Pequena suíte para Vitória-Porto em cinco movimentos
Pequena suíte para Vitória-Porto em cinco movimentos
1 - O Espírito da Fortuna
Há dias límpidos
nenhuma névoa do oceano ou das montanhas
Dias em que o mar é um espelho sem nesgas
ou ranhuras (mas com ilhas)
Dias em que o céu se debruça sobre a paisagem
Como uma benção azul
Nesses dias minha cidade se revela
indescritivelmente bela e um gozo trespassa
a alma da gente
Dias em que pressinto em todas as tuas coisas,
Vitória, o espírito da fortuna
Como na gaivota, que mergulha nas águas da baía
e delas emerge, trazendo no bico
(lâmina inquieta e prateada) um peixe
2 – Os Primórdios da Terra
Quando Vasco Fernandes Coutinho desembarcou
em vila velha no dia 23 de maio de 1535
encontrou muito mais que uma terra primitiva
habitada por silvícolas nada hospitaleiros
Aqui o português, tão viajado, com aventuras sem conta
na Ásia e na África, deparou-se com o amor
Não o amor de uma mulher ou de outro homem
O primeiro donatário da capitania
só tinhas olhos e coração para Ana Vaz
seu amor ilícito, casado que era com dona Maria do Carmo
Aqui Vasco Fernandes se apaixonou pela nova terra
e quis fazê-la partir frutos até dar inveja
na Europa, velha dama presunçosa
Os encantos do novo continente seduziram
a alma do lusitano, que se deixou ficar
em solo brasileiro e daqui só saiu para ir a Portugal
à cata de recursos para realizar o sonho de tornar
sua capitania uma princesa entre todas as concedidas por El Rey aos amigos da corte
Ficou por lá mais que o tempo de se arrepender
Não havia interesse no progresso da colônia
E Vasco sentia falta do fumo
que aprendeu a apreciar com os nativos brasileiros
da moqueca de sururu
da cachaça e de uma boa índia bolir bolir
apesar da idade
Quando primeiro pisou em solo do Brasil
já havia dobrado a curva dos cinquentas e começava
a descambar ladeira abaixo rumo à velhice
Mas ainda viril gosta de ser pagão nas terras de além-mar para poder estar com as nativas e distribuir sífilis e bastardos em sessões de putaria que nem as casas de tolerância da corte possuíam iguais
Voltou de Portugal tão falido quanto embarcara
mas pensava em logo satisfazer sua sede de orgias
Teve que esperar, pois a vila de Vitória
tinha sido arrasada pelos ataques de índios
e pela incompetência dos que deixara em seu lugar
A melancolia é uma doença da alma
mas arrebenta também a carne e o espírito
e Vasco tornou-se um homem contemplativo
Sem ânimo para nada o capitão do Espírito Santo
passava os dias na fazenda da Ribeira bebendo
fumando e olhando para o mar onde
a lembrança das últimas naus
eram fantasmas vagos que a memória
insistia em não abandonar
Apenas as gaivotas mantinham-se assíduas
em mergulhar nas águas límpidas
da baía à cata de manjubinhas
Vasco se imaginava jovem e intrépido
outra vez descobrindo minas de ouro
O sultão das Índias saltando de um navio prateado
na Pedra Bonita com todo seu séquito
E o próprio El Rey de Portugal passeava
pela beira do cais de Vitória com uma revoada
de pombos a fazer-lhe sombra
Iam todos à caça e ele, Vasco, saltava rios e morros
perseguindo um cervo tão grande quanto um cavalo
Tão diversa a realidade
Ei-lo um velho decrépito quase inválido
recolhido à fazenda da Ribeira
senhor de moscas que lhe entravam pela boca e narinas
A febre tornou-se uma companheira constante
Oh! as calúnias lançadas pelo donatário da Bahia
dando conta a El Rey de que Vasco não era
digno de confiança graças a umas idéias
de tornar a colônia uma Lusitânia melhor que a corte
Será que El Rey acreditara que ele o quis superar
e até substituí-lo no trono? — indagou-se num espasmo
Se não acreditou, como explicar a indiferença
com que fora tratado na corte?
Dane-se Sua Majestade
Um soberano sem visão
não passa de um saco de merda
Será que me desfiz da fortuna deixei a corte a família
e o conforto para terminar pobre e doente
neste canto de mundo esquecido por Deus?
Em meio a essas reflexões Vasco nem viu
que anjo da morte atracara sua nau no porto
e estava agora a seu lado estendendo a mão caridosa
Num segundo as preocupações da vida
já não faziam mais sentido
e Vasco deixou-se dormir profundamente
Como uma montanha
já não indagava
No porto a nau partiu e ninguém percebeu
mas a brisa virou vento sul
e assim permaneceu durante três dias
3 - Indagação à Rocha
No Bar das Artes a solidão me segreda
(in)confidências entre goles de cerveja
mas logo canso-me de ser intelectual
saio a caminhar ao longo da baía
À noite as águas da baía de Vitória
são negras — o fundo de um abismo —
e as ondas batem contra a mureta
como um bicho enjaulado
Já seria talvez a hora de te libertar
oh! meu coração cativo?
A pergunta é só um urro dentro do peito
Ao redor o silêncio da madrugada
só se deixa interromper pelo motor dos poucos carros
que ainda trafegam
Levanto o olhar e me deparo com a figura
elegântica do Penedo
guarda milenar postado à entrada do porto
Que caminho devo seguir? — pergunto.
A rocha continua a me fitar
com seu olhar de granito
A pergunta não fizesse sentido
4 - Os Filhos das Ruas
No cais das lanchas meninos nus
mergulham nas águas poluídas da baía
Desprovidos de tudo estes filhos das ruas
se divertem brincando no meio
da merda e óleo de navio
As ruas próximas ao porto
E a avenida Jerônimo Monteiro
estão cheias de otários a serem assaltados
mas isso pode esperar
O dia quente convida para um mergulho
refrescante e revigorante
E eles (sete ou oito ao todo)
riem alto e mergulham acrobaticamente
dando piruetas no ar antes
de desaparecerem na água escura
5 - Acenando para o Futuro
Os guindastes são aranhas gigantes
tecendo o comércio de produtos
Valha-me, Nossa Senhora, que canoa mais sem tamanho!
— admiravam-se os matutos vindos do interior
ao se depararem com os navios atracados no porto
Isso foi no passado quando o mundo
não era ainda uma aldeia e o porto
apenas a entrada para uma das casas
Hoje avaliamos os navios com um olhar de desdém
e concluímos que todos possuem um quê de déjà vu
E os guindastes
em seus movimentos apontam para o céu
Quando à noite seus gestos de máquina
parecem roçar nas galáxias perdidas
na imensidão do espaço
Eles, guindastes, sabem quão inquieto o bicho homem
e já acenam para os novos tempos
chamando com gestos de ferro
as naves estelares, futuros navios
Fonte: Escritos de Vitória, 5 - Porto, 1994
Autor: Alvarito Mendes Filho
Nascido em Cariacica (ES)
Escritor, Homem de Teatro e Jornalista
Autor de O Sapo Sapeu e de peças teatrais premiadas como: A Barca do Inferno, Um Piano sobre meu coração e O Menino Letrado.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2020
Os práticos escalados para atuar são acionados pelo Centro de Coordenação de Operações e chegam até os navios conduzidos pelas lanchas de apoio
Ver ArtigoProjetado pelo arquiteto Ricardo Antunes foi construído em 1939, no bairro Santo Antônio, o hidroporto que ficou popularmente conhecido em Vitória como "Cais do Avião"
Ver ArtigoQuando Vasco Fernandes Coutinho desembarcou em vila velha no dia 23 de maio de 1535
Ver ArtigoOs primeiros estudos sobre o porto de Vitória foram feitos pelo engenheiro norte-americano Milnor Roberts, em 1879
Ver ArtigoApesar da construção do porto ter sido iniciada em 1906, suas obras só foram definitivamente concluídas em 1940, com a inauguração do Cais Comercial
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