Outras heranças culturais africanas

Muitos aspectos da herança cultural e da memória africana sobreviveram e chegaram aos tempos atuais graças ao esforço e espírito de sacrifício que tiveram os antepassados em conseguir, mesmo sob o domínio e o medo impostos pelos colonizadores, preservar sua dignidade cultural.
Como exemplo disso destacam-se algumas manifestações afro-capixabas como Jongo, Congo, Festa do Mastro de São Benedito, Ticumbi, Reisado, Caxambu, Marujada, Mineiro Pau, Boi Pintadinho, Capoeira, Dança das Fitas e outras. Além deles, deve-se considerar também a linguagem, a culinária e a medicina natural baseada, principalmente, no uso de plantas.
6.3.1. ASPECTOS GERAIS
Considerando a relação entre a cultura dos colonizadores e dominadores e as sobrevivências culturais dos escravos, pode-se dizer que, na sociedade colonial, eram aceitos os costumes tradicionais africanos que podiam se adaptar à exploração escravista. Incluíam-se aí aqueles que, reinterpretados, recebiam novo significado. Esse é o caso, por exemplo, das realezas nacionais ou chefias tribais. Isto é, a tradição africana da sucessão hereditária dos reis teria sido substituída nas Confrarias pelo sistema eletivo. Os reis das Confrarias passavam a ser eleitos pelos seus membros. Isso possibilitava maior obediência de seus súditos e permitia-lhes servir como intermediários entre os senhores brancos e seus escravos, constituindo, desse modo, canais de controle branco sobre a massa de pessoas de cor. Dessa forma, aproveitando as atividades permitidas, os escravos conseguiram realizar outras e preservar muitas tradições, costumes e histórias. Por exemplo: com a coroação dos Reis do Congo e de Angola, podiam passar também outros costumes africanos, como os das Embaixadas e das guerras inter-étnicas que, nas Confrarias, transformaram-se em lutas entre pagãos e cristãos ou entre mouros e cristãos(74).
Assim, são encontradas, ligadas por laços sutis, muitas atividades culturais negras e práticas católicas dos colonizadores que podem ser interpretadas como sincretismos. Nesse caso, estão os cultos e as procissões de São Benedito, compostos quase apenas de negros e com os componentes religiosos africanizados, como anjinhos negros e rainhas africanas. Além disso, as Confrarias, em suas disputas e ladainhas, revelam as práticas de uma cantiga que diz:
Meu São Benedito
Venho te pedir
Pelo amor de Deus
Brincar de cucumbi.
O que caracterizava essa festa, o Cucumbi, não era a semelhança entre os Orixás e os Santos brancos, mas sim as histórias das lutas dos negros contra os invasores e conquistadores de suas terras.
O Cucumbi era acompanhado por uma Banda de Congos, e isso revela todo seu significado: trata-se de uma representação histórica das lutas e reinados africanos. O cristianismo aceitou essa representação porque ela foi deformada e transformada, tomando o significado simbólico da luta de cristãos contra muçulmanos, onde os primeiros sempre vencem. Mas, de qualquer forma, ficaram vivas as recordações dos reinados africanos. É a mesma coisa que ocorre no Ticumbi, de Conceição da Barra.
As congadas ou Bandas de Congo, embora sejam parte dessa lembrança dos antigos reinados africanos, atualmente têm suas atividades mais ligadas à devoção a São Benedito, como acontece por todo o Espírito Santo.
Antigamente cada paróquia tinha sua Confraria dos Homens de Cor, que, de certa forma, reproduziam as estruturas organizativas dos antigos reinos africanos, com um Rei, um Secretário, um Mestre de Campo ou Festeiro, um Chefe de Armas e as Damas de Honra.
Em uma Confraria de negros, no Rio Grande do Sul, havia “Rei Newangue”, “Rainha Nembanda”, “Príncipes Manafundos”, “Feiticeiro Endoque”, escravos reais “Vantuafunos”, e, quanto à “dança” que acompanhava a “coroação” deles, conforme a região do País, ela recebia nome de Congada, Cucumbi, Jongo, Congo, Ticumbi ou Turundu, uma espécie de representação teatral compreendendo diversas partes. Primeiro, havia a entrada do bailado, com a chegada do Rei, que pede permissão para celebrar a Congada; o cortejo real circula pelas ruas da cidade e dança na frente da igreja e das casas mais importantes. Aí, há cantigas semiafricanas, há contradanças à moda portuguesa, cantos de trabalho rural e doméstico, discursos políticos, agradecimentos pela colheita feita, danças animais, representações de fatos históricos. Depois, vem a parte dos desafios e representações de lutas com as Embaixadas de Guerra ou de Paz e, por último, a parte de homenagens a São Benedito(75).
Assim, de profundas raízes africanas são as práticas fundadas pelos Congos ou a eles referentes, mesmo nas regiões do País onde eles tenham, aparentemente, desaparecido(76).
Os Cucumbis baianos das festas de Natal e de Reis também eram representações de fatos históricos africanos, mas foram levados para o Rio de Janeiro e lá apareceram no Carnaval, constituindo diversos clubes carnavalescos. Na origem deles podiam ser encontradas ações e danças assim resumidas: depois de uma refeição farta, um grupo de Congos ia levar à “Rainha” os novos “vassalos”, que tinham passado por uma espécie de iniciação. O grupo era formado por “Príncipes”, “Princesas”, “Áugures” (sacerdotes que fazem previsões), “Feiticeiros”, intérpretes de dialetos estrangeiros, e inúmeras pessoas do povo, levando entre alas festivas os jovens iniciantes, todos formando um grande cortejo. Outro grupo, representando “Guerreiros” que retornam de uma batalha contra uma tribo inimiga, traz, morto, o filho do Rei. Ao aproximarem-se, os componentes dos grupos dão a notícia, e o Rei ordena que chegue a sua presença um adivinho, o mais famoso de seu reino, impondo-lhe a ressurreição do Príncipe morto. Sob às ordens do feiticeiro, o morto se levanta. Após isso, continuam as danças, discursos e louvores a São Benedito.
Os nomes Congo, Munhambana, Cucumbe, Quimbate, Matanga, Zumbi e outros que aparecem no bailado, bem como algumas palavras das estrofes cantadas, não deixam dúvida sobre a origem africana e põem em evidência a procedência Banto ou Congo. Os Cucumbis eram uma das mais importantes tradições culturais africanas deixadas pelos Bantos, uma das poucas que, desse ramo dos negros, escapou das transformações diversas sofridas no Brasil(77).
No Espírito Santo, como já se sabe, são abundantes e diversas as representações dessa herança histórica e cultural africana. A título de exemplo, apenas algumas delas serão destacadas.
NOTAS
(74) Bastide, 1971, v. 2. p. 78.
(75) Bastide, 1971, v. 1. p. 172 a 176.
(76) Rodrigues, 1977, p. 32 a 35.
(77) Rodrigues, 1977, p. 181 e seg.
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Fonte: Negros no Espírito Santo / Cleber Maciel; organização por Osvaldo Martins de Oliveira. –2ª ed. – Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2021
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