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Por que Peroás e Caramurus? - Por Areobaldo Lellis Horta

Igreja da Misericórdia, 1908

Ouvi algures, que as denominações dadas a tais partidos, de Peroás e Caramurus, não eram originais, mas, vindas de outras plagas e adotadas entre nós pelos que encabeçavam o movimento de fé religiosa entre as duas imagens, de vez que o Benedito era um só — o preto de Sicília. Porém, há uma característica que não se pode desprezar, no exame desses nomes. Essa característica é a cor. Diz o saudoso conterrâneo padre Antunes de Siqueira que, para distinção dos partidos, admitiram eles as cores azul para os peroás e o verde para os caramurus. Acima, dissemos que, entre esses últimos, a cor verde era, nas opas, a da murça, sendo a mesma a do guião da irmandade, sempre que ela abria a procissão nos dias de festas de São Benedito do São Francisco. Do que tenho lido, nada hei encontrado que assegure terem vindo as duas denominações de além fronteiras e, consequentemente, algo que nos fale sobre a razão de ser das duas cores, cada qual símbolo de um partido. Se parece nos faltarem esses dados históricos, existe uma fonte, na qual se poderá encontrar aquela razão de ser. É ela o testemunho dos velhos pescadores capixabas, proprietários de canoas e lanchas, as primeiras de tipo diferente, segundo fossem empregadas na pesca da enseada ou fora da barra, conhecidas por "canoas do alto", as lanchas, destinadas às pescarias a grandes distâncias, especialmente nos abrolhos, em cujos mares a fauna ainda hoje continua abundante. Pois esses antigos lobos do mar que, em suas embarcações a vela, enfrentavam toda sorte de intempéries em busca do pescado, esses homens como o velho Passinhos, o Manelzinho Encarnação, o velho Bino, e outros, são as fontes, onde se poderia buscar as origens daquelas denominações em relação às cores distintivas? O que relatavam eles?

Dos meus tios, um deles ainda vivo e octogenário, sempre ouvi referências ao assunto e assim relatavam, como colhido dos seus maiores: Os nomes de peroás e caramurus, dados aos partidos, teria nascido de uma discussão entre pescadores, adeptos das duas facções, sendo escolhido a cor de dois peixes das nossas águas, para batizá-los. O peroá, peixe que vive no alto mar, porém, abundante em nossas costas, de cor azul; e caramuru, peixe que vive nas grotas, de preferência, nos cais, também de frequência comum em nossas enseadas, de cor acentuadamente verde. É essa, ao meu ver, a mais aceitável explicação sobre as origens daquelas denominações, por serem ambos os peixes nativos em nossas águas e como tal conhecidos de nosso povo antes do aparecimento dos partidos, havendo assim mais propriedade na razão de ser daquelas origens.

Linhas acima há uma referência à "Banca do Peixe", que merece uma explicação sobre a sua localização e finalidade.

Em seguimento à atual ladeira do Sacramento, que termina na esquina da Rua Duque de Caxias com a Praça Costa Pereira, existia a Rua do Sacramento, cujo lado direito era constituído das casas que vão do prédio onde funciona a Central Brasileira, até um "caldo de cana" que fica detrás do Banco Hipotecário de Minas Gerais. A rua continuava até o mar, terminando por um pequeno cais. Aí estava instalada a "Banca do Peixe", local determinado pela Governadoria Municipal da época, para a venda de todo o pescado público. Ali, aportavam as canoas do alto ou da enseada, com o produto da pesca para aquele fim. A "Banca" existiu até quando foi edificado o nosso primeiro Mercado, o qual ocupava o lugar, onde foi construído o edifício dos Correios e Telégrafos.

Segundo acima ficou dito, "Peroás" e "Caramurus" dividiram o ano religioso, no tocante às festividades de São Benedito, em dois períodos distintos; um, dos "caramurus", que ia de 1° de janeiro a 30 de junho; outro, dos "Peroás", de 1° de julho a 31 de dezembro. À meia noite do dia 31 de dezembro, subiam os Caramurus, passando-lhes os Peroás a vara do poder. A 1° de julho, dava-se o mesmo, subindo os Peroás, que recebiam a vara. Esta era simbólica, não existia, sendo uma criação da fantasia do povo, que, como tal, se fixou em definitivo na nossa tradição.

A festa dos Caramurus era tão retumbante como a dos Peroás, malgrado os esforços de parte a parte, para que cada qual delas superasse a outra. Essa preocupação vinha de longe, quiçá desde o começo das ações partidárias, pois a respeito diz o padre Antunes de Siqueira, em seu interessante trabalho sobre os nossos usos e costumes: "Forçoso é confessar que ambos os partidos desafiavam-se  anualmente, por empenhos e sacrifícios, para exaltar os esplendores do culto, que consagravam ao taumaturgo da Sicília."

Com o corte do mastro de São Benedito, levado a efeito no adro da igreja do Rosário, na hora justa da passagem do ano velho para o novo, entregavam os peroás a vara aos caramurus naquele instante, enquanto lamúrias se ouviam e lágrimas corriam entre as dedicadas devotas do Bino. No Convento de São Francisco, interna e extremamente iluminado, os sinos repicavam, enquanto foguetes e morteiros enchiam o espaço com o seu espoucar estridente, anunciando a subida ao poder dos caramurus e, ao mesmo tempo, a entrada do ano bom, prenhe de promessas fagueiras e doces esperanças. Às dez horas do dia 1° celebrava-se a missa solene e votiva, a fim de que o partido não decaísse nunca sob a proteção do Santo Milagroso. Durante o dia, quando grande era a azáfama, no preparo do coreto, enfeitando-se de galhardetes e bandeiras multicores, enquanto os brindes variados iam chegando, para o leilão da noite. Às duas da tarde, a banda caramuru, em seu fardamento verde, percorria as ruas da cidade, dando as boas festas, acolhida nos lares caramurus, onde a cerveja do Schmidt e a gengebirra do Tonini estouravam, como se fossem garrafas de "Cliquot". Durante o dia, os sinos não descansavam em seus repiques festivos e os foguetes subiam aos ares, na explosão do entusiasmo dos caramurus. Em meu tempo de menino era o sisudo preto Rufino, alto, magro, com o seu cavanhaque austero e solene quem fazia prodígios no campanário do lendário convento, tangendo os velhos sinos, em cujos repiques raramente faltava o "batuque da cozinha, / sinhô não qué, / por causa do batuque, / queimei o pé".

No cais do Porto dos Padres os catraieiros embandeiravam os seus botes e um pequeno quiosque, ali existente para servir o café com pão aos canoeiros vindos das redondezas mercadejar a sua quitanda e aos barqueiros que desciam diariamente o Santa Maria carregados nas suas pranchas do café que Santa Leopoldina fazia descer, o pequeno quiosque amanhecia engalanado, como bom caramuru que era. Vale recordar a figura singular daquele marceneiro da Rua General Osório, de nome Afonso e conhecido por toda a gente pelo apelido de Afonso "Pomada", por sua especialidade em lorotas e gargalhadas. Pomada era ótimo pianista, caramuru de quatro costados, integrado na filarmônica, porém, só tocando na passeata de 1° de janeiro, quando subia o partido e na procissão do milagroso São Benedito. Naquelas ocasiões, Pomada entre os demais músicos fazia vibrar o seu instrumento, porém, nunca ostentando a farda verde da banda. Apresentava-se, então, de calça de casimira listada, colete fantasia de tonalidades verdes, sobrecasaca, cartola de feltro e botinas de polimento. Somente naqueles dias festivos era que Afonso "Pomada" aparecia com a sua indumentária de diplomata, em noites de banquete. Fora dos mesmos, lá estava ele diariamente, da manhã ao anoitecer, na modéstia de sua profissão, dando trela aos que passavam e ,quando a sós, cipiando a madeira, permanecia cantarolando o seu velho estribilho: "Porque te amo, / Me desprezas tanto; / Porque te amo,/ Me desprezas tanto." — E não saía daquilo. Em frente à sua oficina, o velho Rosemberg, em sua faina de sapateiro, batia a sua meia-sola, deliciando-se com o cheiro do picadinho à baiana, que o restaurante "Porto Rico" anexo à sua casa, lhe fazia sentir.

A festa do São Benedito de São Francisco se realizava em junho. Dois meses antes começava a coleta de esmola, para maior pompa das cerimônias. Aos sábados, uma das mulheres do povo, acompanhada de um menino e uma menina, percorria a cidade, conduzindo em pequena caixa envidraçada, toda florida, a imagem do Menino Jesus, enquanto a criança, que a acompanhava, recolhia em uma sacola as espórtulas oferecidas. Coube-me, certa vez, o prazer de realizar essa peregrinação pela cidade, conduzindo a sacola, por uma promessa feita por minha bondosa avó, devota fervorosa de São Benedito.

O templo sofria uma caiação em regra e, no mês das festividades, as mulheres do povo, adeptas do partido, aos domingos, se entregavam à tarefa de capinar a ladeira que dava acesso ao Convento. Para amenizar o trabalho, a banda caramuru realizava uma retreta, até findar o serviço.

As festas do São Benedito de São Francisco se revestiram sempre de muita pompa e entusiasmo da parte dos seus numerosos devotos. No adro da igreja, a decoração era grande, à noite, feérica a iluminação. Das sacadas das residências dos caramurus, desde a véspera, giornos e lanternas multicores pendiam acesos até horas adiantadas da noite, renovando-se as velas sempre que necessário. Na missa de festa a igreja era sempre pequena, para conter os fiéis, não apenas da cidade, como das redondezas por onde se espalhavam devotos do Santo. A procissão, com incalculável acompanhamento percorria o itinerário, com as ruas atapetadas de folhas de mangueiras, estendendo-se pelas mesmas inúmeras girândolas, queimadas à medida que o andor se aproximava. No Porto dos Padres, a Rua do Comércio era toda embandeirada, assim como os botes, de cujo interior girândolas eram queimadas nas próprias mãos dos catraieiros, enquanto foguetões subiam aos ares, fazendo estourar, à semelhança de salvas de morteiros. Nas janelas, por cujas ruas passava o suntuoso préstito, ricas colchas eram estendidas à guisa de ornamentação. Na parte direita do adro do templo, o leilão funcionava, desde as vésperas, com grande afluência de cavalheiros e senhoras e senhoritas, enquanto o Donêncio, leiloeiro da época, apregoava as prendas, entre ditos chistosos, às custas dos quais os assistentes se divertiam. Na noite da festa, terminado o leilão, começava a queima de fogos de artifícios, como a roda girante, os foguetes de corda, o parafuso e outros da arte pirotécnica local, terminando sempre com o quadro do São Benedito.

Subindo os Peroás a 1° julho, as suas festas tinham início na tarde de Santa Catarina, com as regatas, corridas em canoas erguidas, indo da Pedra Branca, em frente ao Penedo, até o cais do Jardim Municipal. Eram, de regra, remadas por doze ou quatorze pescadores, sentados à borda das estreitas embarcações, sem que nunca se registrasse o menor incidente. Enquanto o povo se apinhava no jardim e se detinha nos pontos donde era possível assistir à disputa do páreo, uma das lanchas da Empresa Netto trazia de Itacibá o tradicional Mastro de São Benedito, tendo no tope, desfraldada dentro de um quadro, a imagem do taumaturgo da Sicília com o Menino Jesus em um dos braços. A chegada do mastro se dava no mesmo cais do Jardim, sendo retirado da prancha, que o trazia, pelos tripulantes da canoa vencedora, ao tempo em que salvas eram dadas nos morros, foguetes subiam aos ares e os sinos repicavam em festa, anunciando o acontecimento. A "Filarmônica Rosariense", sempre regida pelo velho professor João Azevedo, saudava a chegada do Mastro com vibrante marcha, enquanto o préstito se organizava, abrindo-o o pesado mastro, carregado aos ombros pela tripulação triunfante na regata, acompanhados dos demais, de remos alçados e o povo, tendo à frente a banda dos "Peroás". Em triunfo, chegava ele ao adro do Rosário, onde era plantado ou fincado, entre cânticos e vivas entusiásticos. Mais abaixo, na área compreendida entre as duas escadas, que davam acesso ao templo, o congo ou camundá entrava em atividade, sob a direção do preto velho, conhecido por Mestre Antônio do Congo, em seus cânticos lascivos, e a cujo som, mulheres do povo, devotas do Santo, dançavam em requebros de quadris, alegrando os assistentes. No coreto, levantado à esquerda da igreja, corria o martelo sobre os brindes ofertados para aquela primeira noite festiva, sempre com o mesmo Donêncio apregoando as prendas, ora para serem oferecidas à moça mais bonita ali  presente, ora para a mais feia.

A Empresa Netto, que mantinha um serviço regular da navegação entre Vitória e Vila Velha, cedia sempre uma das suas embarcações, para fazer o transporte do Mastro, de Itacibá para aqui. Antes de construir o jardim Municipal, com o seu cais, no local onde se acha levantado o edifício "Glória", tanto o ponto final da regata quanto a chegada do Mastro se verificavam no cais da "banca do Peixe" segundo sempre ouvi dizer. Só depois, então, quando preparado o cais do Jardim, o ponto final de ambas as chegadas era ali. Quando em minha meninice comecei a entender as coisas e fixá-las na memória, o Jardim Municipal, de Jardim só possuía o nome. Cercado de grades na frente, com largo portão dando para o começo da Rua Pereira Pinto, havia em seu interior um número regular de bancos de ferro espalhados aqui, ali e acolá, ostentando no centro um repuxo, cercado de vasta bacia de cimento, para receber a água, que raramente aparecia. Algumas árvores frutíferas de grande porte, sem utilidade apreciável, pois os seus frutos eram apontados como prejudiciais à saúde e nada mais. Para o lado do mar, extenso muro corria de fora a fora. Leiras floridas, não se via uma única.

O "Carlos Alberto", da frota Netto, lancha de porte elegante e grande deslocamento, era o predileto, para trazer o mastro, rebocado em pranchas e sempre seguido de uma flotilha de botes embandeirados que, cedo, buscavam, Itacibá, onde aguardavam a chegada do "Carlos".

As regatas, chamadas de Santa Catarina, foram até o governo Henrique Coutinho. Naquela ocasião, os "Peroás" entenderam de emprestar um novo cunho de imponência às regatas e à vinda do mastro, transformando assim o "Carlos Alberto" em uma nau catarineta. Deste modo, fizeram guarnecer o navio por uma turma de "oficiais" da nau, os quais envergavam um fardamento azul claro, modelado pela farda de grande gala dos oficiais da nossa marinha de guerra, não faltando o chapéu armado, "boné de dois bicos". No primeiro dia de prática da inovação, alcançou ela sucesso sem igual à chegada do navio, conduzindo o mastro. O desembarque daquela oficialidade luzidia e bem posta em suas fardas, de um azul celeste, entusiasmou. Porém, a nota original foi dada no dia seguinte, quando a "oficialidade", tendo à frente o seu comandante, se dirigiu ao Palácio, a fim de apresentar, em nome dos "Peroás", saudações ao presidente do Estado. Fui testemunha ocular do fato. À garrida "oficialidade", seguida de regular número de populares, ao passar a igreja da Misericórdia, onde está hoje o edifício da Assembléia, a guarda, postada à porta do Palácio, bradou "às armas" e o pequeno pelotão ali existente, formou, sob o comando de um sargento.

Ouvida a voz do sentido, seguiu-se a de "apresentar armas": o que foi executado, recebendo os nossos supostos oficiais as continências, por um simples engano. A oficialidade foi recebida pelo ajudante de ordens, capitão Almeida, que a conduziu à presença do chefe do Estado, descendo depois à casa da guarda, para avisar ao comandante da guarnição que aquela gente não eram oficiais de verdade. Pouco tempo depois, a guarnição da nossa Nau Catarineta deixava o Palácio, sem mais continências, partindo garbosa, rumo à Capixaba.

As festas de São Benedito do Rosário eram precedidas dos mesmos preparativos da de São Francisco. Pintura radical da igreja, interna e externamente, dos muros e grades, que cercavam o adro e de toda a escadaria com os respectivos muros de amparo. Nisto, iam meses. Ao entrar dezembro, começava a grande faxina de capinação, nada ficando. De tal serviço se encarregavam mulheres e homens do povo, devotos do santo, aos domingos, depois do almoço e sempre ao som da congada do mestre Antônio, em sua inseparável buzina e com o seu inigualável estribilho:

"Vamos buscar no mar;

Cana crioula é bom de chupar."

De quando em vez, uma cabrocha mais entusiasta punha na cintura a faquinha da capinação e caía na roda do congo, dançando ao estridor dos grandes tambores das buzinas, do reco-reco e da cuíca, enquanto a assistência aplaudia e solicitava fossem bisados os requebros.

E a faina era de todos os domingos, até a chegada da festa. À meia noite era celebrada, a 25, a missa do Galo, em que se rememora a sentença de Jesus a Pedro sobre ele o negar três vezes, antes que o galo cantasse.

Nos lares, a cerimônia religiosa era esperada, em torno das mesas de jantar, onde ao lado do bom vinho se comiam rabanadas e consoadas. Além da missa no Rosário, para os peroás, celebrava-se também na Matriz, ambas concorridas de fiéis. No dia imediato, tinha lugar a missa do Menino Deus, para seguir-se, a 27, a festa de São Benedito. O tempo enchia-se, não faltando um orador sacro, para exaltar as virtudes do eleito do Senhor. Monsenhor Eurípides Pedrinha, enquanto aqui permaneceu, foi sempre o preferido para ocupar o púlpito e jamais esqueceu de afirmar, em seus sermões, que "São Benedito era preto na cor, mas branco nas ações".

As procissões do Bino, como vulgarmente era conhecido pelos seus devotos o São Benedito do Rosário, foram sempre de maior imponência, quer pela multidão que o acompanhava, quer pela maneira festiva com que era ele recebido, com intenso tiroteio de salvas e número incontável de girândolas, que subiam aos ares. A capixaba se engalanava e no mar todas as embarcações embandeiravam em arco, homenageando o taumaturgo da Sicília. Uma nota interessante era o hábito do andor subir as escadarias, de costas, dando a imagem a frente para a considerável massa popular, que tomava parte no faustoso cortejo. As peroás acompanhavam a procissão e compareciam às demais cerimônias, calçando, as mulheres do povo, sandálias verdes e muitas senhoras e senhoritas sapatos da mesma cor, em patente demonstração de desprezo pelas cores dos caramurus.

Estes, por sua vez, procediam da mesma forma.

Às vezes resultava esse costume em algum conflito, entre mulheres do povo mais apaixonadas e exaltadas. Esses conflitos, de quando em quando, se registravam também, entre as duas bandas de música, se elas se encontravam em uma rua, ou estivessem tocando em alguma festa.

À semelhança do que se dava com a banda dos caramurus a 1° de janeiro, no dia de Natal a banda peroá percorria, à tarde, a cidade, dando as boas festas aos devotos do Bino, sendo acolhida nas residências dos peroás com mesas de doces e bebidas, e sempre com apreciável acompanhamento de adeptos.

Se a banda caramuru tinha o seu Afonso "Pomada", marceneiro e pistonista, que só tomava parte nas tocadas de 1º de janeiro e no dia da festa de São Benedito de São Francisco, metido em sua sobrecasaca, o rosariense possuía também um flautista, que só aparecia na banda no dia de Natal e da festa do Bino.

Era ele José Pandolfo, ótimo alfaiate, e que envergava naqueles dois dias o seu bem talhado "smoking", chapéu de palha e sapatos de verniz.

Uma figura singular e de grande popularidade era a preta Filomena, peroá de sete fôlegos, apelidada "Mãe da música", porque sempre de azul e sandálias verdes, acompanhava a banda, em suas tocadas, junto ao tocador do bombo, fizesse sol ou chovesse, mantendo aberto um guarda-sol, com o qual cobria aquele músico.

Desde a noite de 24, o coreto sempre repleto de pessoas e cheio de brindes, funcionava sob o martelo do Donêncio. De tudo havia: doces, frutas, criação e não raro, uma rês, amarrada do lado de fora, constituíam a infindável série de prendas. À entrada da igreja, ao lado esquerdo, se achava sempre, sentado a uma mesa, um membro da Provedoria, escolhendo e alistando os que desejassem ingressar na irmandade.

O que havia de mais tocante e emocional nestas festividades, era o corte do mastro, na noite de São Silvestre, à última hora de 31 dezembro. O corte do mastro consistia em desenterrá-lo, sendo este ato cercado de certo cerimonial, em que tomavam parte os mais dedicados peroás.

O templo era aberto às primeiras horas da noite, a ele afluindo quantos desejassem participar da solenidade.

A banda rosariense lá se achava executando "lindas peças do seu vasto repertório", como noticiavam os jornais da época e, no coreto, o Donêncio queimava as últimas prendas ao bater do martelo. À medida que a hora se aproximava, os semblantes iam-se modificando, tomados de um ar de tristeza e saudade dos dias festivos, que tão rápidos se escoaram.

Meia noite.

O convento de São Francisco iluminava-se. A sua filarmônica saudava a subida dos Caramurus, os sinos atroavam os ares, em hora à entrada do Ano Bom. Só no adro do Rosário havia lágrimas, à proporção que musculoso braços de peroás faziam, a princípio, estremecer o mastro, depois suspendê-lo a certa altura para, em seguida, ir tombando-o lentamente, enquanto mulheres do povo, ardorosas devotas de São Benedito, abraçavam-se ao mastro, em lágrimas de emoção, para levá-lo e depositá-lo no interior da igreja.

 

Fonte: A Vitória do meu tempo – Academia Espírito-Santense de Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 2007 – Vitória/ES
Autor: Areobaldo Lellis Horta
Organização e revisão: Francisco Aurelio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho/ maio/2020

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