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São Mateus mais de 400 anos de solidão - Gabriel Bittencourt

Mercado que foi demolido,1998

A história do município de São Mateus começa quando o navegante Cristóvão Jacques, entre os dias 4 a 8 de julho de 1504, teria chegado ao rio Cricaré (São Mateus). Mas os primeiros fatos ali ocorridos estão relacionados aos primórdios das vilas do Espírito Santo e Vitória e às dificuldades do primeiro donatário Vasco Fernandes Coutinho, que, desde a sua chegada, teve de usar bombardas para afugentar indígenas hostis.

Coutinho havia recebido a capitania por determinação real de D. João III. Após cinco anos de trabalho, que considerou promissor, partiu para a metrópole, com o objetivo de conseguir recursos para desenvolver a capitania, cujo governo foi entregue ao fidalgo (degredado) dom Jorge de Menezes. Nesse período, intensificaram-se as hostilidades entre colonos e índios, devido aos maus tratos impostos a estes.

Explodiu, então, luta cruel e selvagem, cujas consequências foram desastrosas: lavouras incendiadas, gado dizimado, tocaias, colonos sacrificados e devorados. Com a morte de D. Jorge de Menezes, a capitania ficaria a cargo de D. Simão Castelo Branco, que logo morreria também. Como resultado, a primitiva vila transformou-se em um monte de ruínas. Muitos colonos partiram então para as capitanias vizinhas, e/ou, talvez, para a região do São Mateus (onde, posteriormente, chegariam as famílias de Vitória e Vila Velha para ali formarem uma comunidade).

Morte de Fernão de Sá

Os indígenas não davam trégua aos colonos. Sitiado por tribos hostis na ilha de Vitória, Vasco Fernandes Coutinho pediu socorro ao 3° Governador Geral, Mem de Sá, que havia chegado ao Brasil no ano anterior.

O governador enviou seu próprio filho, Fernão de Sá, no comando de cinco barcos com aproximadamente 200 homens. "Chegando à Capitania do Espírito Santo, entrou, por conselho dos que com ele viajavam, pelo Cricaré e foi dar em três fortalezas muito resistentes que se chamavam Marerique... e ele morreu ali pelejando... Dou graças a Deus por acabar Fernão de Sá nesta jornada, em seu serviço de Vossa Alteza". Assim, Mem de Sá anunciava à regente D. Catarina a morte do filho de 20 anos enviado para dominar os índios que se constituíram em permanente obstáculo à colonização portuguesa do Espírito Santo. Mas se o dever de súditos do Reino ditou-lhe tal carta, os sentimentos de pai levaram-no a não receber os companheiros do filho, que foi morto no terceiro ataque aos indígenas. Anchieta, o Apóstolo do Brasil, em seu poema De gestis Mendi de Saa, realça a bravura de Fernão e faz elogios a Mem de Sá.

Anchieta

A propósito de Anchieta, é interessante observarmos a verdadeira lenda criada na tentativa de ligá-lo à fundação do município. O historiador Basílio de Carvalho Daemon 1834-1893, escreveu que "no intuito de pacificar e de concretizar a ocupação chegou, a 21 de setembro de 1556, o padre José de Anchieta, à frente de outros jesuítas. Chamou a povoação de São Mateus, nome pelo qual, daí por diante, o rio ficou conhecido".

"A passagem desse venerando apóstolo, com Cardim e Cristóvão de Gouveia, por uma povoação do norte da capitania, a 22 de setembro de 1583, dia de São Mateus, fê-los darem esse nome à localidade". (Mário Aristides Freire).

Há, também, uma crença geral de que Anchieta teria edificado a primeira igreja de São Mateus, "cuja ruína ainda hoje se localiza na parte alta da cidade", sendo que Brás da Costa Rubim, 1812-1871, embora persista na participação do jesuíta na fundação da cidade, descarta a possibilidade da sua participação na construção do templo, hoje em ruína, na Cidade Alta: "Ao norte visitava Anchieta uma pequena povoação na margem do rio Cricaré no dia em que a igreja celebrava o martírio do apóstolo São Mateus... Pouco a pouco foram concorrendo a fazer parte desta povoação alguns moradores da vila do Espírito Santo, e em breve tempo levantaram uma igreja à margem do rio no sítio hoje chamado Porto Grande".

Anchieta, no entanto, ao chegar ao Brasil com Duarte da Costa, em 1553, ainda não havia recebido ordens e já havia um decênio do crucial ataque Indígena à sede da capitania, quando, supõe-se, alguns habitantes foram ter ao Cricaré.

Assim sendo, na época da fatídica governança dos fidalgos D. Jorge de Menezes e D. Simão Castelo Branco e possível fuga dos colonos para o Cricaré, Anchieta era apenas ainda adolescente estudante canarinho. Por outro lado, a referência de Cardim a José de Anchieta, aos 22 de setembro de 1583, é na Aldeia de São Mateus, na antiga Capitania de Porto Seguro, ocasião, aliás, em que o último se encontrava bastante enfermo. Logo, parece totalmente impraticável Anchieta visitar São Mateus e ainda fundar uma igreja devido a seu estado de saúde debilitado, conforme correspondência ao padre-geral em Roma algum tempo depois.

Ruínas

Emane Cunha Sodré, nascido no município em 1902 e descendente de tradicional família introdutora das fazendas de café na região, afirmou que "há tempos atrás, no Porto de São Mateus, existiam ruínas de uma igreja", que ele chegara a conhecer.

Eugênio Neves da Cunha, advogado e autor de inúmeros trabalhos sobre "Questões de Limites Bahia-EspíritoSanto-Minas Gerais", confirmou também a existência da ruína no Porto que chegou a conhecer como da primeira igreja de São Mateus. Segundo o mesmo advogado, a ruína existente na Cidade Alta seria fruto de uma nova Matriz em construção e interrompida por falta de recursos financeiros. Procura embasar sua hipótese no argumento de que, na atual igreja de São Mateus, existem vestígios de duas portas laterais, designativas da matriz, fechadas precipitadamente para sua transformação em capela.

É, portanto, perfeitamente aceitável a afirmação do historiador Brás da Costa Rubim, quanto à fundação da primeira igreja de São Mateus no porto da cidade, uma vez que seus vestígios chegaram até nossos dias com testemunhas oculares, desdizendo, assim, a crença da atual ruína ser o vestígio de uma igreja construída pelo "Apóstolo do Brasil".

Influência baiana e comunicação

Com a passagem da Capitania ao poder real, em 1718, passou a governá-la, a partir de 1721, o capitão-mor Antônio de Oliveira Madail. É desse período que data a colonização decisiva de São Mateus, concedendo Madail faculdade aos moradores da capitania para povoar a região, inclusive com transporte grátis.

A influência política da Bahia sobre São Mateus remonta a 1764, quando a vila foi instalada pelo ouvidor da capitania de Porto Seguro, que, arbitrariamente, estendeu sua jurisprudência até o Rio Doce. A integração do norte da capitania só seria reconhecida pela Carta Régia de 29 de março de 1809 e, posteriormente, pelo aviso de José Bonifácio de 10 de abril de 1823, talvez, como prêmio ao Espírito Santo pelo seu desempenho no processo da Independência. De qualquer forma, a influência econômica baiana era inconteste em São Mateus, pesando sensivelmente na "exportação" da farinha de mandioca para aquela capitania.

A ocupação capixaba da região não se fará sem muitos percalços, entre os quais a dificuldade de vias de comunicação, falta de braços e investidas indígenas que contribuíram para que o espaço, entre os rios Doce e São Mateus, continuasse a "terra de ninguém", verdadeiro vazio demográfico.

A única comunicação possível, a embarcação a vela, deixou um traço marcante na cidade. Localizada numa região carente de pedras, a cidade aproveitar-se-á das que vinham como lastro das embarcações que ali aportavam em busca da farinha de mandioca, para calçamento das ruas, construção dos prédios, e, até mesmo, do próprio porto.

Distando quase duzentos quilômetros em linha reta da capital, sua produção voltar-se-á, em geral, para as pequenas cidades do sul da Bahia, mas a farinha de mandioca encontrará mercado certo até mesmo em Salvador, Vitória ou Rio de Janeiro. É assim que entendemos a divisão a que estava sujeita ao tempo da Independência, pelo que lhe representava o mercado baiano, relutando São Mateus em jurar a Independência, sob a jurisdição do Espírito Santo. Tal era a importância da produção de farinha do município que, em 1856, chegou-se a "exportar" 25 mil sacos só para o Rio de Janeiro.

Nessa dinâmica entendemos, também, a modernização do Porto no século XIX, graças à economia da mandioca, que também criará uma infraestrutura à exportação do café. Não da histórica cidade, cujas terras das cercanias não se prestavam muito ao cultivo do café, mas do curso mais elevado do rio, nas proximidades da Serra dos Aimorés, onde se abriram as primeiras fazendas de café da região.

Um dos primeiros desses fazendeiros, Antônio -Rodrigues da Cunha, futuro barão de Aimorés, já possuindo uma fazenda na primeira cachoeira do braço sul do São Mateus, denominada Cachoeira do Cravo, procurou, em meados do século passado, carrear destacados trabalhadores do litoral para a região.

Esta área mais tarde abrigaria grande parte dos retirantes cearenses vindos para o Espírito Santo e imigrantes italianos, às vésperas da proclamação da República, com a fundação de Nova Venécia.

Graças a essas iniciativas, a zona noroeste do Espírito Santo foi, cada vez mais, povoada e intensificada sua cafeicultura, em cujas terras a oeste do Porto de São Mateus se adaptou.

Nesse período contavam-se os fazendeiros abastados como o já citado Barão de Aimorés, proprietário da Fazenda São Domingos, onde se cultivava a cana-de-açúcar em larga escala. Esta fazenda chegou a possuir infraestrutura suficiente para construção de três embarcações de porte: o "Santa Rita", "Maria", e o "Constância", que, pela barra do São Mateus, transportavam açúcar, farinha e café para o Rio de Janeiro ou a Bahia.

A história registra ainda nomes de outros grandes fazendeiros como Graciano dos Santos Neves (Fazenda de Palhar), José Gomes Sodré (Fazenda Córrego Grande), Otávio José Esteves, Jacinto Rodrigues (Fazenda Jurema), Manoel Ribeiro Silvares (Roda d'Agua), José Esteves e o Barão de Timbuí (Fazenda Itaúnas), entre outros.

Além das embarcações à vela pelas quais esses potentados rurais do norte da província faziam o comércio com as províncias vizinhas, São Mateus tornou-se escala obrigatória dos vapores, quando se ensaiou a navegação regular no Espírito Santo. Naquele porto registrou-se a presença dos "Diligente", "Juparanã", "Alice", "Santa Clara", entre outras embarcações, pertencentes à Companhia Espírito Santo e Caravelas. Mais tarde, os navios do Lloyd Brasileiro: "Mayrink", "Vitória", chegando ao apogeu com os vapores de "Miranda, Jordão & Cia.", que, de 15 em 15 dias, aportavam à cidade.

Conclusão

Na história de São Mateus dois pontos passaram despercebidos aos historiadores tradicionais. Primeiro, calculando-se a distância percorrida pelos padres Cristóvão de Gouveia e Fernão Cardim, em 1583, o povoado denominado São Mateus não poderia ser localizado no Espírito Santo. Além do mais, já era denominado São Mateus quando por lá passou o pe. José de Anchieta. Segundo, a primitiva igreja de São Mateus não é aquela cujas ruínas estão na parte alta da cidade, mas, possivelmente, a que foi construída no porto, cujos vestígios o tempo apagou.

Entretanto, resistindo ao tempo, embora demonstrando um sensível desgaste devido ao abandono, a cidade velha, onde se localiza o porto, agoniza. Os casarões, o mercado e todas os vestígios de uma época de esplendor, quando o porto exportava para os principais centros do país, apodrecem silenciosamente. Peças históricas e documentos antigos desapareceram.

Ultimamente, promoções vinham sendo realizadas no sentido de conscientizar o povo à recuperação do porto, do velho mercado, mas fracassaram. A incompetência e o descaso das autoridades não conseguem fazer reviver o artesanato, as comidas típicas como o vatapá, as moquecas de robalo, o muxá, a papa, a canjica e a pamonha de milho verde, arroz de forno, beijos de frade, farinha de coco, os mauês, a baba-de-moça, os papos-de-anjo, a ambrósia, os quindins, o cuscus e as queijadinhas, tradições estas de uma cidade que conheceu época de grande importância e riqueza, onde não faltavam teatro, jornal e uma confeitaria francesa.

Localizada às margens da BR-101, a Rio-Bahia litorânea, o próprio turista em busca da capital soteropolitana, poderia ali encontrar, se fossem revividas, as procissões de fogaréus e das almas, bate-moleques, cavalhadas, alardo, reis-de-moça, marujada, bailes de congo, reis-de-boi, tambor de São Benedito, jongo, e cabula, temas folclóricos que, se devidamente explorados, constituir-se-iam em importante fator para o desenvolvimento turístico do Espírito Santo.

 

A Tribuna, Vitória, 16 de maio de 1975

 

Fonte: Notícias do Espírito Santo, Livraria Editora Cátedra, Rio de Janeiro - 1989
Autor: Gabriel Bittencourt
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro 2020

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