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Os Jesuítas chegam – Por Serafim Derenzi

Palácio do Governo 1573-1810

O acontecimento marcante, da segunda metade do século primeiro da colonização do Espírito Santo, é a chegada dos padres jesuítas, ordem recém-fundada por Inácio de Loiola.

Inácio Lopes de Recalde, como se chamava no mundo, fora capitão do exército de Navarro. Trocou a espada de guerreiro pela cruz, justamente na época de efervescência da Reforma Religiosa (1). "Nos êxtases contemplativos sentiu nova face do mundo. O asceta é um refugiado, é um guerreiro solitário, que luta contra o demônio. Inácio tinha alma de militar, nascera para comandar exércitos e vencer batalhas decisivas". (2) Foi esse o espírito que incutiu em seus irmãos companheiros. A Companhia de Jesus é ordem de ação dinâmica, que não mede sacrifícios para propagação da fé. Nenhum campo mais fértil poderiam encontrar do que o Novo Mundo onde tudo estava para se construir. Pode-se escrever a História do Brasil com omissão de José de Anchieta, Manuel da Nóbrega, Afonso Brás, Brás Lourenço, Leonardo Nunes, Luis da Gran, Custódio Serrão, Antônio Vieira e tantos outros?

O PADRE AFONSO BRÁS

Em começo de abril de 1551, vindo de Parto Seguro, chega a Vitória o Padre Afonso Brás, acompanhado do irmão leigo Simão Gonçalves, ex-soldado professo em 1549.(3) Pode-se dizer que então começou a vida social e religiosa da Capitania. O ardoroso jesuíta, jovem de 27 anos, reanimou os colonos, incutindo-lhes confiança. A vila transforma-se. A colina que forma a atual cidade alta povoa-se aos poucos. É íngreme, pedregosa e coberta de mata espessa, aqui, acolá, deixada por Duarte de Lemos, que cultivou a vertente esquerda. Os ranchos, sim, não eram casas ainda, se sucedem nas inflexões do terreno, procurando o menor movimento de terra, evitando remover obstáculos custosos. O plantio começara mal e mal e as moedas, trazidas da metrópole, de há muito se haviam repatriado. Há pressa no trabalho de se abrigarem. Os campos de Piratininga, os areais de Aribiri, os baixios da costa, visitados pelos Tapuias, tornaram-se inóspitos. Lá ficaram as roças, os engenhos e os barracos de Vila Velha. As lavouras se abrem pelo lado norte e transpõem o continente pelo braço da "passagem". Quando os indígenas atacam, em setembro, Padre Afonso, empunhando o estandarte de São Tiago, encoraja os colonos e, no dia 8, os sinos tangem festivos preces a Nossa Senhora da Vitória.

* * *

Tinha Afonso Brás, além das virtudes de catequista, "qualidades de carpinteiro e arquiteto". Iniciou ele a feitura de uma casa para se abrigarem. Deve ter sido na parte baixa da vila, porque o Padre Brás Lourenço, seu substituto, três anos depois, escreveu ao superior, em Lisboa: "O sítio não é muito sadio nem aprazível por estar em lugar baixo".(4) Imagino que tenha sido na embocadura da atual rua General Osório. Esse local, até o começo do século, se chamou "Porto dos Padres". A primitiva morada dos Jesuítas foi simples alpendre de palha, sem paredes. Até o ano de 1561 as casas foram todas assim, como rezam as crônicas, e não havia ainda fortificações que os defendessem. A terra os encantava, pois, o P. Afonso Brás, na sua carta ânua, diz: "Esta onde ao presente estou é a melhor e mais fértil terra do Brasil".(5) Quando em 1552, chega o P. Nóbrega, em companhia do Governador Geral, Tomé de Souza, encontrou o colégio de São Tiago e a igreja, provavelmente inaugurada em 25 de julho do ano anterior, data consagrada ao orago. Seja como for, a quatro de maio de cinqüenta e um, já assim se chamava e pedia "meninos para principiar o colégio". Pobre da feitura e mais pobre talvez na apresentação, sem retábulos, ornamentos e galhetas, necessária se fazia nova construção capaz de enfrentar o futuro".(6)

Contemporaneamente à chegada de Afonso Brás, os franceses, segundo tópico da carta do dia 30 de abril, escrita ao rei, pelo famoso Antônio de Barros, ameaçam a costa espírito-santense. E é um filho do donatário, Jorge de Melo Coutinho, que os põe a correr, no comando dum navio seu. (7)

Em dezembro de 1552, Vitória recebe a visita do primeiro Governador Geral, Tomé de Souza, (8) navegando para o Sul, a providenciar a fortificação das vilas. Navegantes piratas amiudavam-se na costa: o ibirapitanga, pau brasil, compensava o risco.

Duarte de Lemos, movido por algum acerto de contas com seus colonos, revê a antiga propriedade e faz doação das terras onde Afonso Bras já edificara o colégio e a igreja. (9)

Voltando de S. Vicente, em seis de junho de 1553, Tomé de Souza, visita novamente a Capitania e comunica a D. João Ill que o Espírito Santo é a capitania mais abastada, mas está perdida pela ausência de Vasco Fernandes e pede ao rei que mande o capitão ou o donatário com urgência.(10) Com franqueza, não atino com essa abastança. Os colonos disseminavam-se pelo litoral, os índios tomavam-lhes tempo com guerrilhas e não havia emigração de brancos. É retrato pouco lisonjeiro da situação econômica das capitanias do sul.

Mas o conceito do austero e melhor administrador do Brasil nascente é atestado valioso para os colonos, mas reprimenda oficial ao pobre e infortunado donatário.

O jesuíta Luís da Grã, numa de suas cartas, transmite dois fatos,(11) um da tradicional cortesia e bravura de Coutinho, outro que lhe ilumina o coração de esperanças. No primeiro, conta como o filho de "Gato Grande" veio a Vitória solicitar socorro para seu pai e família que, na Guanabara, estavam em vias de ser aniquilados pelos tamoios. Arma o velho donatário quatro lanchões, equipa-os de homens, e a família do temiminó refugia-se a salvo à sombra amiga do Penedo. No segundo, comunica o infatigável missionário inaciano, ao padre provincial, a alegria dos colonos pelo achado de ferro e de metal, tido como prata, em abundância na vila. É que Fernandes Coutinho, diante do entusiasmo, mandara a descobrir minas no sertão e acharam ouro e pedras de preço. Esse sonho, infelizmente, jamais se realizou. As pedras e as prováveis amostras de ouro devem ter vindo do vale do Castelo, onde, século depois, Pedro Bueno Cacunda bateou com resultados aleatórios. Hoje não há mais dúvida a respeito. No Espírito Santo só há de fato minerais estratégicos nas monazitas de Anchieta, Guarapari e Nova Almeida. Nas cabeceiras do Alto Jucu verificaram-se radiações com índices apreciáveis. Pedras coradas afloram nos municípios de Fundão, Itaguaçu, Afonso Claudio e Colatina com importância comercial apreciável.

***

Afonso Brás pouco se demorou no Espírito Santo. Foi o primeiro professor de primeiras letras na vila. Obedecendo a ordens do padre Manuel da Nóbrega, foi missionar em São Paulo. Substituiram-no o padre Brás Lourenço (12) e o irmão Antônio de Atouguia.

DIAS DE LUTO

Os desentendimentos entre os colonos e as tribos, que habitavam o Espírito Santo, nunca foram convincentemente esclarecidos. As lutas se sucediam cada vez com maior furor. Os cronistas leigos não oferecem argumentos sobre os quais se possa induzir as justas causas. As cartas jesuíticas, escritas por Nóbrega, Luís da Grã, Afonso Brás, Brás Afonso, entre os mais famosos informantes da Capitania capixaba, quase me convenceram de que o única razão dessa guerra desesperada foi a resistência do índio em não querer ser escravizado. Os portugueses, não obstante a ação humana dos missionários, tratavam os silvícolas como bestas selvagens.

Os franceses sempre comerciaram, usando a expressão da época, "resgatearam" com êxito, porque não se preocupavam em cativar o índio. Já os colonos lusitanos, não dispondo de compatriotas para lavrarem a terra, recorriam ao expediente brutal. Essa foi a causa predominante da luta de extermínio, que culminou com o levante geral das tribos do Norte, com tal perigo, que Vasco Fernandes se viu na contingência de pedir socorro à Bahia. Mem de Sá, ao tomar posse do Governo Geral, escreve ao Rei,(13) comentando a carta de Coutinho, que o gentio se "alevantara e fazia crua guerra" e haviam morto e ferido a muitos e cercavam a vila e combatendo dia e noite, e se não lhe mandasse socorro, seriam comidos." (!)

O desespero atingia ao máximo de tensão. Os reforços não se fizeram esperar. Mem de Sá teve ímpetos de vir em pessoa. Mandou a Fernão de Sá, seu filho, com seis barcos e duzentos homens armados.(14) O combate foi renhido; travou-se nas margens do Cricaré, São Mateus de hoje, próximo à praia. Os portugueses não levaram a melhor. Fernão de Sá foi morto e outros chefes se salvaram, nadando para os navios ao largo.(15) Novo reforço chegou e, dessa vez, sob o comando de Baltazar de Sá, primo do primeiro, que vingou duramente os coloniais. Salvou a vila de Vitória, onde Vasco Fernandes estava a pique de se render.(16)

Mem de Sá comunica à rainha dona Catarina que a Capitania do Espírito Santo agora "fica muito pacífica e seu gentio tão castigado: mortos tantos e tão principais que parece não alevantarão a cabeça tão cedo". (17)

O temor agora era a velhice e a pobreza de Vasco Coutinho, circunstância que Mem de Sá comunica à Corte: "Parece que Vossa Alteza devia tomar esta terra a Vasco Fernandes e logo mandar a São Tomé e dar aos homens ricos que para cá querem vir". A situação era de fato crítica. Visitando a Capitania, Mem de Sá aconselha a se fazer uma cidade nova para defender a terra dos índios e dos franceses sempre a cobiçá-la. Mas as tarefas do Rio de Janeiro distraíram a atenção do grande Governador Geral. (18)

Restabelecida a paz, com o massacre dos indígenas, o ânimo de Vasco Fernandes Coutinho se ilumina com a derradeira perspectiva da esperança. Embarca para Portugal, onde tentará, junto à soberana um último apelo em benefício da Capitania infeliz. .A viagem inicia-se com mau augúrio. Os males do corpo e a angústia da alma recrudescem. Tocando em Ilhéus o desânimo o aniquila. De próprio punho, em 22 de maio de 1558, (19) precisamente vinte e três anos após ter contemplado a baía do Espírito Santo, naquele sábado promissor, reconhece a falência de sua empresa temerária. Escreve a Mem de Sá seu canto de cisne. É uma página dramática em que a humildade cristã de Coutinho se confunde com o interesse e grande amor à Capitania. Diz que, velho, doente e aleijado embarcara para ir beijar as mãos do Governador Geral em sinal de reconhecimento à ajuda, que depois de Deus, foi ele que salvou a terra e o povo da fúria dos índios. Enfrentou tempestade e doença a bordo. Conta que foi alvo de desacato do povo por proibir cativar índios. Pede um capitão que não venha a ser tratado como ele o fora. Suplica-lhe uma passagem e carta de recomendação para o reino, onde pretende achar socorro que o ajude a levantar a Capitania ou quem a compre. Julga-se indigno de possuí-la. Os documentos compulsáveis dos arquivos omitem-se quanto ao resultado da viagem. Silenciam também se chegou à metrópole ou apenas velejou pelas capitanias do Norte. Mem de Sá não o encontra em janeiro e março de 1560.(20) É ponto pacífico que Vasco Fernandes Coutinho faleceu em fevereiro de 1561 e foi sepultado em Vila Velha, na igreja do Rosário. (21) Dispenso-me em comentar a vida estóica e resignada do primeiro donatário do Espírito Santo, por me ter alongado na sua biografia. Louvo-me no conceito do venerável José de Anchieta, em seu auto "Vila de Vitória", em que uma das personagens encarna Vasco Fernandes Coutinho, tachando-o de bom governo. Serafim Leite diz que a homenagem é merecida, porque Coutinho se mostrou "amigo dos Padres e, naquilo que podia, protetor dos índios". (22)

Em 1935, quando se comemorou o quarto centenário do povoamento do solo espírito-santense, a família Oliveira Santos ofereceu à cidade de Vitória significativo monumento a Vasco Fernandes Coutinho, concepção e debuxo do grande capixaba de coração, que foi Alberto Oliveira Santos, desenhado e montado, por Jaime Figueira. A rua que recebeu o nome do primeiro donatário, no canto do Parque Moscoso, é modesta demais para perpetuar-lhe o nome.

 

NOTAS

(1) Fundada em 15 de agosto de 1534. Reconhecida pelo Papa Paulo III em 27 de setembro do mesmo ano pela Bula Regimini Militantis Eclesiae.

(2) Luiz Derenzi. “Santo Inácio”. Inédito.

(3) Afonso Brás nasceu em 1524, em S. Paio dos Arcos, antigo termo de Avelã de Cima, em Portugal. Ingressou na Companhia de Jesus, em Coimbra, em abril de 1546; veio para o Brasil na segunda leva de Jesuítas em 1550. Do Espírito Santo foi mandado para S. Paulo, sendo considerado um dos fundadores da cidade. Trabalhou cerca de sessenta anos no Brasil, faleceu no Rio em 30 de maio de 1610. Tinha habilidade de carpinteiro, mestre de obras e arquitetura. Simão Gonçalves foi soldado, professor na Bahia. "Foi o primeiro soldado que se cá tomou". (Nóbrega-Cartas). Em 1562 está em S. Vicente. Presume-se tenha morrido em 1567. Serafim Leite S.J. H.C.J.B.

(4) Idem.

(5) Carta Ânua.

(6) Serafim Leite — ob. cit.

(7) Veja-se pág. 84 da H. E. E. S. de J. Teixeira de Oliveira.

(8) Idem. idem.

(9) Serafim Leite S.J. obr. cit. 1 vol.

(10) C. Malheiro Dias. ob. Cit.

(11) Carta de Luis da Grã desta Capitania do Espírito Santo, hoje 24 de abril de 1555 — Brás (3) 137 v. Apud Serafim Leite — 1 Volume - pág. 234 — “Novas Cartas".

(12) Brás Lourenço veio para o Brasil na expedição de 1553. Chegou à Baía juntamente com José de Anchieta, em companhia de D. Duarte da Costa. Fez os últimos votos em 25 de julho de 1560. Foi Vice-Reitor, superior em Porto Seguro. Voltou ao Espírito Santo e em 83 era superior. Faleceu em Reritiba a 15-7-1605 com 80 anos. Era de Coimbra. Notas colhidas na H.C.J.B.

(13) Cartas. Instrumentos.

(14) Instrumentos.

(15 ) Frei Vicente do Salvador — Hist. do Brasil.

(16 ) lnstrumentos.

(17) Mem de Sá. cartas.

(18) Idem, idem. H. C. P. B. II Vol.

(19) Pedro Azeredo — Apêndice.

(20) Mem de Sá - "Cartas".

(21) Daemon. Cezar Marques.

(22) Serafim Leite.

 

Fonte: Biografia de uma ilha, 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2017

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