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Maria Ortiz, heroína inesperada

Escadaria Maria Ortiz - Foto: Walter de Aguiar Filho, julho/2011

O prazer de Maria Ortiz era rolar pela ladeira do Pelourinho dentro de uma ancoreta vazia. Tinha nove anos nessa época. Seu pai, o espanhol Juan Orty y Ortiz, veio para o Espírito Santo em 1621, quando Felipe III facilitou a imigração de estrangeiros para o Brasil. Negociava com vinho e mantinha uma taberna no térreo de um sobrado branco, na parte mais estreita da ladeira do Pelourinho. O vinho era trazido da ilha da Madeira nas ancoretas que os negros carregavam na cabeça, do porto dos Padres até a taberna de Juan Ortiz. Ali ficavam empilhadas e iam sendo esvaziadas à medida do consumo pela gente da vila de Nossa Senhora da Vitória.

O contrato de Juan Ortiz com seus fornecedores previa a reposição dos estoques segundo partidas anuais, o que raramente se verificava. O comum era o taberneiro e seus fregueses ficarem na falta da bebida, esperando que chegasse a Vitória uma das naus da ilha da Madeira, com o precioso líquido. Quando isto acontecia, as ancoretas usadas eram trocadas pelas cheias, e recomeçava o ciclo da venda e do consumo do vinho verde na ilha de Vitória.

Mas nem todas as ancoretas eram substituídas. Algumas ficavam perdidas na rolagem da ladeira do Pelourinho, quando Maria Ortiz se enfiava dentro delas, nos folguedos de rola-montanha, às vezes só, às vezes ajudada pelo molecote que servia à sua mãe, a andaluza Carolina Darico.

Carolina era o que se pode chamar de uma mulher cônscia das responsabilidades do lar. E este hábito elogiável impunha à filha com firmeza. Seus gritos para Maria Ortiz sair de dentro do barrilete rolador e vir limpar a casa ou ajudar no preparo do almoço faziam tremer a rampa do Pelourinho muito mais do que os uivos de dor dos açoitados, punidos no poste da lei, no alto da ladeira. A menina voltava para casa aos saltos, pois sabia que quanto mais demorasse em atender ao chamado materno mais secos seriam os cocurutos reservados à sua cabeça. Mas nem por isto deixava de voltar à sua brincadeira preferida sempre que Carolina Darico se distraía ou quando se ausentava de casa, e sempre que havia ancoretas disponíveis, na taberna do pai.

Num certo dia de março de 1625, o barrilete em que Maria Ortiz arremeteu, ladeira abaixo, abriu-se exatamente aos pés de uma tropa de holandeses que se preparava para investir contra o alto da vila de Vitória. Se a menina sobressaltou-se ao pular do barril despedaçado diante das botas dos soldados, armados de arcabuzes e alabardas, estes irromperam em gargalhadas e gracejos obscenos, ante o que seus olhos viram: uma criança tonta, brotando assustada das tábuas de uma ancoreta justamente antes de um assalto militar, quando o momento exigia concentração e fúria, para o êxito dos combates.

Não era segredo para Maria Ortiz, nem para ninguém que os holandeses, com seus navios surtos na baía, estavam prestes a descer em terra e assaltar a vila, que organizava como podia a sua defesa. Naquela manhã, o próprio Juan Orty y Ortiz, ao sair de casa e fechar a taberna para participar como escrivão da câmara, de uma reunião de guerra convocada às pressas, recomendara cuidado à mulher e à filha. "Além do mais, são luteranos esses batavos", advertira.

Carolina Darico ouviu o marido e olhou imediatamente para a filha, como se quisesse incutir no cérebro da menina, pela força do olhar, a advertência do pai. Depois foi a sua vez de fazer recomendações quando teve de ir à pedra do porto dos Padres comprar os peroás do almoço porque, apesar de haver barcos flamengos ancorados na baía, a vida continuava na vila de Nossa Senhora da Vitória: "Olhe, lá, pequena, não me botes os pés fora de casa que essa gente tem parte com o Capeta. Feche portas e janelas e cuides do feijão, que está a cozer ao fogo".

Mas Maria Ortiz não deu ouvido ao pai e nem à mãe. Valeu-se da ausência de ambos, pegou um barrilete debaixo da escada da casa, que seu pai fazia de depósito da taverna, e, dentro dele rolou pela rampa do Pelourinho até aos pés dos holandeses.

As gargalhadas e deboches fizeram-na correr para casa, acabrunhada. Seus brios ofendidos exigiam uma reparação à altura. "Pois que seja à custa do feijão, que está quase a queimar", decidiu Maria Ortiz dirigindo-se à janela com a panela fumegante segura pelo cabo. Embaixo, subia a tropa, com reflexos de sol nos capacetes.

Muitos holandeses viram a menina aparecer na sacadinha em forma de balcão sem adivinhar o que lhes reservava o feijão quase bispado. Enxergaram apenas a criança que, minutos antes, emergira a seus pés de um barril arrebentado, fedendo a vinho e com os cabelos desgrenhados. Mas já não era hora para pilhérias e risadas. O ataque à vila de Nossa Senhora da Vitória estava em marcha, não se podia perder tempo à toa.

Foi preciso que o feijão fervente caísse sobre suas cabeças para que os atingidos percebessem que deviam ter dado mais atenção a quem muita atenção lhes tinha dado, e que agora ria, acima deles, um riso dançarino que iluminava seus dentes miúdos e apertados, porque ri melhor quem ri menina, e riem muito mais as crianças humilhadas quando vão à forra, verdade que os batavos tinham esquecido.

Expulsos os invasores do Espírito Santo, seguiram-se as comemorações da vitória. No senado da câmara, uma sessão solene teve lugar. E em meio a discursos e aclamações dirigidas ao rei Felipe III e à Fé Católica, Maria Ortiz foi agraciada, por seu gesto heróico, com uma coroa de margaridas amarelas, posta sobre sua cabeça pelo escrivão Juan Orty y Ortiz.

A menina sorriu o risinho dançarino que lhe iluminava os dentes miúdos e apertados, recebeu na fronte o beijo paterno recendendo a vinho da Madeira, mas pensou que melhor do que as margaridas com que fora coroada seria ganhar de presente uma ancoreta mais resistente.

 

Fonte: Crônicas da insólita fortuna 
Autor: Luiz Guilherme Santos Neves
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2012



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