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Vitória ao limiar do século XVII – Por Serafim Derenzi

Capela de Santa Luzia, 1940

Ao limiar do século XVII a vila de Vitória é ainda uma aldeia construída de taipa, cujas casas são cobertas de sapé ou palhas da pindoba. Há dois pomares vicejantes: o do Colégio e o dos franciscanos, em redor de seus conventos, não concluídos. Da fazenda de Duarte de lemos, de sua sede e da capelinha de Santa Luzia não se fazem notícias. Soube-se que ele doou terras aos inacianos e aos filhos de S. Francisco. (1)

Há engenhos no continente, nas várzeas de Camboapina. Os colonos plantam de Caratoíra a Santo Antônio. Da "capixaba" até à "passagem", abrem-se lavouras de mantimentos, que cobrem manchas de terra entre o mar e as encostas dos morros. Em Jucutuquara ou Jocutaquara, uma língua de mar sobe até a confluência dos rios Fradinho e Maruipe.. Nesses vales, possivelmente, as roças são mais extensas. Pelas referências antigas presume-se que o algodão e a cana são as plantas preferidas. A mandioca generaliza-se em substituição ao pão, de que os portugueses não se deslembram.

A penúria é geral. Há alentada esperança nas entradas para o sertão. As minas embalam sonhos, que crescem na razão inversa dos insucessos. Não se vive, porém, de fantasias!

É preciso ganhar o interior de terras férteis, subir vales de rios, galgando-lhes as cabeceiras. Mas o matão fechado guarda segredos, que os indígenas defendem com pontaria selvagem. A costa também não pode ser desguarnecida. O estrangeiro espreita de longe o momento de aproar suas caravelas. A população é pequena. As epidemias castigam moços e velhos; a pobreza e o temor estreitam afeições, mas não alimentam os estômagos. A "Misericórdia" estende cada vez mais seu manto de caridade. O provedor de defuntos e ausentes não tem mister a exercer. A carta régia de 7 de dezembro de 1604 extingue-lhe o cargo, anexando-lhe as funções à Justiça ordinária.

AS BANDEIRAS

Se os portugueses sonharam com tesouros infindáveis nas terras achadas no Novo Mundo, a região escondida nas bacias longínquas do Jequetinhonha ao Vatu, rio Doce dos espírito-santenses, foi a primeira visitada pelos sertanistas.

A ferocidade dos aimorés talvez contribuísse para que os colonos atribuíssem razões subjetivas à defesa do solo privilegiado. Uma serra distante guarda sempre mistério cobiçado. O homem é um eterno investigador, um viajante angustiado pelo desejo de conhecer.

Já em 1550, Martim Carvalho vislumbrou a Serra dos Aimorés descendo as águas do Cricaré com mãos vazias e corpo castigado. (2) Tomé de Souza, o prudente e sábio Governador Geral do Brasil, em 1553, (3) permitiu a entrada de Manuel Ramalho, morador no Sul da Capitania de Vasco Coutinho, para faiscar pedras e metais. Morreu lutando contra os indígenas. O pessimismo do Padre Manuel da Nóbrega, manifestado ao governo Central, não arrefeceu os ânimos dos sonhadores de tesouros escondidos.

Sebastião Fernandes Torinho, tido como nascido no Espírito Santo, arriba pelo Vatu, vivendo-lhe o mistério das margens misteriosas, guarnecidas de matas multisseculares, padecendo as emoções das corredeiras e as fadigas das catadupas violentas. Antônio Dias Adorno sucedeu-lhe na aventura frustrada, não conseguindo senão divisar as sombras do Ibituruna, a Serra que muitos anos depois alucinaria o malogrado Fernão Dias, o Caçador de Esmeraldas, cuja epopéia Olavo Bilac cantou em rimas homéricos.

As terras por conquistar, no oeste-norte da Capitania do Espírito Santo, polarizavam o desejo dos navegantes da última façanha dos descendentes da Escola de Sagres.

O roteiro certo estava traçado: o vale do Rio Doce. 

UM HÓSPEDE ILUSTRE

O governador D. Francisco de Souza, por alcunha D. Francisco das Manhas, devido à prudência excessiva no trato das coisas públicas, no dizer de Frei Vicente, veio do reino com o firme propósito de descobrir minas de ouro. Tomou posse, na Bahia, em 9 de junho de 1591. Muita decepção lhe causou a morte do ambicioso Robério Dias, descendente de Caramuru, por levar para o túmulo o segredo das minas de prata que apregoava, em Lisboa, ter descoberto em suas terras na Bahia. Não é de se acreditar, nem se pode admitir tão valioso achado, feito por um só homem naqueles sertões brutos. (4)

Robério ambicionava o título de Marquês das Minas. É provável ter usado o embuste para forçar D. Felipe II a elevá-lo à hierarquia desejada. Obteve a patente de administrador.

D. Francisco era um obstinado, homem de idéias fixas. Na sua viagem ao Sul, em outubro de 1598, levava na comitiva dois alemães, sendo um engenheiro, conhecedores de mineração. Refrescado no Espírito Santo, despachou Diogo Martins Cão a examinar, diz Galanti, as minas de esmeraldas. Não obstante o auxílio, que lhes emprestou a companhia de Antônio Proença e um bando de 50 homens, os botocudos obrigaram-no a retroceder.

Segundo rezam as crônicas, D. Francisco de Souza vislumbrou minério de ouro em Santos. Mas, em 1602, termina-lhe o mandato de Governador Geral, dando-lhe considerável desfalque em suas finanças particulares. Aborrecido, embarca diretamente, da cidade de Brás Cubas, para a Metrópole, sem ter atingido o objetivo de sua predileção.

Em 1608, quando novamente é dividido o Brasil em dois governos, a Corte, reconhecendo-lhe a honestidade e o gasto da fazenda, envia-o, novamente, à Colônia Atlântica. Dessa vez vem investido, além do mais, de Capitão Geral e Governador das Minas de S. Vicente, Rio de Janeiro e Espírito Santo. (5) Residiu certo tempo em Vitória. Explorou o Mestre Álvaro, onde pretendeu achar esmeraldas e prata. Alvoroçou as esperanças perdidas dos moradores na procura das tão almejadas minas escondidas. (6)

Não obteve o cobiçado título de Marquês das Minas, arquitetado pelo malogrado Robério Dias. Estimulou D. Francisco de Souza as entradas ao Sertão. Faleceu em S. Paulo em 1611.

Provavelmente o interesse defendido por D. Francisco de Souza incentivou as múltiplas expedições espírito-santenses. E nestas se notabilizaram Marcos de Azeredo Coutinho e seus destemidos filhos, Antônio e Domingos.

Pedras verdes e coradas de outros matizes foram o resultado ilusório dessas façanhas extraordinárias, praticadas pelos sertanistas, vencendo obstáculos alucinantes opostos pelas florestas, que distanciavam e, distanciam ainda, as cabeceiras do S. Mateus das curvas perigosas do Rio Doce. Mas o ouro só pintará o fundo das bateias no último quarto do século, em benefício dos bandeirantes, que transpuseram a Mantiqueira, atingindo os confins geográficos da Capitania de Vasco Fernandes Coutinho.

Ganhavam os paulistas a glória dos descobrimentos e perdia o Espírito Santo, para sempre, o território, que não explorou, mas que lhe pertencia por direito de doação régia.

RESTRIÇÕES — HOLANDESES

Perdida a ilusão das minas de ouro, a Capitania só poderá: progredir com o amanho da terra. Mas a faixa litorânea é sáfara e perseguida de pragas daninhas.

Os donatários não demonstram grande interesse pelo feudo deficitário. Os colonos distanciam-se. Alguns prosperam com sacrifício. O orçamento de 1617 é de 517$400. O serviço eclesiástico absorve 115$200. Não há instrução pública, e não se abrem caminhos.

Portugal quer o isolamento das Capitanias. Pela Carta régia de 21 de fevereiro, de 1620, se proíbe a visita recíproca dos governos regionais. A fiscalização do comércio é rigorosa. Não se pode negociar com estrangeiros e o corte do pau-brasil só é permitido com licença do Provedor da Fazenda. Os infratores estão sujeitos a severos castigos, inclusive pena de morte.

Em março de 1625, os holandeses, comandados por Patrid, depois de tentativas frustradas, desembarcam na ilha e atacam a Vila desguarnecida. São dias épicos com momentos terríveis de batalha. Frei Manuel do Espírito Santo, repete o feito de Brás: erguendo o crucifixo, percorre as trincheiras estoicamente. Corre aos sinos e badala a alegria da vitória. Combatem todos: homens mulheres, índios e religiosos. Todas as armas servem para defesa. Maria Ortiz, do sobrado, no topo da ladeira do Pelourinho, hoje escadaria, deita água fervente nos flamengos enfurecidos. Que amor acendrado à pátria nascente!

* * *

Os holandeses retiram-se da ilha e saqueiam o continente. Traziam na sua esquadra Rodrigo Pedro, casado em Vitória, onde residiu e de onde se passou para a Holanda. Foi precursor de Calabar. (7)

Aguiar Coutinho, quarto donatário, pôde derrotar os invasores com a ajuda inesperada, que lhe trouxe Salvador Corrêa de Sá e Benevides, voltando da Bahia.

Pieter Peterszon Heyen amargou, barra à fora, largos claros abertos na sua tripulação e esquadra: foram mortos o almirante Guilherme Ians e o renegado Rodrigo Pedro. (8)

* * *

Refeitos da guerra, a população tem que se avir com o fisco. Não há moratória. O açúcar branco é taxado a novecentos réis por arroba. Os dízimos rendem, em hasta pública, 3.850 cruzados. Ai de quem se atrasar! Os arrematantes são sempre onzenários.

Nesse tempo (1629), provavelmente, chega a primeira leva maciça de escravos para venda. São 43. Vieram de S. Paulo, trazidos por Manuel Melo. Não há mais moeda. Os negros são trocados por mercadorias. Igual sistema se aplica ao pagamento dos tributos régios. (9)

Com a morte de Francisco Aguiar Coutinho, ocorrida par volta de 1627 — foi nomeado Manuel d'Escobar Cabral, cumulativamente para capitão-mor, Ouvidor e Procurador da Fazenda Real. Enfeixava nas próprias mãos o Governo, a Justiça e o Fisco.

TEIMOSIA FRUSTRADA

Repetiram os holandeses, em 1640, suas proezas sangrentas. Talvez quisessem os batavos eleger Vitória em cabeça de ponte, na linguagem bélica de hoje, visando ao Rio de Janeiro e Bahia. Não encontro outra justificativa para a teimosia inútil da esquadra de Nassau.

O capitão-mor, João Dias Guedes, encontrou, no Superior do Colégio, um homem de ação e prestígio invulgar: o Padre Francisco Gonçalves, "um dos maiores Jesuítas do Brasil, cuja autoridade se repartia em todo ele desde S. Paulo ao Rio Negro, no Amazonas, e em Roma e Lisboa. (10)

Convocou o Padre os dois homens de maior prestígio da capitania, e por sinal inimigos. Reconciliou-os, expôs-lhes o perigo iminente, que ameaçava a Capitania, quando informado da aproximação dos navios do Coronel Koin. Convocou os índios das Aldeias vizinhas e a população, dividida que estava entre aqueles maiores. Formou uma só vontade.

Sob a proteção do glorioso São Maurício, "patrão da Capitania", (11) os holandeses sofreram sua segunda derrota no solo e águas capixabas.

A luta durou os dias 27 e 28 de outubro. (12) Distinguiram-se, além do Padre Superior do Colégio, João Dias Guedes, Domingos Cardoso e o voluntário Antônio do Couto e Almeida. Os invasores perderam quase todos os oficiais. (13)

O Colégio fez as vezes de hospital de sangue e abasteceu a tropa de víveres.

Vila Velha não foi poupada pelos flamengos. A tela de B. Calixto, exposta na galeria dos milagres, do Convento da Penha, representa a intervenção de N. Senhora na defesa de seu Santuário, conforme crença que a tradição guardou. (14)

Os padres acompanhavam sempre as "bandeiras", servindo-lhes de capelães e missionários. Resolveram, por sua vez, tentar também o mistério do Sertão noroeste da Capitania. Assim foi que o Padre Inácio Siqueira S.J. obteve permissão para bandeirar. Em 1613 embrenhou-se pelas matas, alcançando as margens, do Rio Doce, com seu troço de índios catequizados. Por cinco anos conheceu quão falazes eram os sonhos das esmeraldas e quão duras as dificuldades de se procurar o que não existe. (15)

 

NOTAS

(1) Serafim Leite — ob. cit.

(2) Mário Freire — "Os Bandeirantes" — Rev. H.H.G.E.S. n° 7..

(3) Galanti — Ob. cit.

(4 ) P.R. Galanti.

(5) Daemon.

(6) Mário Freire.

(7) Galanti.

(8) Garcia — Apud José Teixeira de Oliveira.

(9) Calógeras "Formação Histórica do Brasil".

(10) Serafim Leite — H.C.J.B. — Volume VI — pág. 139.

(11) Serafim Leite — H.0 H.C.J.B. — volume VI

(12) Barão do Rio Branco — "Efemérides"

(13) Serafim Leite — Ob. Cit.

(14) Rower.

(15) Serafim Leite — Daemon.

 

Fonte: Biografia de uma ilha, 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2017

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