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Patrimônio da Humanidade – Por José Reginaldo Santos Gonçalves

Convento da Penha

As alegorias de Rodrigo: visões da autenticidade

A Apropriação da Cultura Nacional

“... muito além da propriedade particular existe uma outra, que é a propriedade coletiva da Nação, constituída por todos esses elementos que constituem a nossa cultura..”

- Rodrigo Melo Franco de Andrade

A palavra redenção é usada neste estudo para expressar o empreendimento de produção simbólica da nação enquanto entidade existindo por si mesma, numa dimensão transcendente de permanência, a salvo das contingências históricas. O patrimônio cultural, por meio do qual a nação é simbolicamente atualizada, existe supostamente nessa dimensão incondicional. Ao mesmo tempo, ele é composto por elementos contingentes, fragmentários e evanescentes. Uma vez que ele é usado como uma metáfora extensa da nação, esta é também concebida em contraste com sua própria contingência e precariedade. Nesse sentido, a autenticidade da nação é um efeito de sua própria descontinuidade e desintegração cultural.

No entanto, a redenção não é um resultado final desse empreendimento de apropriação dos itens culturais que estariam supostamente sendo destruídos, perdidos, homogeneizados, etc; trata-se de uma experiência antecipada, presente já no momento mesmo das práticas da apropriação, que se opõem à destruição e à perda. Essas práticas visam à defesa de um patrimônio que é concebido, em parte, como uma dimensão de integridade, continuidade e autenticidade, ao abrigo das contingências da história. Ao mesmo tempo, ele deve ser defendido das ameaças de destruição. Assim, no momento mesmo em que se tomba uma igreja colonial barroca como monumento nacional, a cultura brasileira está sendo redimida e a nação, simbolicamente reconstruída, em oposição à possibilidade de sua desintegração. Desse modo, a redenção é, simultaneamente, o efeito a precondição das narrativas de patrimônio cultural.

Usadas com o propósito de redimir o Brasil da história e da contingência, essas narrativas transformam simbolicamente um conjunto heterogêneo e fragmentário de itens culturais em uma entidade total e coerente, classificada como “cultura brasileira”. Por intermédio de monumentos, cidades históricas, relíquias, práticas culturais objetificadas, etc.. elas exibem visões do Brasil fundadas na imediaticidade. Meu objetivo é mostrar algumas mediações que estruturam essas visões.

Redimida como “civilização” e “tradição”, a nação, na narrativa de Rodrigo, individualiza-se, na medida em que consegue resgatar e preservar essas entidades que sustentam sua memória e identidade. Em outras palavras, a nação é redimida na medida em que mantém os vínculos com sua “tradição”, tornando-se assim, “civilizada”. O Brasil é simbolicamente visualizado por meio de elementos concretos e contingentes, tais como objetos, monumentos, cidades históricas, que são usados para representar verdades transcendentes como a “tradição” e a “civilização”. Esses elementos são usados para desencadear em cada um de nós a experiência de uma visão sensível e imediata do Brasil. Essas visões são obtidas por meio da coerência narrativa. Uma coerência ficcional é projetada no mundo que, de outro modo, permaneceria como uma realidade distante e evanescente.

A noção de “cronotopo”, elaborada por Mikhail Bakhtin no contexto de analise de textos literários, pode nos ser útil para entendermos a função simbólica desempenhada por esses elementos concretos e contingentes que compõem o chamado patrimônio cultural.

De acordo com Bakhtin (1985, p. 84), “cronotopos” (literalmente “tempo/espaço) são unidades narrativas nas quais “... spatial and temporal indicators are fused into one carefully thought out, concret whole. Time as it were, thickens, takes on flesh, becomes artistically visible; likewise, space becomes charged and responsive to the movements of time, plot and history. This interconnection and fusion of indicators characterizes the artistic chronotope". Segundo esse autor, os cronotopos "... are the organizing centers for the fundamental events of the novel. The chronotope is the place where the knots of the narrative are tied and untied" (ibid., p. 250).

Em outras palavras, é por intermédio dos cronotopos que as narrativas ganham coerência. Nesse sentido, os elementos concretos e contingentes que compõem um patrimônio cultural são usados como "nós" (knots) em torno dos quais as narrativas de patrimônio são atadas e desatadas. O uso desta noção, entretanto, não nos leva necessariamente a pensar os cronotopos como unidades absolutas, intrínsecas à narrativa. Mas, antes, como o efeito de atos interpretativos, atos de leitura visando a construir a coerência de uma narrativa. Desse modo, os cronotopos jamais se configuram como elementos plenamente presentes e coerentes. Fazendo uso do jargão de Derrida, é possível dizer que os cronotopos estão divididos contra si mesmos, sendo menos uma presença substantiva do que o efeito de uma distância, um objeto de desejo.

Na narrativa de Rodrigo, conforme assinalamos no Capítulo quatro, os monumentos arquitetônicos históricos e religiosos são usados como uma metáfora central. De certo modo, eles podem ser pensados como os "cronotopos", usados para atar e desatar, para dar coerência àquela narrativa. Muitos monumentos, lugares, cidades ou relíquias poderiam ser usados como exemplos. Vale destacar, no entanto, o papel proeminente desempenhado por um deles.

É o caso da mais famosa "cidade histórica" mineira: Ouro Preto. Até os anos 1920, quando veio a ser "redescoberta" pelos intelectuais modernistas", Ouro Preto era mais uma dentre as "cidades mortas" de que nos falava Monteiro Lobato (1956). Após a exploração do ouro, no século XVIII, Ouro Preto entrou em decadência. No entanto, durante a maior parte do século XIX, ela foi a capital da então província e, posteriormente, Estado de Minas Gerais. Ao fim do século, em 1897, veio a ser substituída por Belo Horizonte, cidade planejada segundo concepções urbanísticas modernas e que veio a realizar antigo projeto de mudança da capital (Bomeny, 1994). Uma das conseqüências da “redescoberta” de Ouro Preto pelos intelectuais modernistas foi o seu reconhecimento oficial como “monumento nacional”, no inicio dos anos 30, por decreto presidencial de 12 de julho de 1933, antes mesmo, portanto, da criação do SOPHAN, em 1937. Mais tarde, nos anos 60, a cidade veio a ser reconhecida pelo Unesco como “cidade monumento mundial” e assim, integrada ao “Patrimônio Cultural da Humanidade”.

Nas narrativas do patrimônio cultural do Brasil, Ouro Preto e as “cidades históricas de Minas” desempenham a função de cronotopos por meio dos quais uma narrativa histórico-política e cultural ou artística ganha coerência e autenticidade. Manuel Bandeira, autor de Guia de Ouro Preto, encomendado e publicado pelo próprio SPHAN, afirma: “As duas grandes sombras de Ouro Preto, aquelas em que pensamos invencivelmente a cada volta de rua, são o Tiradentes e o Aleijadinho” (Bandeira, 1938, p.49). No contexto das narrativas de patrimônio cultural, eles são heróis alegóricos das histórias política e artística que se desenrolam no cenário das cidades históricas e nas quais estas desempenham a função dos cronotopos.

No caso das histórias políticas, Ouro Preto e outras “cidades históricas” de Minas são usadas como espaços simbólicos que dão concretude e autenticam os celebrados eventos e personagens da Inconfidência Mineira. A cidade de Ouro Preto é descrita na literatura turística pelas suas associações simbólicas com os eventos e personagens daquele movimento política pela independência nacional, no século XVIII. No texto do decreto presidencial pelo qual Ouro Preto veio a ser conhecido como “monumento nacional”, em 1933, a decisão é justificada pelos argumentos de que “... fazem parte das tradições de um povo os lugares em que se realizaram os grandes feitos de sua história...” (MEC/SPHAN-Pró-Memória, 1985, p. 89). E que “... a cidade de Ouro Preto, antiga capital do Estado de Minas Gerais, foi teatro de acontecimentos de alto relevo histórico na formação de nossa nacionalidade e que possui velhos monumentos, edifícios e templos de arquitetura colonial, verdadeiras obras de arte, que merecem defesa e conservação..." (ibid.). Os acontecimentos e os personagens históricos ganham coerência por meio desses objetos, lugares e casas, elementos concretos e contingentes.

A partir dos anos 30 e 40, a cidade de Ouro Preto veio a se tornar, progressivamente, um importante foco do chamado "turismo cultural". Em seu conjunto, aquela área passou a ser descrita como a mais importante concentração de arte e arquitetura barroca do continente sul-americano. E também como uma fonte de autenticidade para valores artísticos e arquitetônicos brasileiros. Em termos mais específicos, a arquitetura religiosa barroca produzida na região tem sido fortemente enfatizada nas narrativas de preservação histórica, particularmente na de Rodrigo, com a sua valorização da "tradição" e da "civilização". Ao longo das últimas seis décadas, a cidade de Ouro Preto, as demais "cidades históricas" de Minas, a arte e a arquitetura barroca, as obras de Aleijadinho têm sido cultuadas por meio das práticas de preservação e restauração realizadas pelo SPHAN, por meio de livros e artigos em jornal e revistas, e, principalmente, pelo fluxo de visitação turística nacional e internacional. O conjunto artístico e arquitetônico representado por Ouro Preto e outras "cidades históricas" de Minas é usado para autenticar uma narrativa na qual a região é descrita como o "berço" dos mais autênticos e originais valores da cultura brasileira. Em seu Guia de Ouro Preto, o poeta Manuel Bandeira afirma: "Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente esses sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso começou a se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse partido" (Bandeira, 1938, p. 42). Nas narrativas histórico-políticas, assim como nas narrativas culturais do patrimônio, Ouro Preto é descrita como o "berço" de valores políticos e culturais brasileiros. Nesse sentido, a cidade é, por um lado, um conjunto urbano concreto e contingente, com suas ruas, casas, monumentos, população, etc.; por outro, é a cidade metafórica ou "lendária", associada a valores nacionais transcendentes.

 

Fonte: A retórica da perda, ano  2002
Autor: José Reginaldo Santos Gonçalves
Capítulo V. Redimindo a nação: O Brasil em busca de sua identidade – As alegorias: visões
da autenticidade (parte)
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2015

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