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Uma cidade vestida de sol - Por Bernadette Lyra

os canhões presos à amurada do Forte e apontados para o vulto guardião do Penedo

Está sempre tão vestida de sol que, mais que uma cidade, parece uma pequena oferenda dos deuses, acesa na beira do mar. Pode-se chamar por Vitória ou por Guanaanira, que ela responde. Uma de suas propriedades é trocar de nome, mal se cruzam as fronteiras do tempo, do bom senso e da imaginação.

É feita de sal, rochas e aterros. Mas também, de caravelas, sargaços, astrolábios, naufrágios, algas, flechas, correntes, cilícios, sangue, lágrimas, alguns desatinos, umas poucas alegrias, muitas solidões e outras tantas probabilidades de coisas que queimam e que, por tantos séculos, se acumulam bem abaixo das camadas de breu com que suas ruas, agora, estão asfaltadas.

Sendo protagonista de metamorfoses, não se cansa de se comportar como um caleidoscópio. Assim, onde, outrora, as águas cobertas de lama e mangues lambiam o pé do rochedo, atualmente, os carros deslizam sobre uma avenida de muretas baixas, lado a lado com as embarcações.

Quem nela se encontra e acha que, saindo será mais venturoso, começa a balbuciar o seu nome e a suspirar como um infante, logo que se ausenta. Quem dela está longe, a cada madrugada se embrulha no lençol e pensa, com uma vaga incerteza, que dia ela irá retornar.

Uma lenta viagem começa à sua volta, sem que se necessite de mapas, folhetos ou cartas de navegação. Apenas seguindo na direção aberta do leste, deixando para trás os canhões presos à amurada do Forte e apontados para o vulto guardião do Penedo; vendo ao longe o Convento da Penha como um ninho de ave; avançando sobre as praias encapsuladas de areias brilhantes e postiças, acompanhando o canal em que desemboca o rio Santa Maria; observando as nuvens sobre o pico azul do monte do Mestre Álvaro; passando por canoas, catraias, meninos cor de bronze e restos de cais, nos confins; saindo do bairro Santo Antonio; fazendo uma curva diante da ilha do Príncipe; alcançando os guindastes e cargueiros de bandeiras de todos os países, ancorados no porto.

É possível completar um círculo, partindo e retornando ate o ponto de origem, pois que, posto sobre uma ilha redonda, se obriga a isso quem lhe faz o contorno.

Durante o trajeto, de qualquer lugar que se olhe, o que se vê são as asas de pedra do maciço central que se estendem varridas pelos ventos.

A esta cidade circular não se chega apenas com malas e bagagens. Mas também com delírios e sonhos. O viajante, que atravessa uma de suas pontes, escolhe ou a materialidade das ruas e casas, edifícios e escadarias, ladeiras e praças ou a imaterialidade de uma cartografia regida por cores, odores, murmúrios e tateamentos.

A topografia, então, acontece sob a forma de uma contiguidade que se faz e se desfaz, a intervalos. Em alguns momentos, se escutam os rumores do trânsito, o apito dos navios, a voz das pessoas comuns. Em outros, de repente, o chão se liquefaz debaixo dos pés o ar brilha translúcido, deixando passar maravilhas e horrores que se abrem para além da vida urbana banal.

Se isso lhe acontece com alguma frequência, é melhor nem tentar entender. A única solução é sentar-se em um bar de calçada, desses muitos espalhados por becos e esquinas, pedir uma bebida e se deixar ficar até que se acalmem as batidas no peito, se desacelere a vertigem e tudo fique em paz.

Porque, esteja certo de que é já prisioneiro do mistério desta cidade que, de alguma forma, não terminará, nem mesmo quando a impaciência, a desilusão ou a saudade der por findo seu prazo.

 

Fonte: Vitória, Cidade Sol – Escritos de Vitória nº 25, Academia Espírito-Santense de Letras e Secretaria Municipal de Cultura, 2008
Autora do texto: Bernadette Lyra Nasceu em Conceição da Barra, ES, em 1938. Licenciada em Letras. Doutora em Artes/Cinema. Professora universitária nas áreas de Literatura e Cinema. Poeta, cronista, contista e romancista
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro/2019

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