Uma rua, um jornal & poetas - Por Xerxes Gusmão Neto
Muito se tem falado em anos dourados, na literatura, na música, no jornalismo, na história, em tudo. Que eu acabo por me convencer que de fato aqueles anos foram realmente diferentes. Também pudera, era a passagem da minha juventude, se dourada ou prateada ou parda, não sei ao certo. Mas tudo fica assim nublado e indefinido, até que a minha própria convicção se submeta ao mandamento do modismo e aceite que tudo era da cor do metal precioso, mesmo se as sombras fossem maiores do que a fraca luz incidente sobre nossas cabeças e noites e circunstâncias.
Havia a música romântica estrangeira, trazida com a costumeira competência americana para fabricar gostos e ilusões, em seu cinema produzido mais nos escritórios de marketing do que nos estúdios de gravação. Não é a constatação dessa realidade que vai nos levar à negação simplória da importância de alguns (e bons) cineastas daquelas bandas, principalmente aqueles que conseguiam manter uma certa linha de independência em relação aos cânones estabelecidos pelos magnatas de Hollywood. E não vamos esquecer que cinema é também entretenimento.
Era tempo de bossa nova. Que importa se sofria influência do jazz ou do samba ou de qualquer outro gênero ou ritmo? O legal é que a bossa nova era uma agradável revolução na música popular brasi
leira, que nos fez viver um período de gostoso aprendizado ou, pelo menos, uma fase de muita polêmica e discussão sobre o valor e a importância do novo movimento. Lembro-me, por exemplo, da Semana dos Novos que eu, Cláudio Lachini e Carlos Chenier (o Clube do Olho) promovemos em 1962, dentro do mote de que, quarenta anos após, chegava ao Espírito Santo a Semana de Arte Moderna.
Por falta absoluta de recursos, não conseguimos trazer as palestras do Geir Campos e outros famosos residentes no eixo Rio-São Paulo, mas conseguimos uma memorável participação do Carlos Lindenberg Filho, o Cariê, sempre ligado aos compositores e intérpretes da melhor qualidade. E, ele mesmo, compositor consagrado e cantor não-profissional, que até hoje é pródigo em canjas maravilhosas para um pequeno grupo de amigos. Pois é, ele atendeu ao nosso convite e falou sobre a atualidade da música brasileira num animado encontro na antiga sede da UEE (União Estadual dos Estudantes).
A atividade literária dessa turma jovem era intensa: os já citados, mais Zelia Stein, Newton Copolillo, Domingos Azevedo. Esses todos com espaço na página literária de A Gazeta, sob a inspiração do Jackson Lima, ou na Academia Capixaba dos Novos, presidida pelo Jeová Barros, entidade que o Golpe de 64 fechou, com a sua obtusidade marcante. Havia também uma implacável perseguição por parte de alguns acadêmicos, professores da Universidade que se recusavam a interpretar, tantos anos depois, a importância do modernismo como movimento, ou das idéias novas, sempre soltas por aí.
Outro nicho de incentivo a todos nós, amantes inveterados dos livros, era a Livraria Âncora, de propriedade do advogado Nestor Cinelli, um nome de fundamental importância para a formação livresca de toda essa geração, pois encontrávamos na Âncora não só o ambiente agradável, mas também incentivo, acolhida e — principalmente — crédito aberto. Com o consentimento do Nestor, a sua funcionária Ivanilda, com simpatia, belíssimos olhos claros e uma certa cumplicidade com a turma, foi segurando a barra de todos, muitos com receitas ínfimas e insuficientes para o ofício de comprar.
A Âncora, onde cheguei a deixar cerca de um terço do meu salário mensal, ficava no início da rua Nestor Gomes, rua que nascia na mitológica Duque de Caxias, reduto de pensões, bares, hotéis, gráficas e (mais no passado) a zona boêmia da cidade. Nessa mesma rua se encontrava a entrada para o escritório da farmácia do Manoel Lobato, escritor mineiro que morou em Vitória durante alguns anos e era uma das minhas fontes de aprendizado sobre as artes de escrever e, por que não confessar, também sobre a arte, do viver num mundo capitalista sem esquecer as letras.
Tudo acontecia ali por perto. Os poderes Executivo Legislativo e Judiciário, a movimentação política da praça Oito o grande comércio (o Magazin Helal ficava ali pertinho, já existia a Flor de Maio e já era assim mesmo, sempre vazia), o cafezinho em pé do Almeidinha, a banca de jornais do Coelho, o relógio que funcionava, os comícios, o Banco de Crédito Agrícola (hoje Banestes), o local de encontros. Não é por outro motivo que o jornal A Gazeta até hoje mantém a sua principal coluna de assuntos políticos com o nome Praça Oito.
A rua Duque de Caxias era o outro lado da praça, onde os periféricos andavam à vontade, com suas dores e seus valores. Na ruazinha estreita estava o grande Bar e Restaurante Marrocos, que na década de 60 viveu uma efervescência constante, com a freqüência variegada de gente de todo nível social, cultural e financeiro, de marginais a pastores protestantes, de estudantes duros a empresários endinheirados. Era o point de bancários, poetas, radialistas e jornalistas, comerciantes, portuários, comunistas e direitistas. Todos se banhando nas águas do seu chope, o único da cidade.
Bem pertinho do Marrocos estava a sede do semanário comunista Folha Capixaba, dirigido pelo Hermógenes Lima Fonseca, esse notável cidadão que faleceu recentemente como ídolo dos folcloristas capixabas, tanto os de fazer quanto os de ver e apreciar. Ali trabalhava também o excelente poeta Audífax de Amorim, um monstro sagrado da nossa geração, que deu a maior força para criação de um espaço literário naquele sisudo jornal, o qual foi editado sob a supervisão do Carlos Chenier e abria chance para os nossos escritos e nossas opiniões.
E já que me recordei do Audífax, não custa citar uns verso do poeta que morreu cedo mas deixou a marca de sua obra:
Lâmina que fende a prosa,
tiro-me a mim de mim mesmo.
Deixa a rosa de ser rosa
em ser digerida?
Pois na gênese bipartida
estou aqui. Ou a esmo?
A Folha Capixaba era um jornal assim. Um arauto do comunismo internacional, uma trincheira de resistência contra o golpe de 64. Mas toda a aridez da ideologia, das teorias econômicas, da folhetinagem política, tudo isso — por vezes — cedia lugar aos escritos dos poetas e prosadores de nossa geração, inclusive aos poemas concretistas do Audífax, tão incompreendidos pelos leitores capixabas, como de resto aconteceu com toda a experiência concretista no Brasil. E tudo isso acontecia naquela ruela que nos recebia com o sabor das aguardentes, o frescor dos chopes e o calor das conversas, nesses chamados anos dourados, que dizem ter existido.
Fonte: ESCRITOS DE VITÓRIA — Imprensa – Volume 17 – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo - Jorge Alencar
Sub-secretário Municipal de Cultura e Turismo - Sidnei Louback Rohr
Diretor do Departamento de Cultura - Rogério Borges de Oliveira
Diretora do Departamento de Turismo - Rosemay Bebber Grigatto
Coordenadora do Projeto - Silvia Helena Selvátici
Chefe da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim - Lígia Maria Mello Nagato
Bibliotecárias - Elizete Terezinha Caser Rocha e Lourdes Badke Ferreira
Conselho Editorial - Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Revisão - Reinaldo Santos Neves e Miguel Marvilla
Capa - Amarildo
Editoração Eletrônica - Edson Maltez Heringer
Impressão - Gráfica e Encadernadora Sodré
Autor do texto: Xerxes Gusmão Neto
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2018
Plinio Marchini. Escritor e publicista. Dirigiu vários jornais no Estado, estando atualmente à frente do matutino “O Diário”
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