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Viagem ao Espírito Santo (1888) - Princesa Teresa da Baviera (PARTE VI)

Capa do Livro - Viagem ao Espírito Santo, 1888

Fazenda do Sr. Barboza - Rio Doce, sexta-feira, 31 de agosto

 

Como foi necessário colocar ferradura em alguns dos nossos cavalos, só foi possível sairmos às 8 horas da manhã. Aproveitamos para conhecer um pouco do lugar. A cultura principal era o café. Além disso, plantavam milho, cana-de-açúcar e criavam gado. Também havia sido feita a tentativa de uma pequena plantação de cacau, e assim tínhamos novamente a visão dos pés de cacau de cor escura que não víamos desde o Pará. No pátio espaçoso havia cachorros, galinhas ciscando, máquinas faziam ruídos e um pomar de laranjeiras bem perto dali nos enviava o seu odor delicioso. Não se tratava de nenhum sítio pobre como os tantos que vimos nos últimos dias, mas de uma verdadeira grande fazenda. Nas proximidades da casa, o que me interessou foram algumas enormes árvores de pita (Fourcroya gigantea Vent.) cujas longas hastes de inflorescências mediam de 6 a 7 m de altura. Trata-se das agáveas que na província do Espírito Santo são encontradas numa altitude de 900 m e das quais havíamos notado algumas na nossa marcha de ontem.

A nossa cavalgada de hoje começou às 8 horas e foi até às 5 e meia da tarde, com apenas meia hora de parada. Nesse tempo, percorremos o restante dos 158,5 km que é a distância de Cachoeiro até Tatu, no rio Doce. Para percorrer todo esse trajeto, levamos 28 horas e meia, distribuídas em três dias e meio. É necessário mencionar que este é um desempenho notável dos cavaleiros, principalmente se considerar o péssimo estado das estradas e a interminável e cansativa tentativa de fazer as mulas andarem, que se tornara necessária desde o primeiro momento.

A trilha de hoje nos conduziu o tempo inteiro através da mata virgem e durante todo esse longo dia não vimos uma única moradia humana. Era uma solidão completa e sem fim nessa mata que nos envolvia e ela foi interrompida somente na parte da manhã, quando encontramos duas tropas no caminho. Para que a última tropa pudesse passar, tivemos que nos embrenhar na vegetação fechada nas laterais da trilha, pois não havia outro espaço. Depois que essas tropas passaram, estávamos novamente envolvidos pela majestade da natureza tão distante, ainda não desbravada pelo ser humano. O caminho a ser percorrido era igual ao do dia anterior ou pior, como se fosse um torrão de terra jogado para o meio do mato, ou como uma passagem através da vegetação cerrada. À direita e à esquerda, paredões de plantas densamente fechados e impenetráveis cercavam o espaço livre, cuja largura não ultrapassava a de um pé. Sobre nossas cabeças havia um teto horizontal de plantas igualmente impenetrável, e chegando até esse teto havia raízes aéreas que, aparadas por baixo pelas facas do mato, tinham uma altura de cem pés ou mais, e estavam dependuradas no meio da vegetação fechada como se fossem amarras ou cordas. Às vezes, os paredões de mata chegavam tão perto um do outro que os animais, em trote um a um, quase não conseguiam passar e, com frequência, o teto de mata estava tão baixo que durante longos trechos tivemos que cavalgar inclinados sobre a sela. E mesmo assim, ora um chapéu, ora outra peça de vestuário ficavam presos num galho ou num cipó, outras vezes os animais indomáveis empurravam nossos ombros, cabeça ou joelhos com toda a força contra a árvore à frente.

Pela manhã, a picada nos conduziu por um terreno montanhoso até uma clareira, de onde víamos uma montanha próxima. Na paisagem montanhosa, digna de ser pintada, reinava a magia de uma calma silenciosa. Um pouco mais tarde, ouvimos a voz exótica de uma saracura, isto é, de um raleiro que, pela região em que nos encontrávamos e pelo chamado contínuo naquela hora da manhã, poderia ser uma Aramides chiricote Vieill. Incontáveis borboletas voejavam no nosso caminho. Em sua maior parte tratava-se das mesmas espécies que vimos ontem, hoje estavam faltando somente as Thecla e as Catagramma. Mas em vez destas, havia as Apatura Laurentia Godt., ninfálidas de asas pretas, enfeitadas com uma linha longitudinal de um azul intenso. No meio dessas asas silenciosas também havia Megaluren(76), borboletas que, como o nome indica, têm caudas bem longas. Das lepidópteras havia as amarelas, igualmente de caudas longas, certamente Papilio Thyastes Dru. ou Papilio Lycophron Hübn., difíceis de serem identificadas durante o voo.

Ao meio-dia fizemos meia hora de parada no Ribeirão da Lage e nos acomodamos no chão da mata. Ao som dos gritos de papagaios, comemos o lanche que havíamos levado na sela. Completamos o lanche frugal com um pouco de água do riacho, à qual misturamos um pouco de cachaça para desinfetá-la. Então reunimos todas as forças para chegarmos ao destino.

Na parte da mata virgem que atravessamos hoje à tarde não vimos as árvores de fetos tão frequentes na região montanhosa, e mesmo no chão quase não cresciam samambaias. Essa característica, bem como as helicônias de folhas grandes, as palmeiras baixas e a parte lenhosa da vegetação densa constituída de palmeiras baixas, que nos lembravam a hileia, indicava que havíamos entrado nas matas virgens do vale do rio Doce.

As palmeiras baixas com folhas de duas fendas me pareciam ser espécies de geonoma(77) e as demais poderiam ser Attalea humilis Mart., que, quase sem tronco, se dividiam desde o chão com o seu raque foliar de inúmeras pinas em cada lado. Das espécies de coqueiros altos, existiam muitos patiobas (Cocos botryophora Mart.).

Além das espécies de árvores que já vimos nos últimos dias, ou seja, paus-d´alho gigantescos (Galezia Gorazema Moq.) e chorizias barrigudas (Chorizia crispiflora H. B. K.) com a característica marcante do entumescimento do tronco e raízes grossas em forma de cilindros, que podiam ser vistas aflorando da terra, ainda vimos outros gigantes da floresta, cuja espécie não conhecíamos. Ora se elevava uma árvore sangue-dedragão (Croton) (78), ora uma euforbiácea da família das bombáceas, (que, como o nome indica, fornece um líquido vermelho) com raízes tabulares, semelhantes às da lupuna ou da paineira-barriguda (Ceiba Samauma).

Num lugar percebemos um imponente jacarandá, que, de acordo com informações do nosso guia, tem uma madeira preciosa de cor vermelha malhada. Portanto, devia ser um jacarandá-pitanga (Machaerium firmum Benth). Mais em direção às baixadas do rio havia algumas figueiras, ou gameleiras-brancas (Urostigma dolarium Miq. [?]), que se destacavam sobremaneira pela formação de suas raízes tabulares(79). Das árvores de menor tamanho ou de troncos mais modestos desenvolviam-se nesta república de plantas, algumas cecrópias e araçás (Psidium L.), tipos de mirtácea de casca lisa e vermelha(80).

Também não faltavam as catalpas, da espécie das begnoniáceas (Tecoma speciosa DC. 81), cujas flores ainda não estavam bem desenvolvidas. Do fundo verde da mata sobressaíam flores vermelhas e lilases e também as delicadas flores azuis da Dipteracanthus Schauerianus N. ab. E, uma planta da família das acantáceas(82). Inúmeras espécies de aroideae (da classe monocotyledones), incontáveis ananases (Ananas sativus) e bromélias terrestres de flores vermelhas revestiam o solo. Também havia bromélias de tamanho considerável nas árvores e bem acima, num galho, pensei distinguir as flores vermelhas de algumas orquídeas. Cipós de todos os tipos, cujos troncos cuja espessura variava de finos fios até a medida de cabos para navios, vicejavam no alto, onde um se enfiava no outro e um deles estava agarrado numa árvore, tendo que sustentar ainda um segundo e um terceiro tronco. Várias vezes cavalgamos por um verdadeiro bosque de palmeiras e nos alegramos com a luz maravilhosamente bela e delicada formada pelos raios solares que caíam pelo teto de folhas verde-claras, incidindo sobre o interior da orla da mata protegida do sol. Pombas, possivelmente Columba plumbea Vieill., ouvidas com frequência em matas virgens altas de úmidas, arrulhavam na vegetação. Falcões (Ibicter americanus Bodd.) (83), grandes e escuras aves de rapina seduziamse mutuamente nas mais altas copas das árvores. Das espécies de jacus, alguns mutuns (Crax carunculata Temm.) deixavam ouvir suas vozes e um deles largou seu curto grito ao anoitecer(84). No meio desses sons durante uma grande parte do dia, ecoava o canto regular, semelhante ao soar dos sinos, da araponga, através da região inóspita. E de longe chegou aos nossos ouvidos o urro selvagem de um macaco urrador (Mycetes ursinus Wied(85), que lembrava o urro de um leão ou de um tigre. Dos incontáveis sons dos animais da mata virgem, esse é com certeza o mais poderoso e ao mesmo tempo o mais aflitivo. Dos animais e cujos sons não pudemos ouvir, foram citados como existentes nesses trechos da mata muitas pacas, tamanduás, tatus e outros.

E assim ficamos cavalgando por horas e horas a fio, atentando a todas as plantas chamativas e diferentes, ouvindo todos os sons a nós estranhos. Mas por fim, essa eterna monotonia nos cansou, esse interminável labirinto de plantas que não nos concediam uma vista livre, essa proximidade asfixiante da vegetação desordenada e entranhada. Assim como as plantas da mata virgem aspiram ao alto, assim também nós ansiávamos por ar e luz. Para encurtar o caminho, o nosso guia escolheu, ao cair da noite, uma picada que ia numa subida lateral. Depois de andarmos a cavalo durante uma hora, nos encontramos diante de um trecho de mata derrubada, uma roça de árvores vitimadas, largadas desordenadamente umas por cima das outras, um lugar impossível de atravessar.

Para voltar todo o trajeto e continuar a cavalgar pela picada principal, o dia já estava muito avançado e, como já havia acontecido algumas vezes, a noite que caía muito rapidamente nos teria pegado de surpresa no meio da floresta. Assim, depois de pensarmos rapidamente, decidimos abrir nós mesmos um caminho pela mata. Apeamos. Frank foi na frente, dando fortes golpes para a direita e para a esquerda com o terçado ou facão, derrubando impiedosamente cipós, arbustos e árvores pequenas. Nós o seguimos acocorados e passando pela parte baixada pela derrubada, puxando os animais pelo cabresto.

Desse guiar próprio dos cavalos na mata me fez pensar nas figuras das valquírias andando em seus corcéis, só que possivelmente nós tínhamos uma aparência menos poética e pitoresca do que as virgens mitológicas. No nosso caminho improvisado, incomodamos as saúvas (Atta sexdens [L.] Fabr.) e outras formigas no seu sossego até agora imperturbado por seres humanos. Por fim ainda travei um conhecimento indesejado com uma árvore de soro leitoso, cujo tronco estava repleto de agrupamentos de espinhos, como se fossem ouriços. Sem ter a mínima ideia disso, encostei-me ao seu tronco, sem nem mesmo olhar para ele, e então os espinhos se enfiaram dolorosamente nas minhas costas. Naturalmente eu quis saber o nome dessa árvore e Frank me disse que seria chamada de “Ai Diabo”(87) porque as pessoas que caíam na mesma armadilha que eu costumavam cumprimentá-la assim. Isso eu compreendi muito bem. Finalmente havíamos alcançado a orla da mata virgem, onde a temperatura estava um pouco fresca, já que o céu estava parcialmente encoberto e a meta da nossa viagem, o rio Doce, estava diante dos nossos olhares esperançosos.

 

NOTAS

(76) Megalura Chiron Fabr. ou Megalura Themistocles Fab.

(77) O surgimento de carludovicas com suas folhas em leque cobertas de penugem não fica excluído desse lugar.

(78) Tanto a espécie de cróton (Croton Urucurana Baill.), quanto o cróton semelhante a este (Croton salutaris Casaretto) são denominados de sangue-de-dragão, e as duas árvores aparecem no Brasil central, de modo que não pode se dito com toda a certeza de qual das duas espécies se tratava.

(79) Em sua Tabulae physiognomicae, p. LXX, Martius descreve três raízes da figueira Pharmacosycea grandaeva Miq. e as retrata na figura XVI. Será que as árvores por nós denominadas de gameleiras teriam sido as espécies de figueira acima referidas e não U. dolarium?

(80) Das diversas espécies de psidium, que portam o nome de araçá possivelmente entra em consideração aqui a Psidium coriaceum Mart.

(81) Em parte alguma é mencionado que a Tecoma speciosa (da família das begnoniáceas) floresce antes do desabrochar das folhas, mas isso também não é dito das outras espécies de tecoma que florescem em amarelo nessa região e, desse modo, num primeiro momento, não existe impedimento para que não possa ser admitido que as tecomas por nós vistas eram da espécie Tecomen T. speciosa.

(82) Colhido nesse lugar para o meu herbanário.

(83) Sob os nomes comuns Caucams = pakakang = ganga = rancanca = gakão somente é citado o Ibicter americanus Bodd = I. formosus Lath., que aparece somente na mata costeira (ver Pelzeln. Uebersicht der Geier und Falken (Vista geral sobre gaviões e falcões), [Verhandlungen der zoologisch-botanischen Gesellschaft in Wien, XII, p. 176] (Tratativas da Sociedade Zoobotânica em Viena); Pelzeln. Zur Ornithologie Brasiliens, p.2; (Da ornitologia do Brasil), Wied, Beiträge zur Naturgeschichte Brasiliens (Contribuições para a História Natural do Brasil), III, p. 153, 158, 161; Spix, Avium species novae, I, 11). Goeldi (As Aves do Brazil, I, p. 49) registrado sob o nome comum um pouco diferente Cauá, o Urubutinga brasiliensis Pelz. = U. zonura Shaw.

(84) Nessas regiões das matas brasileiras aparecem, da espécie dos tatus, tanto a espécie jacupemba (Penelope superciliaris Illig.) quanto a jacutinga (Pipile jacutinga Spix) e possivelmente também a jacupeba (Penelope jacucaca Spix).

(85) Pelzeln (Brasilische Säugethiere, 3, 4) (mamíferos brasileiros) e Burmeister (Systematische Uebersicht der Thiere Brasiliens, I, p. 22) (Vista Geral Sistemática dos Animais do Brasil) consideram o micetes Mycetes ursinus Wied como idêntico ao Mycetes fuscus Geoffr.; Schlegel (Museum d’Histoire naturelle des Pays-Bas, VII, Simiae, p. 154 et s.) e Goeldi (Os Mammiferos do Brazil, p. 36) separam-nos em duas espécies.

(86) No original Stimmsack (NT).

(87) No original: Ach, der Teufel! – Muito provavelmente essa árvore é algum tipo de euforbiácea.

 

PRODUÇÃO

 

@2013 by Arquivo Público do Estado do Espírito Santo

 

Coordenação Editorial

Cilmar Franceschetto

 

Revisão

Julio Bentivoglio

 

Apoio Técnico

Alexandre Alves Matias

Jória Motta Scolforo

Maria Dalva Pereira de Souza

 

Agradecimentos

André Malverdes, Levy Soares da Silva, Cláudio de Carvalho Xavier (Biblioteca Nacional), Adriana Pereira Campos, José Eustáquio Ribeiro, Adriana Jacobsen e a Hadumod Bussmann pelo fornecimento do diário de Maximiliano von Spiedel.

 

Editoração Eletrônica

Lima Bureau

 

Impressão e Acabamento

Dossi Editora Gráfica

 

 

Fonte: Viagem pelo Espírito Santo (1888): Viagem pelos trópicos brasileiros = Meine reise in den brasiliaischen tropen: / autoria da Princesa Teresa da Baviera - Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2013
Autora: Princesa Teresa da Baviera
Tradução: Sara Baldus
Organização e notas: Júlio Bentivoglio
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2020

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