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Onde meu coração se criou - Por Antonio Carlos Neves

Capa do Livro: Escritos de Vitória, Nº 10 - Escolas, 1995 - Capa: Foto de Gildo Loyola

Toda a impressão que ficou – assim como as sensações e as lembranças – eu a tenho como às vezes ocorre com a memória, ao ser disparada por algum cheiro, uma visão, alguma música, ou mesmo, embora mais raramente, quando escuto determinada palavra, que me soa quase mágica, e me leva de volta ao passado para me trazer melancolia, nostalgia doce, e um desesperado desejo de ser novamente criança.

É quando me vejo novamente diante daquela casinha, hoje – diante do roteiro que a memória me traça – eu só vejo escrito em sua entrada Le Chocolatier, usando um vergonhoso uniforme ainda do jardim de infância, penosa exigência de minha mãe para que o usasse enquanto não ficava pronto o da própria escola, açodado por maus presságios. O que mais poderia sentir um menino ainda, diante do vasto mundo que significava seu primeiro dia de aula? Nem amigos, nem o braço protetor de minha mãe estavam a me acompanhar, e, no entanto, como ansiara por aquele momento, até que o próprio momento chegasse e me petrificasse de medo e de timidez! Pobre de mim, que exigira ainda na porta de casa solidão para meus primeiros passos de fato importantes, e agora nem sequer sabia como usá-los para atravessar o portão, atrás do qual acreditava enxergar todas as crianças da cidade, correndo como malucas, gritando, se agarrando, se empurrando, vermelhas e suadas de excitação. Minha própria excitação, no entanto, parecia feita de matéria distinta, deixando-me pálido, frio, sem força para me mexer.

Foi então que me ocorreu verdadeiramente a primeira tragédia, ao ouvir uma voz debochada e, só agora tenho consciência disto, tão injusta:

- Ei, aonde pensa que vai? O jardim não é aqui!

Todas as crianças da cidade pararam naquele momento para verificar com os próprios olhos a novidade de um garoto com um avental que o cobria desde o pescoço até as canelas finas, onde se destacava – que tremendo horror – um nome que identificava para sempre o pobre coitado:

 

Antonio Carlos

 

Dezenas de gargalhadas assomaram ao meu redor e, de pálido, fiquei rubro, o que pareceu diverti-las ainda mais, embora eu não tivesse então a menor idéia do que poderia ter feito de tão cômico – pelo contrário, as lágrimas me faziam pensar que fora alvo de alguma tragédia sem fim, imperdoável, e que estaria, a partir daquele momento, condenado para sempre a vestir aquele uniforme - , quando, na verdade, a culpa cabia apenas a minha mãe.

Foi assim, através das lágrimas, que vi pela primeira vez aquela mulher alta e que marcaria minha infância muito mais que a herança do jardim de infância que carregava aquele dia, e, exceto durante os raros momentos em que o castigo desceu sobre mim por alguma falta cometida – e naqueles dias tão longínquos isto significava cocurutos com o nó dos dedos ou com um enorme lápis que até hoje me faz estremecer -, eu a amei como um pequeno aluno pode respeitar sua primeira professora.

Sophia Muller, um estranho nome para uma professora e uma escola, mas não acredito que tenham sido esquecidas por nenhum de seus alunos, porque uma representava a outra, tão semelhantes, tão gêmeas. Poucas vezes, entretanto, eu a vi sorrindo, e, no entanto, ela sorria naquela manhã ao olhar meu uniforme, de certo modo comovia com o que minha mãe havia feito comigo, embora acreditasse ter sido com boa intenção.

 - Não precisa usar isto aqui – ela me disse, compreensiva, e foi logo me ajudando a retirar aquele manto de vergonha, e até hoje não sei dizer se endereçou um de seus terríveis olhares corretivos para as outras crianças, como logo aprendi que às vezes fazia, mas o fato é que disputaram dali até o outro lado do pátio de recreio, de volta às brincadeiras malucas e aos gritos estridentes, momentaneamente esquecidas de mim.

Momentaneamente, porque jamais deixaram que ninguém esquecesse que eu ainda era do jardim de infância, e foi assim que minha mãe, de certa forma, colocou-me um apelido que me acompanharia durante todo o primário na Escola Sophia Muller: Nenenzinho. E foi a troco de socos, muitas vezes, que tentei me livrar do apelido, mas com criança sempre foi assim, quanto mais injuriado você se sente, aí é que vale mesmo a pena continuar com uma brincadeira. E logo aprendi que todos tinham seu nome substituído por aquele que os tornava conhecidos, podendo ser amado ou odiado, mas que inegavelmente fazia parte da vida. Periquito, Girafa, Caolho, Tanajura, bem, se havia apelidos como esses, por que ia me importar com Nenenzinho? Evidente que tinha seus incômodos e suas maledicências, como ser tratado sempre como bebê, ou seja, alijado das peladas com bola de meia durante os recreios, mas por outro lado, havia sempre alguém mais velho para me defender numa briga, e o mestre nisto era Deomar Bittencourt, que Deus o abençoe pelo resto da vida, Doutor. Claro que era ele quem às vezes me dava uns tabefes, mas podia ser isto encarado como privilégio de quem tanto me defendia.

No pátio da Sophia Muller, sob a velha mangueira, aprendi o valor de uma boa amizade, enquanto na sala de aula, debruçado sobre uma carteira manchada e repleta de nomes, que ainda hoje me traz saudades – foi naquele tempo que vi pela primeira vez, entre tantas outras coisas, uma caneta esferográfica e uma garrafa de soda laranjada, deixando, os sortudos que as levaram, a todos com inveja -, principalmente quando vejo as atuais de plástico leve e rapidamente perecível, foi na sala de aula, como dizia, que aprendi como era possível combinar aquelas letrinhas estranhas e misteriosas para formar pensamentos maravilhosos, e, se hoje alguém me considera ao menos um contador de histórias, tenho de abrir o leque de meus créditos até aquela mulher de nome confuso e de dedicação tão clara, assim como tenho de fazer até a voragem de acontecimentos que iniciaram a formação do homem que hoje eu sou – afinal, o menino será sempre, irrevogavelmente, o pai do homem.

Mas, como provavelmente ocorre em todas as épocas, só hoje – já tão velho que ninguém teria coragem de me chamar de Nenenzinho -, ao ver como as crianças passam velozes e inconscientes pelo que agora chamam de primeiro grau, é que me dou conta de como tivemos tempo de vivenciar nossa infância, tornando-a naquela época não apenas um período de aprendizagem, mas igualmente de brincadeiras e amizades que, a bem da verdade, só podemos relembrar tantos anos mais tarde, quando então tudo só pode ser saudade, e só nos resta a enorme perplexidade de termos sido capazes de esquecê-las por tanto tempo.

 

Fonte: Escritos de Vitória, 1995, Escolas
Autor: Antonio Carlos Neves
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro de 2014

 

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