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Quando o Penedo falava, 1927 - Por Elpídio Pimentel - Parte I

Capa do Livro: Quando Penedo falava, 1927 - Autor: Eupídio Pimentel

Quando o Penedo falava...

Glauro é um menino de dez anos de idade.

Inteligente, carinhoso e ativo. Todos o estimam.

Os pais têm-lhe a melhor das afeições, mas sabem sujeita-lo, brandamente, aos costumes da boa educação.

Gosta de ver gravuras nos jornaizinhos infantis e já pode resumir-lhes os contos mais graciosos.

Amigo de contar histórias, lê, uma por uma, todas as sensaborias do Tico-Tico, comentando-as a seu gosto, com espírito e originalidade.

Vai as matinês do cinema, e, de volta, narra aos de casa todas as façanhas dos heróis da tela, que mais lhe cativam as simpatias e a atenção.

Seu avozinho – criatura ilustrada e amorosissima – depois de esgotar o repertório dos (contos da carocha), das histórias de feiticeiros com gorros encantados, das abóboras faladeiras, das velinhas comedoras de bolos, passou as lendas das fadas Melusina e Morgana, foi aos contos de Grimm, aumentou as bravatas mentirosas do barão de Munchkausen, exagerou as aventuras de Gulliver e as proezas de Dom Quixote – não conseguindo, entretanto, por um ponto final da curiosidade crescente de Glauro.

Mal o avô conclui linda história, é logo emprazado para, na manhã vindoura, contar-lhe outra ainda mais bonita.

Para agradá-lo e dar-lhe o ensejo de bem encaminhar e fortalecer os seus estudos – porque Glauro, desde os cinco anos incompletos, exigiu que o mandassem para a escola – o bom do avozinho promete-lhe, para o dia seguinte, uma bela história, longa, formosa e verdadeira.

Aprendi-a, diz ele, na época distante de minha infância, quando não tinha rugas e cabelos brancos e, também, como tu, agora, não me fartava de pedir que me relatassem feitos maravilhosos.

Uma noite, depois de me contarem a lenda do sino de ouro, enterrado no alto da ladeira de Maria Ortiz, nesta cidade da Vitória, no tempo em que viveu, aqui, o franciscano Frei Francisco da Madre de Deus – o enfermeiro das contas brancas – para somente ser encontrado, quando, no nosso Estado, todos souberem ler os livros, que louvam Deus e ensinam, aos humanos, os preceitos da honra, da lealdade e da justiça – fui pelo meu pé, em companhia de meu pai, gozar os encantos de formoso luar no sítio, que, há pouco, se chamava – Forte de São João, e hoje, se transformou no Trianon.

Lá, recordei-me da história do búzio encantado, que velha escrava me contara, afirmando que ouvira, muitas vezes, quando as ondas estavam quietas e os ventos adormecidos, soando bem perto do Penedo, sereno e eterno, na imponência indestrutível do seu granito.

Quis, então, também ouvir as estranhas melodias da trompa misteriosa, e, em quando meu pai se entretinha na conversa com seus amigos, desci para as muralhas da velha fortaleza abandonada. Já eu sabia que ali, na profundeza do mar, se levantava o magnífico palácio do rei Netuno, senhor absoluto de todos os oceanos.

Toda vez que ele reunia a sua corte, para discutir assuntos importantes, relativos aos seus domínios, mandava que um dos seus escravos – um peixe enorme – soprasse no búzio mágico. Assim, nas mais distantes paragens dos mares, todos os seus súditos sabiam da regra da assembléia.

Estava eu pacientemente sentado na borda relvosa da antiga muralha, à espera da trombeta misteriosa, quando vi  fender-se, num radioso clarão, o centro do Penedo e sair de dentro dele um homem da elevada estatura, esmeradamente trajado à moda dos príncipes de outrora – daqueles que iam, sozinhos, cheios de amor e bravura, as torres solitárias, desencantar formosas princesas, prisioneiras de bruxos desumanos.

O vulto caminhou um pouco por sobre as águas quietas do mar e, as poucas braças da praia, despregando da cintura lindo búzio fulgurante, desferiu música harmoniosa, enquanto eu, deslumbrado e medroso, pedia aos santos que me protegessem. Estava no momento de conhecer a realidade da famosa lenda espírito-santense.

Ainda não me libertara do susto, quando a estranha aparição, soltando os últimos acordes de sua elevadora harmonia, me enxergou na penumbra, onde me escondera.

Deu mais alguns passos na minha direção e, com um sorriso carinhoso, murmurou:

- Sou um gênio manso e bom, a quem encarceraram no coração daquela pedra eterna, para assistir a todos os triunfos e amarguras da querida terra espírito-santense, onde tu, criança curiosa, viste, desde pequenino, os gloriosos lampejos do sol. Quando aqui vagavam, nuas e ferozes, as tribos primitivas dos nossos selvagens, sem uma réstia de luz a lhes clarear as negras espessuras da ignorância, que as chumbava ao crime, no meio da floresta gigantesca e virgem – já eu habitava o seio daquela montanha, indiferente ao rancor dos vagalhões, que se anulam de encontro à dureza de sua soberania impassível.

Vieram mais tarde, muitos séculos depois, as caravelas do almirante Cabral, as explorações ambiciosas dos portugueses, as investidas dos corsários franceses e flamengos, o morticínio bárbaro dos índios, a agonia paciente dos africanos, a santa resignação dos missionários jesuítas, os primeiros anseios do republicanismo, as tentativas preliminares da abolição – e eu, escondido no centro do Penedo, transformado em sua alma, a tudo assisti, rogando sempre aos deuses generosos pela grandeza e tranqüilidade do torrão capixaba.

Como adivinho que serás bom servidor desta terra fadada a altos destinos, e sei quanto te alegram e entusiasmam belos contos, convido-te para vires, todas as noites, sozinho, quando as estrelas começarem a luzir, escutar, contada por mim, a linda história do passado espírito-santense.

Hás de ver como é ela interessante e útil, instruindo-te e alegrando-te o espírito; mas – fica bem avisado – si disseres a alguém que existo, nunca mais os teus olhos me verão.

E foi assim – concluiu o avozinho de Glauro, amimando-lhe os cabelos escuros – que aprendi, na minha meninice, a mais bela das histórias, que conheço, e que te vou contar nos nossos serões da semana vindoura.

 

Fonte: Quando o Penedo falava, 1927
Autor: Elpídio Pimentel
Compilação: Walter de Aguiar Filho, junho/2015

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