no dia seguinte, Prégent e o botocudo em casa de meu excelente hospedeiro e parti numa piroga, com meus dois remadores e o bom camarada Luís, para voltar ao Posto. Nessa pequena viagem tivemos chuvas muitas vezes, e com ela nos regozijamos em favor dos pobres lavradores, que viam com ansiedade o tempo das secas prolongar-se além do comum.

Regressei bastante cedo para ter tempo ainda de fazer no mesmo dia uma herborização e entrei nos bosques vizinhos da casa do meu hospedeiro. Os do Jequitinhonha têm talvez, como já disse, altura maior; porém são ao mesmo tempo, creio, menos espessos e menos sombrios. Como em todas as florestas primitivas, a vegetação aqui é muito variada, mas encontrei poucas plantas floridas. Em muitos lugares, entretanto, o chão estava juncado de corolas roxas e de suas folhas novas, que são purpurinas. Essas florestas servem de refúgio a grande número de animais selvagens, como veados, onças, pecarís, antas e inúmeras espécies de macacos. Nessa época eram também asilo de tribos errantes de botocudos, dos quais os colonos só falavam com pavor. Mais de uma vez Antônio Martins encontrara pegadas deles perto de sua casa, mas nunca fora atacado por esses índios. No decorrer do passeio que fiz pelos arredores da casa de Antônio Martins, encontrei quase tantos insetos quanto em todo o resto de minha viagem no litoral. Na estação das chuvas, como disse anteriormente, é que esses animais reaparecem. Geralmente, fogem à seca e ao sol, gostam da umidade, e dão-se bem nas sombras espessas. Dois dias depois de ter chegado à casa de Martins, embarquei com meus três pedestres, Prégent e o índio Firmiano, para continuar viagem a Linhares. Os 3 soldados conduziam a piroga; o pobre Prégent, completamente entregue a seus sofrimentos e à sua melancolia, não tinha para mim préstimo algum e vi-me obrigado a conversar unicamente com o botocudo, que nem sempre se fazia entender muito bem. Para me distrair, fiquei a escrever, apesar dos balanços da canoa, que, sem cessar, atrapalhavam minhas mãos e me deixavam na quase impossibilidade de traçar caracteres visíveis. Entre o Posto de Regência e a cabana de Antônio Martins eu tinha, durante muito tempo, visto o mar e os bancos de areia que fecham a entrada do rio. Chegando à casa de Martins, em Linhares, vi apenas o rio e as inúmeras florestas que se estendem em suas margens; durante toda essa viagem, nenhuma habitação se mostrou a meus olhos. As pequenas ilhas que, como as margens do rio, são cobertas de matas que se elevam aqui e ali, do meio das águas, oferecem à paisagem alguma variedade. Nenhum ruído nos fere os ouvidos, além dos murmúrios dos ventos que agitam a folhagem das árvores, o canto alegre da araponga e o do pavão, semelhante aos sons de uma flauta ouvida ao longe.

Talvez, não exista, região mais favorável aos estabelecimentos da agricultura que a parte das margens do Rio Doce vizinha ao mar. Efetivamente, a terra produz, com igual fecundidade, milho, feijão, arroz, cana-de-açúcar, algodão, mandioca; de todos os lados se erguem matas magníficas e o rio fornece um meio fácil de exportação. Da foz do Rio Doce, pode-se chegar ao Rio de Janeiro em 4 dias e a brevidade dessa travessia, assim como a vizinhança da Vila da Vitória, asseguram pronta venda de todas as mercadorias. Entretanto, até a época de minha viagem, dois motivos concorriam para afastar dessa região aos que desejassem estabelecer-se nela: o pavor das doenças e dos botocudos.

É incontestável que as terras da Província de Minas banhadas pelo Rio Doce são insalubres, como já disse; é incontestável, também, que, chegando à embocadura do rio, os estrangeiros são quase sempre atacados pelas febres; mas isto é um tributo que somente se paga uma vez; elas cedem, ao que parece, ao menor vomitório e posso dizer que, entre o Rio de Janeiro e o Rio Doce, não vi mulher alguma de tez mais fresca e de cores mais bonitas que as filhas do lavrador Antônio Martins. Quanto ao temor que antigamente havia dos botocudos, deve estar agora inteiramente afastado, porque, graças aos cuidados do senhor Guido Tomás Marlière, esses indígenas se tornaram amigos dos luso-brasileiros; e mesmo na época da minha viagem não deviam ser tão perigosos quanto se supunha, pois não haviam feito nenhum mal a Antônio Martins, estabelecido nessa região há tanto tempo. Enquanto eu me entregava a reflexões, a canoa subia o Rio Doce com lentidão e, quando ainda estávamos muito longe de Linhares o sol quase desapareceu.

Durante todo o percurso o tempo estivera sombrio e chuvoso, mas clareou para a tarde e então, do lado oeste, divisei no horizonte as montanhas de Juparanã; o rio corria majestoso entre as escuras florestas que o margeiam. Completa calma reinava em toda a natureza e o silêncio do ermo era apenas perturbado pelo canto de umas pequenas cigarras e pelo barulho dos remos de que se serviam meus canoeiros. Solidões vastas assim têm qualquer coisa de imponente e eu me sentia humilhado diante desta natureza tão possante e austera; minha imaginação se assustava, quando eu pensava que as matas imensas que me cercavam se estendiam para o norte, muito além do Rio Grande de Belmonte; que elas ocupam toda a parte leste da Província de Minas Gerais; que cobrem, sem qualquer interrupção, as do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, parte da Província de São Paulo, completamente a de Santa Catarina, o norte e o oeste da Província do Rio Grande do Sul e que, além das Missões, irão, possivelmente, unir-se as do Paraguai setentrional. Como meus canoeiros lutassem muito, por vezes, para fazer a canoa avançar, só chegamos a Linhares às 11 horas da noite. Desembarquei numa fazenda, a de Bom Jardim, que se acha à margem direita do rio, em frente à vila e que então pertencia ao falecido senhor João Felipe Calmon. Eu conhecera esse agricultor no Rio de Janeiro; apresentei à sua esposa uma carta de recomendação que ele me havia dado para ela e fui perfeitamente acolhido. Acompanhado pelo jovem Anselmo, filho de João Felipe, fui no dia seguinte a Linhares, onde me demorei até à noite. Diante da fazenda de João Felipe ou nas suas imediações, o Rio Doce, descrevendo uma curva, se dirige um pouco para o norte. No meio dessa espécie de bojo, a margem se levanta a pique acima do rio e se arredonda para formar uma meia lua, perfeitamente regular, que de longe parece uma fortaleza e cujo topo se assemelha a larga plataforma. Foi onde se teve a feliz idéia de construir a Aldeia de Linhares, ou Santa Cruz de Linhares. Ali só existem choupanas; mas são dispostas com simetria e desenham os 4 lados de uma praça perfeitamente quadrada, coberta de grama; na época de minha viagem, estavam terminando a igreja, que será muito bonita; ocupa o centro do lado norte da praça; fica, entretanto, um pouco afastada das casas e atrás dela as matas formam magnífica cortina. À frente da plataforma escolhida para se construir Linhares, aprecia-se uma vista imponente e bastante alegre. O rio corre majestosamente abaixo da vila, muitas ilhas se elevam no meio dele e, do outro lado da margem, avista-se o engenho de Bom Jardim, rodeado de terrenos cultivados, que contrastam com as florestas virgens. Embora situada na margem esquerda do Rio Doce, Linhares forma parte integrante da Província do Espírito Santo.

Esta vila é sede de uma paróquia, a última da diocese do Rio de Janeiro, do lado norte. É também a da primeira divisão militar da província, e lá reside, como disse, o alferes, ou 2° tenente, encarregado do comando da divisão. As forças desta última se compõem somente de cerca de 50 homens; entretanto, há para eles um hospital militar em Linhares, dirigido por um cirurgião-major que percebe 400 réis por dia (2 francos e 50 céntimos). As insignificantes tropas da região militar estão espalhadas pelos diversos postos, mas o principal destacamento fica em Linhares. Alguns homens estão também acantonados em dois locais da floresta, a pouca distância da Aldeia, que protegem contra os botocudos. As casernas ocupadas por esses dois destacamentos são grandes cabanas e à volta delas os soldados cortaram árvores, a fim de plantar mandioca para seu sustento. Este é o vegetal que mais se cultiva nos arredores de Linhares; é produzida aí em abundância e dá excelente farinha. Os habitantes, para gozar de maior segurança contra os índios, fazem, em geral, suas plantações juntas umas às outras; percorri, perto da vila, um terreno de cerca de quarto de légua, que fora cultivado por diversos particulares e estava inteiramente coberto de mandioca. Colhe-se o bastante para poder vender a farinha e, poucos dias antes de minha chegada a Linhares (22 de outubro de 1818), saíra do Rio Doce uma pequena embarcação carregada com 30 alqueires de feijão e 250 de farinha de mandioca, que, depois de ter sido comprada por duas patacas o alqueire, fora revendida em Vitória por 4 ou 5 patacas. Essa embarcação era a primeira que viera fazer seu carregamento no Rio Doce, porém não havia podido completá-lo antes do fim de um mês, porque, à exceção de João Felipe, os habitantes de Linhares são pobres e sem escravos e tinha sido preciso comprar deles esses e esperar que os vendedores tivessem seu fornecimento preparado. É de supor, entretanto, que os benefícios obtidos por esse pequeno comércio tenham encorajado os negociantes da Vila da Vitória, a renová-lo e, sem dúvida, os colonos de Linhares aumentaram seu trabalho na esperança de adquirir um bem-estar do qual ainda não tinham gozado.

A fundação da vila, como disse, data de pequeno número de anos, e é devida ao ministro que lhe deu o nome. Dom Rodrigo Coutinho, Conde de Linhares, havia sonhado que o Rio Doce podia garantir perfeitamente uma comunicação fácil com o mar e a Província de Minas; e se não tomou as providências eficazes para prodigalizar essa comunicação, julgou, pelo menos, com muita razão, que era preciso começar por tornar habitável a proximidade da foz do rio e aí procurou um ponto que pudesse tornar-se logo depois um entreposto para o comércio marítimo e o do interior das terras. O local foi assim perfeita-mente escolhido, começando-se por instalar ali um destacamento de soldados. Tovar era então Governador da Capitania do Espírito Santo. Querendo secundar as intenções do ministério, cuidou de interessar os cultivadores da província a se estabelecerem nas margens do Rio Doce. João Felipe Calmon foi o único que atendeu a seu convite. Este colono empreendedor vendeu o domínio que possuía perto de Itapemirim e veio para Linhares com toda a família. O rio estava muito alto e não se poderia subi-lo sem risco. Foi preciso, assim, trazer através de Campos do Riacho e por florestas impenetráveis todas as provisões necessárias. A febre atacou João Felipe e parte de sua família, mas nada o desencorajou. Chegado às margens do rio, escolheu, para aí formar um estabelecimento, o terreno que fica diante da Vila de Linhares, evitando assim o inconveniente de estar muito próximo de uma população nascente, que naturalmente deveria ser mal composta, e podendo ao mesmo tempo aproveitar as numerosas vantagens que apresentaria tal vizinhança. Todavia, o exemplo de João Felipe não seduziu mais ninguém; imaginavam-se as margens do Rio Doce como uma região pavorosa, onde se era devorado pelos insetos, atacado por doenças perigosas e onde, sem cessar, se corria o risco de ser massacrado pelos botocudos.

Desesperando de conseguir povoar Linhares, a administração mandou para lá camponeses espanhóis, que tinham vindo da Ilha das Canárias para chegar a Montevidéu e naufragaram perto de Vitória; perdoou-se também a desertores, sob a condição de se fixarem no novo lugarejo; alguns aventureiros, mulheres de má vida e índios que fugiam às perseguições do governador juntaram-se neste núcleo e eis o que forma hoje a população de Linhares.

Mineiros se aventuraram, como eu disse, a descer o Rio Doce. Trouxeram a Linhares toucinho, açúcar, queijo, fumo, carne-seca; e em seguida voltaram, levando sal. Estimulados pelos benefícios conseguidos em tal viagem, os mesmos homens a repetem uma vez por ano; fazia pouco tempo que haviam chegado a Linhares quando visitei essa aldeia e então os produtos de Minas Gerais tinham melhor mercado ali do que na Capital da província. Tais são os insignificantes inícios de um comércio que, com sua continuidade, será sem dúvida, para o Brasil, da mais alta importância. Enquanto se ia formando pouco a pouco a população de Linhares, João Felipe Calmon auxiliava, com a máxima boa vontade, os colonos que vinham estabelecer-se ali, tornando-lhes mais fáceis os transportes, recebendo-os em sua casa, obtendo-lhes víveres. Ajudava, igualmente, aos mineiros no seu comércio, fornecendo-lhes canoas com remadores. Assim, durante todo o tempo em que Tovar foi governador da província, João Felipe continuou tranqüilamente sua útil atividade. Rubim, no começo de sua administração, também se entendia muito bem com este prestativo colono, tendo o cuidado de consultá-lo em tudo que dizia respeito ao Rio Doce e a Linhares. Não demorou, contudo, que uma dessas intrigas obscuras, comuns entre os brasileiros, afastasse dois homens cujo entendimento constante trazia tanto benefício. João Felipe veio a ser alvo de perseguição do governador, foi ao Rio de Janeiro pedir justiça e creio que morreu sem nada conseguir.

Quando da minha viagem, a administração da Vila de Linhares estava inteiramente em mãos do alferes encarregado do comando da 1a divisão. Este homem me recebeu muito bem, mas, infelizmente, era estranho à finalidade do governo ao fundar Santa Cruz de Linhares, porque dizia dos Mineiros que tinham a coragem de navegar o rio: "não gosto dessa gente e nada farei em seu favor".

No dia seguinte à minha chegada à casa de João Felipe, fui visitar o belo lago de Juparanã, que se situa a alguma distância de Linhares. Após atravessar o Rio Doce, entramos num pequeno riacho cujas águas se unem às do rio imediatamente abaixo da vila. Esta ribeira parecia não ter curso algum e refletia a cor escura dos maciços de árvores que apareciam nas margens. Algumas estendem os ramos, formando abóbada por cima da ribeira, e outras se reclinam inteiramente em seu leito.

Cipós espessos se levantavam, por assim dizer, de uma árvore a outra e formavam, ao se reunirem, densas massas de verdura, impenetráveis ao sol. Largas aberturas por vezes se notam no meio das brenhas e conhece-sé logo que são obras de animais ferozes, cujas trilhas ficaram marcadas no lodo. A ribeira dá inúmeras voltas, tem talvez cerca de meia légua e é constantemente embaraçada por troncos caídos.

 Experimenta-se agradável surpresa, quando, ao sair desse canal estreito e sombrio, de repente se encontra, um belo lago, mostrando vasta extensão de água, cujo limite escapa aos olhos. Parece que a lagoa Juaranã deve sua origem a um córrego do qual não é conhecida a nascente. As águas deste ribeiro, muito pouco inclinadas para a confluência, ter-se-iam espalhado sobre a terra, formando o lago.

Este, muito menos largo que comprido, se estende, mais ou menos, do norte para o sul; é limitado por matas virgens, mas, sendo suas margens muito afastadas, as florestas o embelezam sem o torná-lo sombrio.

Dentre suas águas se ergue uma grande ilha, que contribui para embelezá-lo e que vi ao longe. O Lago Juparanã é muito abundante em peixe, como as suas margens o são em caça, principalmente em mutuns, pecaris e crocodilos. Os habitantes de Linhares vão constantemente caçar e pescar nessa região, mas não fizeram ainda qualquer derrubada nas margens do lago. Dia virá em que elas se animarão com a presença do homem e se embelezarão com numerosas habitações; então esse lugar será, por certo, um dos mais belos do Império do Brasil.

Nosso regresso à fazenda de Bom Jardim foi delicioso. Era noite; mas, um céu estrelado clareava tanto a ribeira que os nossos remadores, acostumados com a vegetação, puderam evitar, sem trabalho, os troncos derrubados. Ouvimos o canto da cigarra e o confuso barulho produzido na mata pelos animais selvagens. Além disso, nenhuma brisa agitava as folhas das árvores e o céu estava sem nuvens.

Estendi-me na canoa, esqueci todas as fadigas de minha viagem e experimentei o bem-estar que Rousseau descreveu tão bem numa de suas divagações.

Deste passeio trouxemos um pecari, um macaco, algumas lagostas e o mais bonito dos palmípedes. Matando essa ave, meu criado experimentou um momento de alegria.

Como lembrança do pobre Prégent, rapaz muito recomendável, eu havia prometido a mim mesmo conservar sempre o encantador palmípede do lago Juparanã. Durante a longa doença de que fui vítima em meu retorno, a ave teme a mesma sorte do resto das minhas coleções zoológicas.

 

Fonte: Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce ano 1974
Autor: Auguste de Saint-Hilaire
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2015

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